segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A morte dos Magos (como nasce uma religião)

As histórias, em geral, são escritas pelos vencedores. Por um motivo simples: em geral são os que saem vivos dela.

O primeiro dos três grandes impérios a sentir a influência do Zoroastrismo - a religião de Zoroástro ou Zaratustra - foi o dos aquemêmidas, que governou a região do Irã no início do século VII a.C. até a conquista por Alexandre em 331 a.C., com um território que se estendia desde o Egito e a Turquia até o Paquistão. A terra natal dos aquemênidas era "Fars" (Pérsia), no Irã sul-ocidental, onde se encontravam Susa, capital administrativa, e Persépolis, a grande cidade-residência do soberano.

Grandes rivais dos gregos, que os derrotaram em Maratona (490 a.C.) e Salamina (480 a.C.), os aquemêmidas - ou Persas - adoravam tanto Ahura Mazda "que fez o céu, fez a terra, fez os mortais, fez a felicidade para os mortais e fez Dario rei" como dizia uma inscrição em Behistun, quanto outras divindades. Os textos do Avesta não podem ser datados, o que dificulta muita coisa na reconstrução dessa história, mas existe um episódio muito interessante, que fala sobre o nascimento das grandes religiões monoteístas, como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Na sua ascensão, o culto zoroastriano teve de conviver com a antiga fé politeísta de matriz indo-iraniana, confiada a sacerdotes conhecidos como Magoi, ou magos.

Os Magoi eram sacerdotes politeístas que acreditavam que todas as divindades de seu panteão existiam dentro de si mesmos e de cada cidadão do império aquemênida. Dentro de sua crença essas divindades poderiam ser invocadas em momentos específicos para a cura de uma enfermidade mental, física ou espiritual, para conceder forças e coragem na guerra, para melhorar as relações entre os fiéis etc. Da mesma forma existiam magois especializados em determinada divindade e a exercer o culto a ela, como os Magoi de Mithra "deus ancião", de Angra Mainyiu "o espírito do Mal", ou Zurwan "deus do tempo". Os Magoi, como classe, operavam curas que respeitavam a uma lógica interna que poderíamos denominar de "equilíbrio dinâmico": o excesso de passividade era curado exercitando-se a divindade agressiva dentro de si, o oposto para o excesso de agressividade, a intempestividade da adolescência era curada exercitando a observação refletida do deus ancião etc. A noção de equilíbrio dinâmico permeava sua religião, como sua política, sua colheita, relações familiares e sociais.

Os zoroastrianos, embora não o reconhecessem, eram uma seita dentro dos magoi, que acreditavam que Ahura Mazda - uma dentre as várias divindades do panteão dos magoi - possuia um estatuto maior que os demais, era mais poderoso, mais digno de reverência e adoração. Em prol dessa crença e, submetidos aos ditames dos magoi, eles convenceram o imperador Ardashir a convocar uma assembléia onde os magói e os zoroastrianos discutiriam formas de mesclar suas crenças para que o povo não ficasse dividido, o que enfraqueceria a todo o império aquemênida. Temendo a rápida ascensão dos zoroastrianos, os sacerdotes magoi, a princípio, recusaram essa assembléia, mas, como os zoroastrianos ergueram estátuas de todas as demais divindades às portas de Persépolis - como sinal de amizade e confraternização - os magoi enfim cederam.

Tudo naquele "concílio" era simbólico. Os magói caminhavam à esquerda enquanto os zoroastrianos à direita em duas filas indianas que contornavam o trono de Ardashir. O imperador abençoou a união daquelas ordens religiosas e indicou a sala onde o concílio, marcado para durar um ciclo lunar inteiro, deveria ocorrer. A sala representava o território do imperador, toda a vasta região dominada por Ardashir. Cores diferentes em tapeçarias diferentes simbolizavam cada uma das importantes cidades, territórios, províncias e domínios. Os móveis e tapeçarias continham um forte aroma de Sândalo e especiarias, tão forte que chegou mesmo a enjoar muitos dos sacerdotes ali presentes. Como os Magoi foram os primeiros dentro do território, seus sacerdotes, com seus chapéus pentangulares, suas vestes lilases e púrpuras, suas sandálias trabalhadas em couro fino, também foram os primeiros a entrar na sala, em fila indiana, em silêncio. Sentiam-se honrados em entrar primeiro, era seu direito simbólico e santo ocupar primeiro aquela terra representada na sala. Em silêncio aguardaram até que o último magoi entrasse naquele enorme aposento perfumado. O cair da tarde se verificava pela abóbada aberta no alto, espaço livre para as divindades celestiais entrarem em contato com as terrenas.

À entrada do último e mais novo dos sacerdotes magoi, a sala foi trancada abruptamente e a estátua de bronze de Angra Mainyu usada como tranca. Do alto dos sete metros de altura da sala caíram, em sequência, uma a uma das cinquenta estátuas de mais de dois metros de altura de cada uma das divindades que haviam sido postas à entrada de Persépolis. Alguns sacerdotes correram para os cantos da sala hexagonal desesperados, gritando pelas paredes vazadas, trabalhadas em flores e motivos religiosos: foram mortos a golpes das lanças que atravessavam as frestas das paredes. Os poucos sacerdotes que tiveram forças e reflexos para não serem esmagados pela chuva de granito, mármore e ouro e se reuniram no centro da sala, única área onde as estátuas não podiam atingir, visto que eram arremessadas de uma grande área circular do teto abobadado, perceberam uma luz forte sobre suas cabeças - que chegaram, por segundos, a compreender como a resposta às suas preces - quando várias flechas incandescentes penetravam o salão embebido em álcool e éter disfarçado pelo cheiro das especiarias.

A nova religião monoteísta permitiu regras de conduta mais estreitas, onde o império de Ardashir pôde militarizar e dominar novas regiões. Reza a lenda que Irineu um dos principais teólogos da Igreja Católica, nascido em Esmirna (Turquia) viveu anos com essa lenda na mente e concebeu formas de adequá-la aos seus interesses no Concílio de Nicéia - primeiro concílio cristão.

Conto e Receita: Renato Kress

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Cartas de amor




Hoje eu escrevi mais uma carta na areia. Queria que chovesse. Deviam estar uns 40 graus. E talvez ela soubesse da carta. O que me deixou rubro. Não sei onde foram as sementes. Eu as trouxe para plantá-las aqui. Onde morram. Nada nasce da desolação desse deserto. Talvez seja onde eu consiga parir certas letras, nem tudo é tão doce como outrora. Há um monstro vil lá fora, tão minuciosamente sádico e umbralino que só pôde visitar-me após todos os seus filhos, desgraças do mundo, terem preenchido o vácuo de perfeição que assolara o planeta, o apocalipse no fim da caixa de Pandora, a esperança. Gota amarga de memória cauterizando eternamente a ferida, o membro decepado, a inexpressividade cáustica da sub-vida cotidiana. Lenta morte irônica e lânguida, fascinando auroras, rasgando pores de sol sob uma cortina de lágrimas. Lágrimas e sementes sobre um solo inútil, sobre uma carta de areia ao vento, à decomposição da memória, das histórias, do amor.

Conto e Receita: Renato Kress

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Olho no olho




Sua mão grossa puxava o cabelo crespo dela para trás com força enquanto ele estocava mordendo os beiços e olhando pra baixo. Adorava ver os umbigos se batendo. A direita puxava pela bunda e cintura lisa e o suor escorregava os dois de cima do tanque. O meio das costas dela batia na torneira e ela só via a luz do sol amanhecendo por entre o basculante. Ele gozou e saiu. Levantou o short e abaixou pra pegar a camisa.

Os olhos de Brás levantaram num susto – que se estendeu por longos dois segundos – enquanto ela apresentava o cano prateado da pistola dele para o meio do seu peito. Ele sorriu, tenso.

- Vai largá minha mãe e vambora agora!

Ele deu um passo pra cima dela, com as mãos pra cima.
- Vô porra nenhuma! Abaixa essa merda aí menina...

Ela não tremeu o braço. Brás ficou paralisado. Por segundos vermelhos saídos das veias do demônio ele viu a vida toda... piscou, e ela começou a tremer. Ele deu mais um passo. E outro. Já estava com o peito colado no cano quando disse:

- Tu num vai atirá nos meus peito me olhando nos olho!

Ela deu um passo para trás, abaixou o braço, a arma, o corpo. Caiu sentada no sofá, a pistola entre as mãos, a cabeça entre os joelhos.

Ele era rei. Vestiu a camisa, virou de costas e foi pro banheiro.

- Blam!

Entre a cintura e a bunda. Ele dobrou o joelho e enfiou a cara na porta do banheiro com tudo. Se tremia e balançava mordendo o beiço, com os olhos apertados. O sangue escorria quente e ela achou que ele se contorcia engraçado.

- Caralho Marieta... larga essa porra e pega a chav...

- Blam! Blam!

No rim e no meio das costas.

- É, não ia dá pra olhá nos teus olho mermo.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O Velho do Rio




Espírito Santo ali nas margens secas do Rio Iatúnas, pouco antes da entrada do Manguezal, vive o Velho do Rio. Essa história quem me contou foi meu avô, que disse que o avô de seu avô havia encontrado esse velho, no caminho para São Paulo.

Depois da estrada, o tempo fechou, os cavalos um cansou, outro fugiu. Ficaram no mato: o avô do avô de meu avô, três crianças, tataravó e o Simão. Ainda não havia a ponte, mas era onde ele morava que fizeram ela. É o que contam.

Simão, coitado, era pele e medo. Se agachou - que sua "Chica" se foi nas alturas da Bahia - e chorou por dois dias. Na terceira lua, seu gemido sumiu. As crianças juravam que Simão virou pedra, os ossos se fecharam de nunca mais abrir e a boca aberta da saudade que não preenchia ficou um oco numa pedra estranha vazada de pé e mão que lembrava um corpinho fraco, agachado no mato.

Tataravô seguiu depois do cavalo acabar, queria achar um rio. Pra achar gente, comida e seguir. Caminho serpenteava de não ter como procurar estrela na mata fechada. A coisa de duas luas ele voltava com uma paca, cotia, raposa e depois levava tataravó e as crianças para descer mais com ele. Sempre assim até Marieta, pequena mais pequena das crianças, pegar bicho do pé. Era ruim que ia morrer, mas era bom que devia ter rio por perto. Daí não ia todo mundo morrer.

Foi quando o barulho da água correndo bateu junto com barulho de flauta soprada e correram loucos mata adentro com a flauta e a água cada vez mais altas. Levou coisa de minuto para encontrarem um rio longo, plano, chato, com as água escura e a margem seca quebrada. O leito era pra mais de trinta passos e não parecia assim muito amigo de se atravessar. Coisa que perceberam que não tinha era peixe pulando, nem movimento que se visse, daí a correnteza. Do outro lado, um velho, sentado, tocando flauta.

Aquilo animou a imaginação dos pequenos e nem Marieta parecia sentir o tropeço que esguichou sangue da corrida na mata. Ficou de planta do pé de esquerda e ponta do pé de direita, ali tosca magrela, abraçada com outro pequeno, e olharam o velho como se fosse um deus, ali, tocando a flauta. Foi quando ele parou, abriu as pálpebras recheadas de um branco vazio que nem o nada, levantou cabeça e fechou de novo os olhos. De longe o rosto ficava todo branco da gente ver só o queixo de tanto o velho jogava cabeça pra trás. Parecia sentir a gente pelo cheiro.

O Velho puxou uma vareta de bambu enrolada de pano velho amarelo e preto por dentro da roupa, levantou e seguiu para o sul usando a bengala para marcar seus passos e apontando pro povo do outro lado do rio que seguisse também. Pra lá de duzentos passos as margens estavam coisa de vinte passos, mas aquele rio parecia enganar demais. O avô do avô de meu avô prendeu uma pedra num enganchado de dois cintos e jogou na água. A pedra foi puxada pra baixo e pra direita rápida que nem cobra d'água e arrebentou o cinto de um dos pequenos, que agora ia andar carregando a calça.

O velho sentou do outro lado. Era onde as margens ficavam menores, lá pra frente não se encontravam mais e o velho disse que era só o oceano antes daquelas margens se encontrarem. Sentou, tirou sua flauta de dentro da roupa e tocou. Tocou e a Marieta ficou perturbada. Não fosse o pequeno das calça-arriada pegar pelo pulso, ela ia se meter na água e nadar. Todo mundo estranhou aquilo. O avô do avô de meu avô disse ao velho que parasse de tocar, que ele ia tacar uma pedra lá do lado de lá do rio na cabeça do velho, se não parasse. O velho baixou a flauta da boca e perguntou a razão. Foi daí que eles começaram a gritar de um lado e do outro do Rio. Primeiro de raiva, depois de prosa, interesse. Até que o velho tava contanto história pra toda aquela gente miúda, do outro lado.

Contou que tudo era criação da cabeça deles, inclusive a distância das margens do Rio. Que a cabeça deles era como o rio, que o imenso do que se pode ver na superfície nunca é nada do universo que acontece por baixo. Entre o restrito da imagem de cima e o infinito da vida veloz por baixo, é que opera nossa cabeça; tateando no escuro nunca sabendo nenhum fundamento. O velho era bom de história e encantava os pequenos, tataravó e tataravô. Até altas horas que se irritou de contar história e zangou com o avô do avô de meu avô.

- Quer ser você ou ser o Velho do Rio? O Velho do Rio sou eu. Eu sou eu das histórias, se você ouvir todas vai deixar de ser você, vai virar Velho do Rio.

Foi quando o avô do avô de meu avô soltou a corda que amarrava Marieta na margem de cá do rio, o Velho tocou sua flauta, Marieta sangrou pela margem até o lado de uma Siriúba velha e colocou o pé no rio. Marieta andou sobre as águas até o lado de lá, que foi como o avô percebeu que tinha pedras altas no leito do rio naquele ponto. Todos correram atrás de Marieta, na frente os pequenos, que deviam ser irmãos, mas chegando do outro lado do rio não havia velho nem Marieta, só essa flauta aqui, que tava no chão.

Conto e Receita: Renato Kress

sábado, 10 de outubro de 2009

Rosas




Sandra achava ele lindo. Seus olhos castanhos eram levemente puxados, não como orientais, mas como dos esquimós, como da Björk, quase Richard Gere. Alto, cabelos pretos lisos e com um olhar entre a indiferença entre aquela tarefa e a curiosidade sobre as reações dela. Já era a terceira vez que ele vinha à sala de Sandra entregar uma carta linda, mas dessa vez trouxe flores. Sempre de calça jeans e uma camisa social, ele se aproximou e as meninas do escritório todas fizeram piadas e gracejos, o Almeida levantou e foi ao banheiro, claramente irritado com o ibope do rapaz.

Sorriu muito timidamente para Sandra e entregou-lhe as rosas colombianas, gigantes, com um cartão preso no arranjo por um clipe de papel verde de tamanho descomunal. Os olhos de Sandra passaram completamente através das rosas e se encaixaram fixos sobre aqueles olhos castanhos repuxados. Ela quase conseguiu ver um sorriso naquele olhar, mas mesmo que ele existisse, ela não veria, tal era a proximidade que estava daqueles olhos. Entre eles, as rosas colombianas.

O rapaz deixou as rosas nas mãos de Sandra e virou-se rápido para a porta da sala. Em quatro passos já estava virando à esquerda e saindo da vista de todos, deixando a pergunta sobre o nome dele na boca entreaberta de uma Sandra que segurava o buquê com o interesse que seguraria um papel qualquer do escritório.

Ignorando olhares e comentários, sentou-se atrás de sua mesa e ficou olhando fixa para a porta, como se aquele lindo entregador viesse aparecer a qualquer momento para trazer qualquer outra carta, flor ou bom-bom que seria prontamente ignorado. Percebeu que o buquê era enorme e que ela estava abraçada a ele, pensando nos olhos castanhos. Colocou de qualquer forma o buquê em cima da lata de lixo – era o que mais se aproximava de um vaso por ali -, tirou a carta do clipe e colocou em cima da mesa. Voltou ao trabalho com a cabeça recheadas de imagens do dia em que aquele entregador trouxesse flores dele próprio, mesmo que fosse apenas uma rosa, e das pequenas.

Às seis horas arrastou tudo o que havia dentro da mesa para dentro da bolsa e saiu apressada para nada. Mentira, apressada para uma aula de spinning, outra de boxe e uma noite de quinta-feira com sorvete de macadâmia e filme na TV a cabo. As flores ficaram no lixo e foram pegas pelo seu Antenor, da manutenção,cuja esposa teve uma quinta-feira inesquecível.

Em casa, depois de levar dois cruzados na aula de boxe por baixar a guarda para ver no espelho se seu cabelo estaria bonito, abriu a bolsa de cabeça para baixo em cima da cama para fazer seu ritual de troca de bolsa de trabalho para o dia seguinte.

Entre cadernos, agenda, celular, contas e revistas de moda e comportamento viu o envelope verde claro da carta que veio junto com as flores. Respirou fundo afetando uma careta de indiferença, quase como se imaginasse que estaria mostrando ao rapaz de olhos castanhos que não dava a mínima para quem quer que fosse o tal admirador secreto, se recostou na cama com a carta na mão e o controle remoto na outra.

Ainda faltavam cinco minutos para o filme. Abriu o envelope, que começava com uma citação:

“São João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma e o buquê que as reúne é o símbolo da perfeição espiritual” – Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, dicionário dos símbolos.

“A flor é idêntica ao elixir da vida e a floração é o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. A rosa, particularmente, traduz a alma, o coração, o amor. Quando nos aproximamos para sentir seu aroma, delicado, aproximamos o nariz do centro da rosa e, se olharmos para ela assim, é possível contemplá-la como uma mandala perfeita e considerá-la como um centro místico. A rosa vermelha, por sua relação com o sangue derramado, converte-se na imagem de um renascimento místico.

Quero renascer em você.

Sei onde você trabalha, mas só isso. Quero que você me diga, quando quiser, as demais informações. Por favor, deixa seu telefone com o entregador amanhã às onze.”

Sandra jogou a carta de lado e ficou pensando em como o Eric Bana estava lindo e gostoso como Heitor em Tróia. Por quase uma hora e meia, até desmaiar.

Acordou atrasada e com as roupas de ontem, tomou um banho corrido e um iogurte, colocou comida para a gata, uma maçã e um cacho de uvas num saco plástico dentro da bolsa e saiu.

Às dez e cinqüenta e cinco um marca-passo imaginário prenunciaria um ataque cardíaco em Sandra. Era a primeira vez que sabia quando o entregador viria. O dia e a hora. Onze em ponto e os olhos fixos de Sandra deixavam sua boca seca, não fosse o batom e o entregador – que ainda não tinha aparecido – veria seus lábios esbranquiçados, todo o fluxo de sangue parecia estar indo para a boca do estômago, seus dedos, imóveis sobre o teclado, pareciam não ter peso algum e também não ter força nenhuma.

Às onze e três ele chegou, acompanhado de uma inspiração profunda que elevou os seios de Sandra e travou-lhe as costas. A língua, livre, percorreu os lábios e o interior da boca, umedecendo, receptiva. Quando deu por si o rapaz, alto, já estava de frente para a mesa de Sandra, parado, esperando.

- É... oi. – levantou-se às pressas e tropeçou na lata de lixo, foi quando percebeu que as rosas não estavam mais lá – você está esperando um cartão ou um papel, certo?

- Isso. – disse o rapaz, com os olhos cravados nos olhos dela.

Sem tirar os olhos daqueles olhos incríveis do entregador, Sandra respirou e disse:
- Eu decidi que não posso entregar esse papel para o seu chefe.

O rapaz deixou que seus lábios e olhos se abrissem de leve denunciando um ar de espanto, olhou para o chão por alguns milésimos de segundos, piscou e voltou a encarar Sandra quando percebeu que ela procurava o olhar dele com o dela:
- Não posso entregar esse papel porque estou interessada em outra pessoa. Uma pessoa que eu tenho visto bastante ultimamente e que tem me feito ignorar rosas, cartas, declarações esperando o momento de ela atravessar aquela porta ali, dia sim, dia não, com alguma carta linda, mas que não me move a nada, porque tem um cara muito mais interessante, que traz essas cartas.

O entregador, com uma expressão indecifrável, como se buscasse algo na memória, diz:
- Bem, meu... patrão disse que esperava que seus gestos de carinho e afeto pudessem ser valorizados com uma chance, um passo, um movimento, um telefone.

Um sorriso complacente, como o que damos a crianças, passou pelo rosto de Sandra, enquanto sua cabeça negava o pedido e seus olhos permaneciam fixos nos do entregador.

Ele mordeu os lábios, expirou rapidamente como se perdesse todo o ar até então rígido e sério com que se portava e assumisse repentinamente uma expressão corporal e facial de quem pode facilmente dominar o ambiente e diz:
- Quer dizer que nenhuma das ações dele, nenhum gesto de carinho, interesse, dedicação serviram de nada? Não importam suas ações?

Ela mordeu os lábios achando toda aquela mudança de postura muito, mas muito sexy mesmo. Estava se derretendo na frente de seus colegas de trabalho.

- Não.

- Que pena... Quando sentei do seu lado no restaurante aqui da esquina, a duas semanas, e ouvi você conversando pelo telefone com sua mãe, acreditei realmente que você fosse valorizar determinados atos. Você disse a ela: “Não mãe, não existe esse tal cara que entrega flores, que escreve bonito, é carinhoso e sensível. Se existir é gay, tá casado ou não vai querer nada comigo.”. Te achei uma mulher linda, mas além disso, principalmente, uma mulher que fosse valorizar os atos de um cara carinhoso e sensível.

A boca aberta entre o espanto e um esboço raso de sorriso de Sandra gaguejou sons indistintos enquanto a mão do “entregador” pegava na dela e ele sorria.
Ela olhou pro chão, piscou os olhos e olhou para ele pela primeira vez como um homem. Apertou suas mãos nas dele.
- Desculpe.

Ele sorriu e piscou o olho esquerdo.
- Que isso não se repita!

Conto e Receita: Renato Kress

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Quatro Ossos



Às onze horas os pés de Durval escorregavam meias sociais negras pela sala. A porta do quarto ficou entreaberta, o som da fechadura poderia acordar Ana Luísa. Pensou em sentar e escrever um bilhete, mas a cadeira pesada, o chão de taco, melhor não. Pegou um papel amarelo de uma caixinha ao lado do telefone e rabiscou com pressa sobre a mesa de vidro. Grudou na geladeira com um ímã-foto do batizado do sobrinho que agora já tinha seis anos.

Pegou as chaves do carro, colocou um tênis velho e desceu pela entrada de serviço. Encontrou Neuza, a diarista octogenária que trabalhou para seus pais e agora era babá de Ricardinho, seu pequeno de dois anos.

- E aí, Neuza? Pegou a galinha?

Neuza abriu a mochila da “nyke” comprada na Central do Brasil, remexeu um saco preto e, antes que abrisse, Durval já ouvia claro os cacarejares da ave.

-Não abre não, Neuza. Deixa. Lá a gente vê como vai fazer com isso.

Seguiram pela saída de serviço e Clodoaldo, porteiro da noite, estranhou ter que abrir a porta para “seu” Durval de boné, tênis e camisa de malha saindo de noite com Neuza.

Desceram a ladeira da rua, pegaram um táxi até Caxias. Depois de três instruções de Neuza – passando por uma área de mato alto onde a luz da cidade vazava longe e as estrelas perdiam a timidez metropolitana – chegaram a um muro cinza, chapiscado de cimento e encimado por cacos de vidro verde escuros. O portão era um só, para carros, e passava por cima de um trilho que corria da direita para a esquerda. Durval pagou a corrida, pediu que o taxista esperasse e saiu com a mochila de Neuza na mão.

Ao aproximar-se do portão, ouviu o som metálico de uma grossa corrente de ferro sendo remexida até cair elo a elo no chão. O portão deslizou suave. Quase nenhum barulho. Lá dentro sorria uma senhora cercada de dois cachorros de grande porte, um branco, um preto.

Durval deu um passo para dentro do terreno, passando o pé pela linha divisória por onde correu o portão. O cachorro branco chegou mais perto, olhou fixo para a mochila nas mãos de Durval e rosnou.

- Calma, Apolo! – Disse a senhora. A voz era a mesma que havia conversado com Durval no início daquela semana, no telefone, mas o tom, severo, seguro, era bem diferente.

O cão parou, como uma estátua, olhando fixamente para a mochila e, coisa de segundos que para o amedrontado Durval pareceram anos, sentou na grama baixa. Os olhos de Durval procuraram afoitos aos da pequena idosa que havia parado quase magicamente aquele cão enorme. Procurava o consentimento para entrar. Ela assentiu com os olhos e um sorriso nebuloso.

- Boa noite, senhor Durval! Vejo que trouxe o que lhe pedi. Se Apolo teve essa reação a galinha é bem gorducha e nova, certo?

- Na verdade não sei. Neuza foi quem me trouxe ela. – Disse o nome e lembrou-se de olhar em volta para procurar sua velha empregada, quase como uma segunda mãe. Encontrou Neuza recostada no muro da casa, do lado de dentro, sentada sobre um banquinho de madeira. Olhava fixamente para o cachorro preto, que não havia se mexido e, não fosse a cor viva de seus olhos, Durval pensaria que era uma estátua de mau gosto ao lado da velha.

- Neuza, pode vir.

- Aqui tá bom “Dudu”. Tô te vendo.

Durval virou-se para frente e estranhou que, sem ouvir nenhum som na grama, a senhora já estava de frente para ele – coisa de uns sete passos de onde estava antes – e o cachorro preto estava, de novo, ao lado da senhora, sentado. O único que permanecia parado, onde estava antes, era Apolo, o cachorro branco.

- Bem, o que eu devo fazer agora?

- Primeiro o senhor se acalme. As batidas do seu coração eu posso ouvir, imagine os cachorros. O senhor está segurando essa mochila com as duas mãos, em frente ao joelhos... por que não aproveita a posição e coloca sua mão direita pra sentir a pulsação do punho esquerdo? Conte vinte pulsações. Os cães ficarão onde e como estão.

Durval sentiu seu punho gelado e levou um tempo para encontrar o pulso. Foi contando então até vinte. Antes que pudesse finalizar a contagem a senhora virou de costas e fez sinal que a acompanhasse:

- Já está bem melhor meu filho. Apolo, junto.

Seguiram dando a volta por trás da casa e Durval podia sentir os olhos de Neuza se perdendo da imagem dele. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, mas seguiu cada vez mais confiante pelo menos de que os cachorros eram muito bem treinados e bem obedientes. Afinal, ele era o estranho naquele ambiente e era natural que o cachorro ficasse nervoso.

Atrás da casa de madeira da senhora havia uma pequena elevação, uma espécie de morrinho ladeado por uma parede quase vertical de terra e pedra. A senhora levou Durval até essa parede e o fez virar de costas para ela, de frente para a casa. Durval se assustou com a proximidade que os dois cães estavam dele. A um salto estariam em cima dele. A distância que a senhora estava dos cães era a que os cães estavam das coxas e cintura de Durval.

Olhando rapidamente através daquelas duas manchas, negra e branca, divisou os olhos da velha.

- E agora?

- Agora você precisa que essa galinha morra, porque você vai precisar de quatro ossos dela daqui a pouco. Mas se você tirar uma vida vou ter que limpar tua aura ruim e isso leva dias. Acho que o senhor não quer voltar aqui amanhã e depois...

- E o que eu faço?

- Você pensa.

Durval abriu a mochila instintivamente. Mesmo sem saber ainda o que aconteceria, o que deveria fazer. A galinha era marrom, parecia nova e era mesmo bem gorducha. Se mexeu demais enquanto Durval abria o saco preto dentro da mochila e, sem querer, Durval pegou ela pelo pescoço. A fragilidade daquele pescoço, ainda mais com aquele bicho barulhento se debatendo e soltando penas, fez com que Durval se lembrasse: Eu não quero vir aqui de novo.

Foi quando através da bruma desfocada do seu ângulo de visão, ele percebeu a ausência das manchas negra e branca. Olhou rapidamente para frente e para os lados. Apolo à sua direita, o cão preto à sua esquerda. Os dois rosnavam e se aproximavam da linha da cintura de um Durval agora desesperado.

Não se sabe se foi sorte, o pensamento rápido de Durval, a galinha se debatendo ou o quê, o fato é que a galinha soltou-se e se destrambelhou pelo chão à frente de um Durval atônito e ansioso. Em menos de cinco minutos os cães haviam limpado a carne dos ossos da galinha. Durval ainda não sabia se havia “matado” ou não. Olhou para a senhora, que, por algum motivo, parecia estar achando muita graça naquilo tudo e, sem pestanejar, esticou o fino indicador em direção ao meio dos dois cachorros e, no entender de Durval, despejou uma gota de veneno:

- Você precisa dos ossos. Quatro.

Durval olhou para os cães. Entretidos com a carne. Os ossos pareciam ter sido deixados de lado. Se aproximou lentamente por perto do cachorro preto – ele ficava mais quieto que o cão branco, o tempo todo – se agachou ao lado do cachorro e mirou a mão num pedaço de costela quebrada que estava ao lado da pata esquerda do animal. Com grande agilidade Durval pegou o osso, na verdade dois ossos vieram juntos e, no momento em que voltava seu cotovelo para trás, retraindo o braço, a mandíbula do cão negro se agigantou por sobre o antebraço de Durval e, não fosse a intervenção – a estranhíssima intervenção – de Apolo, provavelmente a noite de Durval terminaria numa anti-rábica num hospital público mais próximo. O mais estranho de tudo: o salto de Apolo para cima do cão preto jogou dois ossinhos em cima do pé direito de Durval.

A mão leve e magra da senhora tocou o ombro esquerdo de um Durval ainda atônito.

- Alguém está com sorte hoje. Vamos?

Pegou os dois ossinhos ao lado de seu pé direito e seguiu a velha por alguns passos em direção ao muro que prenunciava o pequeno morro atrás da propriedade. Só uma vez olhou para trás e a cabeça de Apolo estava levantada, olhos fixos nele.

Ao aproximarem-se do muro de pedras, a senhora pediu-lhe que retirasse uma das pedras. Indicou qual. Não era grande, nem diferente das demais. Durval encaixou o pé na pedra, prendeu o quadríceps como apoio e usou os músculos das costas para puxar... e com que facilidade ela veio!

Uma fenda negra se abriu, uma fenda vertical e profunda. A boca da senhora estava perto demais da orelha esquerda de Durval quando ele ouviu:

- Uma batida, sim, duas, não, três, talvez. Use os ossos. Uma pergunta por vez. Juntando as perguntas, você junta as respostas e pode não fazer sentido. Vou ver os cachorros.

Se aproximou da fenda, ladeada por gramíneas e arbustos, enquanto enfiava bem no fundo do bolso da calça os quatro ossos. Avançou a direita e tocou na lateral, molhada de orvalho, enquanto uma brisa quente e leve chegava por dentro da fenda.

Sem tirar a mão direita da fenda, separou com os dedos da esquerda um dos ossos no bolso, levantou e tentou entrever o fundo daquela reentrância na pedra. Nada. Escuro total.

Respirou fundo e se compenetrou na pergunta:

- Aqueles telefonemas noturnos, depois da viagem de trabalho de Luisa a Fortaleza, eram de algum homem?

Jogou o osso com força, quase com raiva de si mesmo por chegar até ali, por não conseguir confiar plenamente na esposa. Por achar tanto que ela mentia que amaldiçoava o ar que saía de sua graganta.

- Tic, tlak, tec, tik.

Quatro vezes. O que são quatro batidas? “Sim, não, talvez... sim de novo?”

Respirou fundo e pensou na outra pergunta.

- Ela ainda me ama?

Jogou o ossinho com menos força e mordeu os lábios e encolheu os dedos dos pés dentro do tênis enquanto ouvia as batidas do ossinho dentro da fenda.

- Tlac, pec, tik.

Talvez? Que merda de resposta era “talvez” para uma pergunta dessas? Pra Durval ou ama ou não ama. Por algum tempo tudo ali parecia ridiculamente infantil e sem sentido e ele pareceu a si mesmo uma criança grande de short, meia social e tênis jogando ossos de galinha num buraco no muro no meio do nada. Pressionou as laterais da boca uma contra a outra como quando não queria dar atenção a alguma infantilidade de algum colega no trabalho, ou quando algum sobrinho lhe falava sobre desenhos animados etc. Se sentiu ridículo ali... “talvez”? Lembrou do táxi esperando do lado de fora.

Quando deu por si, sua mão já estava dentro do bolso, acariciando suas duas outras respostas. Tirou o terceiro osso do bolso. Pergunta direta, sem rodeios.

- Ela está me traindo?

Respirou fundo e jogou o osso, prendendo a respiração num aspirar profundo e congelado que estufou-lhe o peito como se criasse uma barreira à notícia.

- tlec, plac, tik... tik...

Quatro batidas? “Sim? Eu vou matar aquela filha da puta!” Durval andava em círculos, repentinamente enérgico e cheio de si, socou o muro de pedras e talvez tivesse quebrado o pulso, mas não sentia nada além de ódio e o mundo girando. Agachou na grama e de seus olhos vermelhos descia a lágrima quente enquanto ele esmurrava o chão rangendo os dentes. Olhou para trás na esperança de encontrar o cachorro preto e aceitar seu desafio. Queria matar alguma coisa, precisava sentir sangue nas mãos.

“Alergia a camarão! Aquela vadia tem alergia a camarão! Eu vou mandar a Neuza fazer um bolo de batata batido com um quilo de camarão e rechear com sardinha, ela come e eu espero quarenta minutos pra chamar a emergência. Vou ver a piranha agonizando! Em vinte ela pára de respirar. Melhor: vou me descabelar, pegar ela no colo e descer o elevador gritando, só não posso chamar a ambulância. Tenho que meter ela no carro e ficar dando volta até o hospital.”

Não ocorreu a Durval pensar em como a alergia a camarão e a idéia do bolo de batata haviam aparecido tão subitamente, como uma solução mágica, para um problema tão grave. Como se determinadas idéias, com requintes e detalhes, se formassem assim, do nada.

“Importante é servir ela quando o Ricardinho estiver na casa da Gabriela... meu Deus, o Ricardinho! Eu não posso tirar a mãe do meu filho! Mulher infeliz, filha-da-puta desgraçada!”

Mordeu as paredes internas da boca até sentir o gosto ferruginoso do sangue. Ajoelhado, arrastou a cara na grama negando com a cabeça. Socou, com sua mão direita o solo e jogou as costas para trás com o impacto do soco. A mão esquerda, ainda com o último do ossinhos da galinha, abriu o braço para trás, dando um soco no vazio: “Que ela morra!!!”. O ossinho se desprendeu da mão de Durval e voou em direção à fenda...

...tik.

Latidos. Fortes latidos no portão da casa. Barulho de mulheres gritando... Luísa!

Correu para circundar a casa de madeira quando viu Apolo vindo em sua direção. Ele latiu. Barrou seu caminho. Mas diante da fúria de Durval, que não desacelerou nada frente ao enorme cão branco, Apolo simplesmente baixou o focinho e fechou os olhos.

Na frente da casa Durval passou correndo por Neuza, que gagejava aos prantos, apontando para o portão do terreno:

- Do-dona Lu-Luísa veio a-atrás da da gente! ... o ca...chorro preto!

Durval seguiu em direção ao portão, desacelerou o passo. Uma trilha vinho de sangue seguia até atrás do poste de luz mais próximo do muro. Ao acostumar-se à escuridão por trás do facho de luz do poste, ajoelhou, riu e chorou. “Na goela, desgraçada, na goela.” Viu que o cão negro tinha tetas, e terminava de mastigar a jugular de Luísa.

Conto e Receita: Renato Kress

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Hannah




- Oi!
- … oi.

Atravessaram a faixa em botafogo e seguiram em direção a uma rua entre a Cobal e a Real Grandeza. Ele mergulhava o queixo no peito, mordia os lábios, apreensivo. Ela olhava os prédios ao redor, parecia pensar por imagens que se formavam à sua frente. Na outra calçada deu um soco no ombro dele.

- Muito doido isso, não acha?
- Muito...
- Cara, você é muito maluco. Me cutuca no Orkut, me faz ir atrás de fotos de vinte anos atrás pra lembrar de você, fica semanas conversando comigo marcando de gente vir aqui até a curiosidade juntar com a falta de saco de dizer “não” de novo, aí eu venho e você fica paradão, viajando.

Olhou para ela com carinho, mas com um olhar confuso, como se não reconhecesse ali, a coisa de trinta centímetros de seu rosto, Hannah, sua namoradinha de jardim de infância.

- Você sempre teve olhos verdes?
- Não, mandei pintar antes de vir - É veludo acetinado semi-brilho! – claro que eu sempre tive olhos verdes, doido.
- Não. Pra mim você tinha olhos castanhos e cabelos pretos... e o penteado da Lois Lane, mas cabelo a gente muda e até ficou melhor assim, mas cor dos olhos... sempre foi castanho, e escuro, pra mim.
- Volta lá no teu HD e passa o Photoshop então...

Deram mais alguns passos para dentro daquela perpendicular entre a São Clemente e a Voluntários. Ele olhava para os pés dela. Ela para os olhos dele.

- Quer dizer que meus cabelos ficam melhores mais longos, mas meus olhos ficariam melhores castanhos?
- Não é isso. É que na minha cabeça você era uma Penélope Cruz, ou uma Catherine Zeta-Jones, não Liv Tyler. Faz parte da imagem.
- Uhu! Liv Tyler, tô bem hein! Boa cultura hollywoodiana, doido. Por isso eu não queria te encontrar. Não íamos nos conhecer, quer dizer, eu ia, ou eu vou. Já nem sei. Mas você quer resgatar uma imagem de Hannah que não existe. Talvez nunca tenha existido.

Parou. Segurou pelo braço o rapaz e olhou firme em seus olhos. Ainda havia alguma sorte de repugnância no olhar dele. Repugnância não porque achasse os olhos verdes feios, simplesmente eles estavam errados. Talvez não tivessem consciência de seu erro e por isso insistissem nele. Fechou e abriu lentamente os olhos, disposto a vê-los assumir a cor da infância, a cor da memória, ou aceitar o que viesse: ...verdes!

- Cara, relaxa, eu saí com você, não saí? Não estamos indo passar onde era a nossa escolinha? Pelo menos admito que você me intriga, que fico curiosa, que adorava como gargalhava das tuas bobagens na internet, que algum interesse tá acontecendo aqui. Meus olhos são verdes e eu não posso competir com uma imagem. É surreal... e injusto.
- Desculpa. Foi... tá sendo... estranho. Você tem razão, é que algo do teu charme tava na aura da beleza pela atmosfera que te envolve, mais que na beleza bruta.
- Minha beleza é bruta?
- Duas pedras nos teus olhos.
Franziu a testa de uma forma que duas mechas castanho escuras lhe caíram pela face, enquanto contraía os lábios:
- Pedras?
- Esmeraldas.
As laterais de seus lábios se elevaram carinhosamente enquanto a área entre suas sobrancelhas se alisava e a cabeça pendia levemente para a esquerda:
- Elogio grosseiro mais bonitinho que já recebi.
- Desculpa.
- Nem tem do quê. Continue assim e estaremos bem. Vamos sentar ali? Naquele café?
- Mas o Colégio é bem ali, na outra curva.

Enquanto entrava no café e puxava uma cadeira, disse, de costas:
- Planeja morrer hoje?
Ele sequer puxou a cadeira que já havia alcançado, à frente dela. Pousou a mão sobre o encosto de madeira e olhou atônito enquanto ela sinalizava que sentasse.
- Como é?
Hannah respirou fundo e desceu os olhos dos dele até o cardápio lentamente enquanto ia falando:
- Planeja morrer hoje? Tem planos de deixar esse mundo material nas próximas horas? Pretende resgatar algum sonho de pureza transcendental, infantil e assexuado num relacionamento doentio com uma pessoa que provavelmente você preferiria não conhecer porque ela não tem mais 6 anos de idade e seus olhos não-castanhos e sua altura de mais de um metro e meio poderiam te assustar? Então: você não vai resgatar isso, essa imagem, essa criança. Nem a sua nem a da Hannah. E se você pretendesse que o resgate que você está procurando fosse dar algum sentido para a sua vida... e sabendo agora – porque eu estou te falando – que ele não vai acontecer, porque diante de você existe outra Hannah como diante de mim existe um outro cara que não meu namoradinho de seis anos de idade, isso podia mudar a direção de tudo. Talvez tudo perdesse o sentido. Você não vai resgatar a “Hanninha” depois daquela esquina, daqui a meia hora. Agora que já ficou bem claro: você planeja morrer hoje por causa disso? – disse quase sem expressão enquanto lia o cardápio.
- Não...
- Então podemos ir lá daqui a meia hora. Gosta de cappuccino?

Conto e Receita: Renato Kress

sábado, 26 de setembro de 2009

Alba



A manhã foi acordada pela silhueta de Daniela recostada sobre a porta da varanda e as cortinas brancas daquele apartamento encaixotado. Livros, cadeiras, móveis, estantes, cd’s, suas imagens se perdiam numa espécie fria de pedreira seca de grandes e pequenas pedras quadradas enroladas com fita isolante. No corredor nenhuma foto. Pregos órfãos silenciavam sobre as memórias que sustentavam a alguns dias. A aurora, rosada, parecia envergonhar-se daquele momento, de ser o prenúncio do fim daquela noite.


Olhava fixamente para Alexandre, deitado de costas. As costas nuas, as mãos por baixo do travesseiro, os lençóis mal cobriam suas coxas. Tentava contar as milhares de pintas daquelas costas, aquela pequena constelação daquele pequeno universo íntimo. A aurora, subindo por sobre o horizonte, roseou as paredes brancas como nunca. Nunca estiveram tão nuas, tão entregues. Daniela sorriu. Alexandre esticou o braço para o lado, não achou Daniela, levantou a cabeça.


- Esse seu perfume, qual é?
O rosa do universo, os olhos apertados e a franja sobre o rosto dele davam um aspecto engraçado ao rosto inchado de sono.
- Quê?
- Que perfume é esse, lindo?


Levou o pulso ao nariz e inspirou profundamente.
- XS, amor. Da Paco Rabanne. Não gosta?
- Amo. Vou comprar. Pra lembrar de você. Tô com ele no meu corpo todo.
- Vem aqui bonita...


Fizeram amor até a aurora morrer nos braços loiros do sol, antes acariciando, beijando, mordiscando, depois mordendo, pressionando, cravando, então gemendo, suando e urrando. Nasceram com o dia. Sentaram no chão da pequena varanda, sem móveis. Alexandre com as costas sobre a parede, Daniela sobre o peito de Alexandre, silêncio de minutos.


Duas horas depois saíam. Alexandre recebia o pessoal da mudança, Daniela pegava um táxi. Alexandre para Tubarão, Santa Catarina. Daniela chegou meia hora atrasada para o chek-in. Um ano na Austrália.

Conto e Receita: ®Ҝ

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Espelhos



Pedro viu Rafael arrastando o espelho da porta do armário para cima. Rafael andava meio estranho de noite, inquieto, calado. Havia comprado um binóculo há duas semanas e ficava, no escuro, observando uma vizinha do outro lado da rua que havia comprado uma esteira e corria, todas as noites, às nove horas, perto da janela.

Pedro via Rafael na varanda, deitado na rede, de binóculo, ou no quarto ajoelhado por trás das cortinas. Pensava que a vizinha iria aposentar a tal esteira: "Ninguém compra isso e realmente usa por muito tempo, já já vira cabide." Bem, Rafael estava arrastando o espelho da porta do armário para cima. Pedro não resistiu: "Quer ajuda seu maluco?", "Se você quiser me ajudar"...

Puseram aquele espelho de pouco mais de um metro e meio de altura em pé, fora da porta. Sequer era pesado, o trabalho ficava por conta da fragilidade mesmo do objeto. Pedro desceu para jantar na rua, dia de feijoada na Adega do Juca.

Rafael abriu as cortinas, acendeu a luz - coisas que não fazia, no quarto, há algum tempo - observou nitidamente a janela da vizinha. Ela ainda não estava lá. Olhando fixamente numa linha reta imaginária entre a janela dele e a janela dela, marcou com um giz, no chão, um espaço. Havia um espelho, ao lado da esteira dela, do lado de fora da porta do armário. Correu para o outro quarto. Pegou o espelho com cuidado, trouxe desviando dos batentes das portas, aquela fina liga metálica envidraçada e colocou na parede. Não ficaria reto. Cairia para a frente. Colocou inclinado, mas, com receio do espelho deslizar para frente, tirou os tênis e deixou no chão, em frente a ele.

Às cinco para as nove ela chegou, tirou a blusa, ficou de top e calça de ginástica e começou a andar na esteira, Rafael só via seu lado esquerdo. As luzes todas acesas, Rafael virou para trás e viu o reflexo andarilho da vizinha e seus longos cabelos negros. Aproximou-se, de lado, nunca em linha reta - não poderia tapar o reflexo dela - do espelho e, beijou-o, acariciou com o dedo mindinho o reflexo diminuto dos cabelos dela. E voltou para a janela, e correu para o espelho. Perdeu-se naquele enamorar até que decidiu ir além. Aquilo tudo era ridículo demais e o fato de seu irmão parecer se divertir com a situação já estava dando nos nervos. Olhando para ela, através do espelho, foi tirando seus joelhos do chão lentamente, apoiando-se nos calcanhares. Foi quando a vizinha olhou - não havia dúvidas, ela olhou - nitidamente para dentro dos olhos de Rafael através do reflexo, daquele ridiculamente pequeno reflexo, Pedro abriu a porta do quarto de sopetão dizendo que nunca mais descia pra feijoada por um motivo idiota qualquer, Rafael, sobre os calcanhares, se desequilibrou, abriu os braços, caiu para frente.

---*---

Quer dizer que a senhorita não sabe como a cabeça do seu vizinho veio parar no seu quarto? E o senhor também não entendeu como encontrou seu irmão decapitado no chão do quarto em cima de um espelho quebrado? Então os senhores por favor me acompanhem que vamo ter que conversar isso lá na DP.

Receita e Conto: ®Ҝ

sábado, 27 de junho de 2009

Cadáver de Escritor


Nenhuma crise. Nenhum remorso. Olhos adiante. Nada houve sobre seus livros numa sala defensiva armada no último cômodo da casa. Nada de importante. Ele lápide levitava sua enorme culpa tal qual distendia sobre o peito verborragias copiadas de Shakespeare, nenhum incômodo. Talvez torturasse as palavras forçando vômitos e outras guturalidades entre a folha e a caneta, o que gerava uma certa diarréia literária sem utilidade, fugacidades em livre associação, tentativas broxantes de uma orgásmica rima perfeita naquele poema sem estrutura. A descoberta o transfigurara. Sexo não escreve bem. O orgasmo resultou inútil, o Frontal resultou inútil, chá de camomila, banho quente, punhetas atrás de punhetas e a mente inerte, inútil. Punhetadas literárias, punhetadas Socráticas, punhetadas Kafkianas, punhetadas com Vinícius, nada. Sequer teve coragem de abrir Drummond. Sim, quisera se embebedar, mas não, é Drummond. Respeito. Ainda havia um mínimo de decência sobre o cadáver, adiado, sequer procriava, sequer homem, sequer banalidades, sequer poesia. Movimentos rítmicos sobre a folha, chamex, papiro, pensamentosdesordenadoslongoscurtosbaixosaltos megalomania, complexo de inferioridade. Pensava em definir liberdade num início de conto, ou poesia, ou crítica, jornal, livro, revista. Cecília! Me embebedo, sem dó! Pôs-se a "Ceciliar" varanda adentro sobre a rede pincelando poemas nas nuvens. Nada seu, nada livre, de original nem a morte. "Quadro arremessa Barata Ribeiro sobre poeta triste".

Receita e Conto:
®Ҝ

domingo, 14 de junho de 2009

Liberdade




Comera pouco, toda a noite sob um bate-estacas infinito entre vultos de carne translúcida e as rusgas d´água que lhe tatuavam a testa e os seios. Uma pílula e uma garrafa d´água. Mãos entrelaçadas sobre a cabeça e o quadril levava todo o corpo na cabeça que pendia de cabelos negros encharcados de sorriso em suor. Sete lábios sobre sua boca, quatorze mãos sobre sua pele, pescoço, cintura, costas, coxas. Era tão certa e de tão lívida foi-se cálida e azul, era toda azul sob aquela luz negra que envidraçava os olhos, sombras engarrafadas. Desceu de um pé que deslizou perdendo-se entre outras duas pernas que em tropeço levaram o pouco de sanidade que inda borboleteava frente aos seus olhos que se embaçaram (envergonhados). De uma noite havia levado o que pensava fosse a liberdade, de uma festa havia restituído toda solidez que lhe dera o mundo, perdeu-se em abrir-se em flor para um manequim oco, era nada. Dos toques líquidos que se perdem no vácuo onde haveria atrito, sente que de tanta liberdade, ela mesma não a quis.

Receita e Conto: ®Ҝ

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Atelier



O cavalete estava ao canto da sala. Mudo. Todo o atelier era um degradê em cores frias. A estética estática das paredes incomodava e eu me perdia em girassóis ambulantes. Havia castelos gemendo torres num coito morte e caos, estrutura em transe estendendo preces tijolares, órbitas globulares cinzas de crianças assistiam pasmas ao tango incendiário entre quatro estátuas: Zeus, Apolo, Afrodite e Eros. Vísceras se contorciam, olhos de crianças cinza tremulavam, Zeus urgia céus, exposto, Apolo flamejava o mundo, Afrodite chorava, dançava e ria, louca, e Eros cortava os pulsos – gilete Hefestos – . Vertejam as vértebras, aorta-se o lírio divino pelos rios do mundo e, na insânia da egonia cósmica Zeus e Apolo se fritam, Afrodite desintegra-se em flor, regada do sangue filial, salgado, viscoso e vil, degenera e morre. De seu reino submerso Eu-Hades sento no sofá, coço o saco, pego uma latinha e ponho no Animal Planet.

Conto e receita: ®Ҝ

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Kinder Ovo



Estava com sono. Vi as folhas do texto que tive dois meses para revisar, aquelas folhas virgens. O prazo é hoje, daqui a algumas horas - pensei. E me estranhei na frase. Muitas vezes não estava preocupado com nada além do fato de não estar preocupado com nada. É que não me parecia ser coisa de homem sério, essa não preocupação. E, por alguma razão, era importante ser sério, como ser homem. Não digo da heterossexualidade, digo da hombridade mesmo. Peguei os Kinder Ovos que comprei na farmácia. Sempre paro em farmácias. Na verdade as farmácias são as minhas papelarias da noite. Eu odeio chocolate. Odeio é exagero, é que eu não ligo mesmo. Precisava de um elemento surpresa na minha vida. À uma e meia da manhà, voltando da Cobal do Humaitá e com umas trinta páginas para escrever para dali a oito ou dez horas, o kinder me parecia a única surpresa possível. Comprei três. Se não gostasse do primeiro e do segundo poderia manter o terceiro fechado, colocar nele todas as surpresas que quisesse, na geladeira. Abri. Até comi o primeiro e o segundo chocolates, mesmo sem vontade. Mastiguei aquela massa bicolor doce e gordurosa porque precisava ver a surpresa e no carro da Joana não tinha onde colocar o chocolate. Ela também não quis.

Na bagunça de micropecinhas dentro do ovo transparente - que costumava usar como ogiva de bomba com tinta, era fácil: colocava água com corante numa parte e fermento na outra, junta, balança e arremessa - vi um extraterrestre, cinza, capacete azulado transparente com antenas. Era "Zupt"! Eu tenho essa coisa de ficar dando nomes. Olhei pra ele e "Zupt", era Zupt. Mais tarde descobri que as pecinhas eram da nave de Zupt.Como não faço ocm a vida, segui o manual de instruções. Estava com sono, não dava tempo de teimar em ser original, ignorar as instruções e monstar um trator para Zupt. Foi nave espacial mesmo. Abri o segundo chocolate. Não vi o que tinha no ovo. Joana parou o carro. Hora de gentileza, ela também estava com sono. Agradeci a carona, corri pra casa. No caminho caí na asneira de verificar ao Paulo, um dos porteiros da noite, que já o tinha visto na noite anterior. Perguntei - que fique bem claro, era retórica! - se não davam descanso a ele. Chamei o elevador, que já estava no térreo. A porta não abriu. Paulo resolveu me contar, desde o Big Bang que os avós fizeram na pororoca, a história da vida dele. Chamei o elevador. Paulo me falava das horas, jornada de 12 horas de trabalho e descanso de 36. foi a única frase que ouvi. Tive pena. A porta não abriu. Paulo virou sua cadeira para os elevadores, como se me chamasse, à uma e meia da manhã, com trinta folhas de dois meses para redigir lá em cima, pra sentar ali, passar algumas horas, aliviar a carência. Lembrei que às vezes o elevador semi-trava de madrugada, era preciso abrir com as mãos. Paulo me falava de filhos. Pensava o quão ridícula seria a cena: Puxo papo com Paulo; Paulo se empolga; chamo o elevador; ele não abre; abro as portas com as mãos e entro. Ridículo, completamente ridículo. Vai pensar que estou cagando para o que ele pensa. Sem saber o que é retórica vai sacar o sentido da pergunta, o interesse era fachada para polidez necessária. Por algum motivo era importante ser educado, como ser sério. Um casal chegou. Abri a porta para 'eles'. Paulo desceu. Se a diferença entre meus olhos e meu umbigo é sempre a mesma então foi Paulo quem desceu.

Não pude conter a curiosidade. Fiquei nu. É o comum ao chegar em casa. Nu meti a mão no saco. Peguei a segunda ogiva - ri de Deus ter me dado talento para desenhar e tocar piano, de resto tenho a coordenação motora de uma criança de 4 anos, cortar em linha reta ou abrir uma ogiva de Kinder Ovo é uma odisséia. Abri. Dessa vez não identifiquei nada. Nda mesmo. Direto nas instruções. Era o K03 n.51 (ah, agora sim!!), um parafuso sobre uma base de rodinhas que movimentava uma engrenagem dentro de uma base azul. Sem graça. O parafuso tinha uma cara. Sorridente. montei o treco. Era "Squetch", ou "Roc", ou "Crok", tinha que ser algo que desse o som de um parafuso sendo torcido - eu não sei um verbo para um parafuso. Torcer, colocar, introduzir, enfiar, girar? Não escolhi o nome. Ou escolhi. Era "Parafuso". Pronto, coloquei os dois me olhando enquanto digitava as páginas do trabalho. Parafuso tinha os olhos tortos. Num relance percebi, tentei ser discreto mas não sei se dei na pinta. Percebi que Parafuso tinha um olho em mim e o outro em Zupt! já passava das duas e meia. Estava com sono. Era minha cabeça. Fui pegar gelatina. Ligar Enya baixinho para escrever. Voltei, agora com os ouvidos e a boca ocupados. Relance. Não era minha imaginação, Parafuso estava fria e fixamente vidrado em mim e em Zupt! Percebi. Parafuso era uma espécie de super-ego. Tava me vigiando, vigiando meu Zupt! Qualquer viajada que eu desse no meio do trabalho ele estaria ali, olhando, pros dois. De repente não dava pra pedir carona, simplesmente não dava para "Zupt!" para fora do trabalho e começar a escrever outra coisa, ligar a tevê, gravar mais doze CD's nem procurar uma gráfica nas amarelinhas, mandar imprimir cartõs de visitas. Era eu, o trabalho e Parafuso. Apesar da carcaça azul, Parafuso era (ainda é) cinza. lembrei da Gestapo. Depois de meses sem meter as caras, Parafuso era inevitável. Esse foco, esse aprofundamento, essa concentração de massa, tensão e força sobre um único ponto. Parafuso era complementar de Zupt. Não digo oposto em nome da originalidade e porque está tarde para acordar a distinta senhora Dona Dialética. que dorme cedo e permanece intacta. Na realidade somente Parafuso era necessário no momento. Precisei de Zupt apenas para reconhecer Parafuso. Simples, básico até. Parafuso é Parafuso porque não é Zupt. E vice e versa. Lembrei da Gestapo. Recomecei a escrever as folhas outras, trabalho antigo, prazo breve. Dei-me conta de que jamais abrirei o terceiro ovo.

Receita e conto: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?