domingo, 31 de maio de 2009

Bestiário íntimo do homem

Amiga-colorida: Ser mítico dotado de escamas de peixe e de coloração variada. Espécie larval de Namorada (ver “Namorada”) que ainda não desenvolveu seu órgão produtor do pó amarelo e possui uma capacidade muito limitada de causar ilusões. Há os que dizem que é uma das formas mais estáveis do que pode vir a se tornar uma Namorada, mas essa leitura tem também seus críticos que insistem na estabilidade e na dificuldade de se mudar a natureza desses seres. Geralmente tendem a ser muito bem animadas e festivas, embora sua pele escamosa as torne extremamente escorregadias. Existem variações com graus afetivos diversos: a “peguete” e “trepete”.


Amante: Criatura alada ou serpentina mal bem-resolvida ou bem mal-resolvida em caráter sexual e psíquico com quem se exerce o degustar e regurgitar de flúidos corpóreos.
Variante serpentina: Súcubo – Demônio feminino que se esgueira pela noite copulando com homens de caráter fraco, perturba-lhes o sono e incute pesadelos.
Variante alada: Íncubo – Demônio masculino dotado de asas escamosas que pousa sobre corpos jovens de meninas e mulheres cujas mentes possam sintonizar. Perturba-lhes o sono e sua ação tende a deixar lençóis molhados na manhã seguinte. Contrariamente à súcubo, os íncubos tendem a causar sonhos agradáveis.


Ex-namorada: Espécie multiforme de criaturas dotadas de capacidade de leitura mental dos que já sofreram seus ataques. Esse estranho e complicado efeito ou capacidade, muitas vezes, pode vir a se manter por anos. Têm forte tendência à agressividade. Existem relatos de vítimas que juram terem podido - entre as espécimes de natureza superior - domesticar e conviver de maneira pacífica após um ou às vezes mais de um ataque da mesma criatura.


Namorada: Forma larval da Noiva (ver Noiva). Essa criaturinha borboleteante tende a depositar um pó amarelado muito fino que, por meses ou anos, pode causar os mais diversos efeitos nos que travem contato com elas. Geralmente dóceis e amáveis tendem a gerar ilusões com graus variáveis de persistência. O efeito imediato de seu primeiro ataque costuma ser uma espécie songa-monga de euforia abobalhante. Existem relatos de que algumas da espécie não geram ilusões, mas têm a capacidade efetiva de influenciar e modificar a realidade. Ainda não se tem certeza de que esta não seja apenas uma questão de ilusão extremamente persistente.


Noiva: Forma idílica e pueril da Esposa (ver Esposa). Essa forma avançada da Namorada existe enquanto potencial e, à medida em que esse potencial não se cristaliza em Esposa, seu temperamento tende a tornar-se agressivo. Possui exatamente as mesmas características descritas anteriormente para a Namorada (ver Namorada), com a agravante de que seu humor, quando contrariado em sua expectativa inicial, costuma exalar uma densa fumaça negra que tem a capacidade de enegrecer o ambiente ao redor. Algumas representantes da espécie não apenas têm garras como também presas tão bem afiadas que suas vítimas só sentem que estão cravadas quando tentam se mexer e acabam se ferindo.


Esposa: Forma desenvolvida de criatura mágica. Amálgama entre doce donzela, bruxa má, grande rainha e velha sábia. Suas atitudes, como grupo, podem ser consideradas caóticas, ainda mais se considerarmos a atmosfera das expectativas similares sob as quais todas nascem. Com o tempo tendem a excretar, por sua pele, pequenas criaturas parecidas (em geral) com suas vítimas. Esposas são seres territorialistas, que vivem em nichos e exercem uma forte influência sobre a área em que se instalam. Possuem a capacidade de mudar de forma de acordo com seu humor e também através do tempo. Existem relatos, em muitas culturas latinas, de variações de belas donzelas em gigantescos dragões de pele oleosa.


Ex-esposa: Forma menor da Sogra (Forma suprema da esposa?). A ex-esposa não evolui em Sogra. Figura mítica serpentiforme, geralmente portadora do mal absoluto. Ao contrário das Súcubos, que injetam veneno somente por suas presas, as Ex-esposas exalam periodicamente veneno de sua pele na forma de óleos de coloração que varia do verde ao laranja-avermelhado. Esses óleos costumam envenenar o ambiente ao redor e afetam principalmente as mentes infantis, embora também exerçam forte influência sobre os membros de seus clãs. Essas figuras demoníacas têm a tendência cultural de seqüestrar as crias de suas vítimas, além de toda uma lista de perversidades a que se encontram sujeitas. Existem raros relatos, no extremo norte europeu, de Ex-esposas que puderam ser domesticadas.


Sogra: Criatura serpentiforme multicéfala. Suspeita-se de que a Sogra seja uma evolução da famosa Hidra de Lerna, sem a capacidade de possuir uma cabeça imortal. Suas várias cabeças podem atacar simultaneamente sob diferentes pontos ou em diversos aspectos. Algumas, principalmente com o tempo, exalam um forte odor que inibe alguns músculos da face de suas vítimas, primordialmente os responsáveis pelo sorriso. Devido à dificuldade de se aproximar dessa variante, pouco sabemos sobre seus hábitos diários, embora hajam suspeitas, entre os poucos estudiosos, de que ela tenha a tendência a agir de forma focal sobre vítimas específicas durante anos. Há pouquíssimos relatos de uma espécie superior de Sogra que se manifesta na forma de uma boa e frágil senhora – geralmente dotada de bochechas rosadas e vestidinhos florais em tons pastel – que, ao contrário de suas irmãs mais conhecidas, possuem forma humana (ou podem assumir essa forma e mantê-la por anos) e muitos conhecimentos úteis sobre as Namoradas, Noivas e Esposas. Algumas Sogras podem possuir poderes oraculares.

Conto e Receita: ®Ҝ

sábado, 16 de maio de 2009

Batismo





Enrugados. Os dedos estavam enrugados, a pele repuxada, a cabeça era pesada demais ou o pescoço já não tinha forças, não sei. Meu corpo estava ali, flácido, fraco, insensível. Minha consciência quase conseguia ver se a água estava se movendo ou se o vento aumentava sobre meus cabelos empapados no meu rosto. Meu queixo estava quase confortável no meu peito quando minha cabeça se jogou para trás e o vento gelou meu queixo e meu peito. Quis vomitar. Meu pescoço não tinha forças para jogar minha cabeça pra frente. Engasguei. Barulho infernal, que porra é essa? Sirene? Que merda...


Era sexta. Segunda semana da faculdade. A Míriam não tirava os olhos de mim e eu ficava todo idiota porque toda vez que subia o olhar das coxas dela encontrava o dela no meu, minha cara ia no chão, voltava nas coxas, enfim. Um dos veteranos colocou uma lona qualquer na parte de trás de uma D20. Todo mundo embarcou nos carros. Deu pra ouvir alguma coisa sobre Vargem Grande.


Uma das meninas chamou por alto "Míriam" e adivinha quem veio? Ela! Linda demais. Tinha muita gente na sala e ela pegou na minha mão para se escorar e passar entre duas pessoas. Queria abraçar ela do nada ali e mandaram a gente se separar em homens e mulheres. Ah, legal: tirando minha camisa e me pintando. Criatividade não parece ser o forte por aqui. Ela tá me olhando?


Deus, por que eu topei isso? Aparecer pra Míriam? Ela deve estar me achando mais idiota agora e esse imbecil não solta minha cabeça. Tá frio até dentro da cabeça, quanto mais me debato mais me canso. Esse imbecil não me solta! Talvez se eu apontar pro alto... a brincadeira acabou, cara! Que merda! Me solta! Soltou... fraco demais pra me virar de frente. A água pisca azul e vermelho? Tô enjoado. Não acho a borda... alguém me tira daqui!


Simulando uma procissão, esses caras são todos loucos! Acho que eu não deveria beber tanto. Tá todo mundo indo pra D20, o que deve estar rolando ali? Aquele moleque não sai de perto dela, puta que pariu! Vou chegar e puxar um papo assim, como quem não quer nada. Ela tá rindo. Ótimo: eu estufo o peito, vou chegando e tropeço nessa mangueira. Dá pra ser mais idiota? Ela riu?


As cores piscantes da água ficaram mais fortes. A D20 arrancou, bati com as costas, cabeça fora d'água . Graças a Deus, pensei que eu ia morrer ali.


Os carros seguiram por quase uma hora. Cervejas distribuídas e todo mundo rindo. No meio do caminho percebi que ela estava sentada do outro lado e só olhava para fora, pela janela. Arranquei uma folha de caderno e fiz uma flor. Aprendi no centro, num jantar com uma prima, uma menina que vendia rosas ensinou pra gente. Fui o último a aprender. Acho que só eu devo saber fazer isso até hoje. Fiz a rosa passar pelos joelhos do tal Victor, sentado entre eu e ela. Primeiro sorriso da noite. Deus, ela é linda!


Odeio sair de casa sem comer. Fome desgraçada. Tinha que ter dormido mais cedo ontem, mas com aquela menina na cabeça eu fiquei revirando a casa, lendo um monte de coisas pela metade, surfei na net, li Fernando Pessoa e até me aventurei a começar o Moby Dick. Noite desesperadora e agora acordei atrasado. Hoje é dia de trote, só espero que aquela menina apareça...


Receita e Conto: ®Ҝ

sábado, 9 de maio de 2009

O saco


O cheiro é de carne estragada, quem não conhece não diferencia do cheiro de merda. Insuportável. Arde a carne da narina. Depois de quarenta minutos descendo por um desfiladeiro numa embrenhada lateral quase esquecida no morro dos Cabritos, Joca e seu sobrinho encontram o saco preto embrulhado em fita isolante. Geralmente não tem cheiro. Essa semana foi aniversário de Carlinhos e eles atrasaram dois dias no "arremate", como chamam.

- Algum cachorro deve ter rasgado a porra do saco. Que merda! Agora jaé, Carlinho, jaé! Aceleraê!
O garoto desviou da galhada, pulou por cima do saco, se agachou por trás e já subiu levantando aquela massa mole e pesada que escorria e dobrava no meio.
- Vira pra cima porra! Assim vai cair! Deixa que eu pego essa ponta, pega alí ó. Isso, isso!

O fedor era tão intenso que assim que posicionaram o saco nos seus braços correram desengonçados de qualquer maneira morro acima. Carlinhos desviou do galho retorcido sob seu pé esquerdo, mas se apoiou com tudo numa pedra solta que escorregou seu corpo de cara naquele saco inflado de lixo. Seu nariz entrou com tudo num rasgo longo daquele saco. Seus pêlos todos se eriçaram imediatamente, as mãos, hipersensíveis, empurraram seu corpo para longe, a ardência na parede do nariz, na boca, na alma era forte demais. Puxou o vômito amarelado de arroz, cenoura e galinha por cima do saco empapando a camisa.

- Porra Carlinho, levanta daí, maluco! Pensa não, depois tu limpa. Vem, vem cara!
A tontura enfraqueceu os joelhos de Carlinhos, seus olhos estavam embaçados e por alguns instantes estranhou um frio no lado esquerdo da barriga.

Sobre o morro estava estacionado o caminhão de lixo de 1976 que seu tio usava para recolher as sobras do trabalho dos que comandassem o morro naquele momento. Era um serviço de "despacho", como tio Joca dizia. "Com o lixo do morro vai embora o lixo do morro" e outras ditados que animavam aquela jornada. O mais famoso? "Sempre traga saco extra". O preço não se negociava, era fixo. Duplicava com dois, triplicava com três, matemática elementar. Tinha um percentual pro "Bira", que era o lance de cremar e tudo, de noite, o resto era conqüenta-cinqüenta pro Joca e pro Carlinhos. "Pro futuro do moleque", ele dizia a Alzira, sua irmã.

O caminhão já estava a caminho e o Carlinhos estava quieto demais. Cabeça pra fora da janela, corpo virado pro lado, braço mole.
- Tá legal, Carlinho? Carlinho? Carlinho!!
Puxando pelo braço do sobrinho como que para acordá-lo, Joca viu o corpo mole escorrer para cima do seu, enfiou o pé no freio e botou a mão pra fora mandando as buzinas todas tomarem no cú. Colocou a cabeça de Carlinhos em cima de sua coxa e vasculhou sua roupa imunda de vômito. Passando a mão com pressa pela camisa Joca sente Carlinhos contrair ainda mais as pálpebras em dor e nota que o molhado do lado esquerdo do abdômen estava quente. Um caco de vidro tinha penetrado fundo, talvez até o rim. O sangue escorria quente e sem parar. "Como é que a porra do moleque não me fala nada?"

Não podia deixar o caminhão, pegar um táxi, que fosse rápido ao hospital. "O reboque vai fudê tudo", pensou. Não podia deixar o caminhão, não podia deixar o sobrinho. Meteu o pé pro Miguel Couto, acelerou, rosnou atrás de todos os carros, buzinou, gritou que era emergência. Ouviu gracejo de playboy, policial gesticulando, madame gritando assustada. Estava no posto ao lado do Jóckey.

- Porra de sinal filho-da-puta! Güenta, Carlinho, güenta porra! Tú é forte moleque, segura!
Foi quando viu um policial se aproximando, gesticulando para que ele aguardasse. Joca ouviu o barulho surdo do corpo de Carlinhos escorregando sem vida para frente do banco, olhou o policial, o Miguel Couto a cinqüenta metros. Carlinho caído. Policial. Miguel Couto.

O sinal abriu. Joca acelerou o que pôde, passou pelo Miguel Couto, seguiu em frente, Lagoa-Barra.

Emprego fixo tá foda. Carlinho era moleque safo. Sempre tenha saco extra.

Conto e receita: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?