sábado, 27 de junho de 2009

Cadáver de Escritor


Nenhuma crise. Nenhum remorso. Olhos adiante. Nada houve sobre seus livros numa sala defensiva armada no último cômodo da casa. Nada de importante. Ele lápide levitava sua enorme culpa tal qual distendia sobre o peito verborragias copiadas de Shakespeare, nenhum incômodo. Talvez torturasse as palavras forçando vômitos e outras guturalidades entre a folha e a caneta, o que gerava uma certa diarréia literária sem utilidade, fugacidades em livre associação, tentativas broxantes de uma orgásmica rima perfeita naquele poema sem estrutura. A descoberta o transfigurara. Sexo não escreve bem. O orgasmo resultou inútil, o Frontal resultou inútil, chá de camomila, banho quente, punhetas atrás de punhetas e a mente inerte, inútil. Punhetadas literárias, punhetadas Socráticas, punhetadas Kafkianas, punhetadas com Vinícius, nada. Sequer teve coragem de abrir Drummond. Sim, quisera se embebedar, mas não, é Drummond. Respeito. Ainda havia um mínimo de decência sobre o cadáver, adiado, sequer procriava, sequer homem, sequer banalidades, sequer poesia. Movimentos rítmicos sobre a folha, chamex, papiro, pensamentosdesordenadoslongoscurtosbaixosaltos megalomania, complexo de inferioridade. Pensava em definir liberdade num início de conto, ou poesia, ou crítica, jornal, livro, revista. Cecília! Me embebedo, sem dó! Pôs-se a "Ceciliar" varanda adentro sobre a rede pincelando poemas nas nuvens. Nada seu, nada livre, de original nem a morte. "Quadro arremessa Barata Ribeiro sobre poeta triste".

Receita e Conto:
®Ҝ

domingo, 14 de junho de 2009

Liberdade




Comera pouco, toda a noite sob um bate-estacas infinito entre vultos de carne translúcida e as rusgas d´água que lhe tatuavam a testa e os seios. Uma pílula e uma garrafa d´água. Mãos entrelaçadas sobre a cabeça e o quadril levava todo o corpo na cabeça que pendia de cabelos negros encharcados de sorriso em suor. Sete lábios sobre sua boca, quatorze mãos sobre sua pele, pescoço, cintura, costas, coxas. Era tão certa e de tão lívida foi-se cálida e azul, era toda azul sob aquela luz negra que envidraçava os olhos, sombras engarrafadas. Desceu de um pé que deslizou perdendo-se entre outras duas pernas que em tropeço levaram o pouco de sanidade que inda borboleteava frente aos seus olhos que se embaçaram (envergonhados). De uma noite havia levado o que pensava fosse a liberdade, de uma festa havia restituído toda solidez que lhe dera o mundo, perdeu-se em abrir-se em flor para um manequim oco, era nada. Dos toques líquidos que se perdem no vácuo onde haveria atrito, sente que de tanta liberdade, ela mesma não a quis.

Receita e Conto: ®Ҝ

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Atelier



O cavalete estava ao canto da sala. Mudo. Todo o atelier era um degradê em cores frias. A estética estática das paredes incomodava e eu me perdia em girassóis ambulantes. Havia castelos gemendo torres num coito morte e caos, estrutura em transe estendendo preces tijolares, órbitas globulares cinzas de crianças assistiam pasmas ao tango incendiário entre quatro estátuas: Zeus, Apolo, Afrodite e Eros. Vísceras se contorciam, olhos de crianças cinza tremulavam, Zeus urgia céus, exposto, Apolo flamejava o mundo, Afrodite chorava, dançava e ria, louca, e Eros cortava os pulsos – gilete Hefestos – . Vertejam as vértebras, aorta-se o lírio divino pelos rios do mundo e, na insânia da egonia cósmica Zeus e Apolo se fritam, Afrodite desintegra-se em flor, regada do sangue filial, salgado, viscoso e vil, degenera e morre. De seu reino submerso Eu-Hades sento no sofá, coço o saco, pego uma latinha e ponho no Animal Planet.

Conto e receita: ®Ҝ

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Kinder Ovo



Estava com sono. Vi as folhas do texto que tive dois meses para revisar, aquelas folhas virgens. O prazo é hoje, daqui a algumas horas - pensei. E me estranhei na frase. Muitas vezes não estava preocupado com nada além do fato de não estar preocupado com nada. É que não me parecia ser coisa de homem sério, essa não preocupação. E, por alguma razão, era importante ser sério, como ser homem. Não digo da heterossexualidade, digo da hombridade mesmo. Peguei os Kinder Ovos que comprei na farmácia. Sempre paro em farmácias. Na verdade as farmácias são as minhas papelarias da noite. Eu odeio chocolate. Odeio é exagero, é que eu não ligo mesmo. Precisava de um elemento surpresa na minha vida. À uma e meia da manhà, voltando da Cobal do Humaitá e com umas trinta páginas para escrever para dali a oito ou dez horas, o kinder me parecia a única surpresa possível. Comprei três. Se não gostasse do primeiro e do segundo poderia manter o terceiro fechado, colocar nele todas as surpresas que quisesse, na geladeira. Abri. Até comi o primeiro e o segundo chocolates, mesmo sem vontade. Mastiguei aquela massa bicolor doce e gordurosa porque precisava ver a surpresa e no carro da Joana não tinha onde colocar o chocolate. Ela também não quis.

Na bagunça de micropecinhas dentro do ovo transparente - que costumava usar como ogiva de bomba com tinta, era fácil: colocava água com corante numa parte e fermento na outra, junta, balança e arremessa - vi um extraterrestre, cinza, capacete azulado transparente com antenas. Era "Zupt"! Eu tenho essa coisa de ficar dando nomes. Olhei pra ele e "Zupt", era Zupt. Mais tarde descobri que as pecinhas eram da nave de Zupt.Como não faço ocm a vida, segui o manual de instruções. Estava com sono, não dava tempo de teimar em ser original, ignorar as instruções e monstar um trator para Zupt. Foi nave espacial mesmo. Abri o segundo chocolate. Não vi o que tinha no ovo. Joana parou o carro. Hora de gentileza, ela também estava com sono. Agradeci a carona, corri pra casa. No caminho caí na asneira de verificar ao Paulo, um dos porteiros da noite, que já o tinha visto na noite anterior. Perguntei - que fique bem claro, era retórica! - se não davam descanso a ele. Chamei o elevador, que já estava no térreo. A porta não abriu. Paulo resolveu me contar, desde o Big Bang que os avós fizeram na pororoca, a história da vida dele. Chamei o elevador. Paulo me falava das horas, jornada de 12 horas de trabalho e descanso de 36. foi a única frase que ouvi. Tive pena. A porta não abriu. Paulo virou sua cadeira para os elevadores, como se me chamasse, à uma e meia da manhã, com trinta folhas de dois meses para redigir lá em cima, pra sentar ali, passar algumas horas, aliviar a carência. Lembrei que às vezes o elevador semi-trava de madrugada, era preciso abrir com as mãos. Paulo me falava de filhos. Pensava o quão ridícula seria a cena: Puxo papo com Paulo; Paulo se empolga; chamo o elevador; ele não abre; abro as portas com as mãos e entro. Ridículo, completamente ridículo. Vai pensar que estou cagando para o que ele pensa. Sem saber o que é retórica vai sacar o sentido da pergunta, o interesse era fachada para polidez necessária. Por algum motivo era importante ser educado, como ser sério. Um casal chegou. Abri a porta para 'eles'. Paulo desceu. Se a diferença entre meus olhos e meu umbigo é sempre a mesma então foi Paulo quem desceu.

Não pude conter a curiosidade. Fiquei nu. É o comum ao chegar em casa. Nu meti a mão no saco. Peguei a segunda ogiva - ri de Deus ter me dado talento para desenhar e tocar piano, de resto tenho a coordenação motora de uma criança de 4 anos, cortar em linha reta ou abrir uma ogiva de Kinder Ovo é uma odisséia. Abri. Dessa vez não identifiquei nada. Nda mesmo. Direto nas instruções. Era o K03 n.51 (ah, agora sim!!), um parafuso sobre uma base de rodinhas que movimentava uma engrenagem dentro de uma base azul. Sem graça. O parafuso tinha uma cara. Sorridente. montei o treco. Era "Squetch", ou "Roc", ou "Crok", tinha que ser algo que desse o som de um parafuso sendo torcido - eu não sei um verbo para um parafuso. Torcer, colocar, introduzir, enfiar, girar? Não escolhi o nome. Ou escolhi. Era "Parafuso". Pronto, coloquei os dois me olhando enquanto digitava as páginas do trabalho. Parafuso tinha os olhos tortos. Num relance percebi, tentei ser discreto mas não sei se dei na pinta. Percebi que Parafuso tinha um olho em mim e o outro em Zupt! já passava das duas e meia. Estava com sono. Era minha cabeça. Fui pegar gelatina. Ligar Enya baixinho para escrever. Voltei, agora com os ouvidos e a boca ocupados. Relance. Não era minha imaginação, Parafuso estava fria e fixamente vidrado em mim e em Zupt! Percebi. Parafuso era uma espécie de super-ego. Tava me vigiando, vigiando meu Zupt! Qualquer viajada que eu desse no meio do trabalho ele estaria ali, olhando, pros dois. De repente não dava pra pedir carona, simplesmente não dava para "Zupt!" para fora do trabalho e começar a escrever outra coisa, ligar a tevê, gravar mais doze CD's nem procurar uma gráfica nas amarelinhas, mandar imprimir cartõs de visitas. Era eu, o trabalho e Parafuso. Apesar da carcaça azul, Parafuso era (ainda é) cinza. lembrei da Gestapo. Depois de meses sem meter as caras, Parafuso era inevitável. Esse foco, esse aprofundamento, essa concentração de massa, tensão e força sobre um único ponto. Parafuso era complementar de Zupt. Não digo oposto em nome da originalidade e porque está tarde para acordar a distinta senhora Dona Dialética. que dorme cedo e permanece intacta. Na realidade somente Parafuso era necessário no momento. Precisei de Zupt apenas para reconhecer Parafuso. Simples, básico até. Parafuso é Parafuso porque não é Zupt. E vice e versa. Lembrei da Gestapo. Recomecei a escrever as folhas outras, trabalho antigo, prazo breve. Dei-me conta de que jamais abrirei o terceiro ovo.

Receita e conto: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?