terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Cappuccino perfeito


Homenagem a Mircea Eliade

- É porque você já tinha me dito que o cappuccino daquela cafeteria no Leblon era o melhor. Só por isso.
- Verdade, a mais pura verdade. O melhor, sim. Daquele dia, naquela hora. Sentaí.

Sentaram então tio e sobrinho numa mesinha estreita, onde não se poderia apoiar cotovelos, num ambiente amadeirado à meia luz. O cardápio era em A4 reciclado, folha em pé, dobrado ao meio, com um barbante retendo as folhas juntas. A capa, de papel canson, simples, escuro. Havia apenas a imagem de uma xícara negra fumegante no centro e a palavra "especiais" abaixo. Talvez o cardápio tivesse um cheiro. Ou o lugar inteiro.

Rafael, o sobrinho, olhos saltitantes por sobre os ombros do tio, vidrado na rua, na passagem das pessoas, especialmente mulheres. Suas costas se arqueavam para trás junto com seu queixo, a cada par de pernas que chamasse atenção. E eram vários, os pares. Seus dedos corriam a lateral da mesa, escorregavam e lhe caíam no colo, onde procuravam uma qualquer coceira que não se justificava. As poucas vezes que pousava o olhar sobre o tio ou sobre o cardápio acompanhavam um movimento labial de pressão ou insatisfação que logo alçava voo e pousava, aqui e ali, sobre a garçonete, duas meninas conversando, ou a porta do banheiro feminino.

Foi quando o tio desceu o cardápio e prendeu seu olhar no dele:
- Já escolheu?
- O quê?
- O que vai querer. É preciso escolher um, e somente um. Pelo menos um de cada vez. Café é muito bom, refrigerante ou suco de laranja também, mas misturar não vai te levar a um lugar muito agradável.
- Tá maluco?
- Me diga você.

Rafael se ajeitou na cadeira e olhou para o tio seriamente:
- Cara, foi você quem me trouxe aqui para tomar um café. Então vamos tomar um café!
Das mãos do tio escorregou o cardápio por alguns centímetros na mesa em direção ao rapaz.
- Sim, mas qual? Você não acha importante escolher, definir? Ou tudo pode ser provado ao mesmo tempo?

O rapaz colocou a mão sobre o cardápio sem abri-lo. Fez mais uma vez o movimento de inquietude, pressionando os lábios e expirou, encolhendo os ombros:
- Escolhe você.
- Por quê?
- Você conhece melhor do que eu. Você é que entende disso.
- Eu já escolhi. O lugar. Para que o café seja realmente bom, é necessário que ele seja moído na hora - disse o tio, apontando para o moedor de café atrás do balcão. Que os grãos sejam de boa qualidade - mostrou, abrindo o cardápio e apontando para a primeira frase da primeira página:  "Todos os nossos cafés são feitos com grãos 100% Arábica". Dentre os bons cafés as diferenças essenciais estão no aroma e no tipo de bebida. O aroma pode ser "suave" ou "intenso", o tipo de bebida pode ser "dura" ou "mole", de resto a torração deve sempre ser média, assim como a moagem. O sabor e o corpo devem ser respectivamente "intenso" e "encorpado", sempre. Não tem nenhum grande segredo: tomar um bom café depende mais da escolha da cafeteria do que necessariamente da escolha do café em si. Como a maior parte das questões na nossa vida, a escolha do campo de batalha influencia diretamente no desempenho da luta.

Seus dedos passaram pelo cardápio com um gosto peculiar, embora o sinal de desaprovação ainda estivesse presente na lateral esquerda de seus lábios.
- Qual aquele simples que vem com espuma?
- Expresso. A "espuma" se chama "crema".
- Ela faz alguma diferença?
- Não sei. Me diga você: por que faz questão da "espuma" no café?

Ainda dedilhando o cardápio, sem tirar os olhos das opções: - Não sei. Me parece mais cremoso, sei lá.
- Talvez por isso o nome não seja "espuma" e sim "crema", não acha?
- É. Mas isso faz mesmo diferença? Ou é só na cara do café mesmo?
- Se não fizesse diferença, provavelmente você não se lembraria desse detalhe, não acha?
- Talvez. Mas eu falo no sabor mesmo.
- Faz, sim. Ela preserva o aroma e conserva a temperatura. E tem outros detalhes.

Os olhos de Rafael se elevaram do cardápio:
- Quais?
- A cor deve ser o mais próximo possível da avelã, marrom-escuro e com reflexos avermelhados.
- Por que...
- Porque isso garante que a moagem foi boa, o tempo de extração foi correto e o café foi bem tirado.
- Nossa, é muito detalhe. Não acha isso chato?
- Coloca um expresso perfeito na boca, e me diz você.

Pediram. Um expresso e um cappuccino.
O cappuccino foi tomado em apenas três goles consecutivos. Um mais longo e dois mais rápidos. A xícara saiu do pires cheia e só tocou a mesa quando estava vazia. Os olhos do tio estavam fechados e um leve sorriso se esgueirou pela sua boca.

Rafael se contorcia na mesa, esperando o expresso "esfriar um pouco mais". Olhando para o tio, não se conteve:
- Tudo isso, pra isso? - disse para o cardápio e para a xícara vazia à frente do tio.

O tio pareceu ficar levemente irritado com a pergunta, mas em menos de um segundo se recompôs, pôs a xícara de lado e olhou fundo nos olhos do rapaz:
- O cappuccino perfeito não tem a ver com a presença ou ausência da canela, o quanto se coloque (ou se disfarce) de bicarbonato pra criar uma espuma fictícia, quando o grão não foi moído na hora, como os cappuccinos caseiros, das fórmulas prontas. O cappuccino perfeito não tem a ver com a cremosidade do leite ou com a presença ou ausência de chantily (se ele foi feito à mão ou se é um tubinho industrializado para sacudir e limpar o birro depois). Independe se colocamos achocolatado em pó, cacau puro ou chocolate meio amargo. O cappuccino perfeito tem a ver com o momento perfeito. Ele é o clímax de um processo, o clímax de um amadurecimento de fatores que convergem para uma única xícara, num único instante, entre as nossas mãos. O cappuccino perfeito é o momento perfeito. É a transubstanciação do maior aprendizado sobre o "momentum", o que Maquiavel chamava de "occasione", o que chamamos de "oportunidade". Para que o cappuccino seja perfeito, não é necessário seguir passo a passo essa ou aquela receita, original ou inovadora. Sabe por quê? Porque o cappuccino é como a vida: é orgânico, perecível, vital. Se observamos friamente, é impossível tomarmos um cappuccino perfeito idêntico duas vezes ao longo da vida, mesmo usando a mesma quantidade dos mesmos ingredientes. Como é impossível reviver um momento perfeito, a não ser como projeção, na memória. Se tomarmos enquanto ainda está fervendo, vai ferir nossa língua, estragar nosso paladar, nos irritar. Se deixarmos que ele esfrie demais, vai perder a consistência, a essência, até que o gosto se degrade e passe a ser repugnantemente doce ou insosso. Um cappuccino, como qualquer café, é um momento perfeito: não pode ser "requentado". Ele é o que é enquanto é, e só - como qualquer experiência em nossa vida. O cappuccino perfeito é um ritual. Participar do ritual é comungar das energias manifestadas na primeira vez em que esse processo - seja ele físico, químico, emocional, espiritual - aconteceu, quando a sua criação aconteceu. Você me disse, uma vez, que o café era como uma religião para mim, lembra? Quando um fiel de uma religião participa de um rito, ele revive simbolicamente a experiência sagrada originária daquele momento. Quando se converge toda a atenção para o momento em que se está vivendo, quando todos os seus pensamentos, sentimentos, ações e percepções convergem para um único foco, se ritualiza o que se faz. Quando se ritualiza, não se está nem revendo nem comemorando, mas vivendo como da primeira vez. Tomar o café deve ser um rito, sim, como viver deve ser um rito. O ritual transforma o momento em Verbo, ou seja, faz acontecer. O verbo é ação e o rito transforma o que é relatado em realidade presente no aqui-agora, em substância material e psíquica que passa a compor a personalidade, como um símbolo toma conta da sua mente num sonho. Isso estrutura quem você é e como você é capaz de viver e compreender a vida. O cappuccino perfeito é como um mergulho nas energias primordiais da criação, numa total indiferenciação da qual você é obrigado a voltar - porque ele acaba - mas da qual você nunca voltará o mesmo. O cappuccino perfeito é um marco, ele define tudo o que veio antes e tudo o que virá depois dele, é como uma descida ao inferno ou um voo aos céus. Por sua própria natureza finita, ele implica um renascer, um confronto com a morte do que veio antes e com o nascimento do que virá a seguir. É um tempo de suspensão. Em que compreendemos que, para nascermos de novo, precisamos morrer para certas realidades. A cafeína provoca alterações no seu sistema nervoso, age sobre o metabolismo, provoca excitação. Ela efetivamente te leva para um novo estado de "consciência", de maior "alerta" em relação ao mundo e à sua realidade presente. Eleva tua energia, anuncia uma forma de viver renovada, condizente com o novo padrão de consciência aflorado. Aquele que faz essa viagem nunca retorna, pois o que volta é sempre outro. Mas para conhecer esse outro é necessário compreender a essência do cappuccino perfeito. E ela não está no café, nem no cappuccino.

Os olhos de Rafael estavam vidrados na xícara, entre suas mãos:
- Quer dizer que, se estamos atentos ao momento, todos os cappuccinos serão perfeitos?
- Não. Quer dizer que, se não estivermos atentos ao momento, nenhum cappuccino, ou momento, jamais será.

A distância entre os lábios de Rafael não era pouca, sobrancelhas arqueadas enrugando a testa e olhos fixos sobre seu expresso. Tocou a lateral da xícara com o indicador e o médio, verificou a temperatura, passou a xícara para o lado, olhou pela primeira vez a garçonete acima dos ombros e disse:
- Outro expresso, por favor!

Receita e conto: Renato Kress

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Descobertas

Pai, pai, entendi. Tava vendo TV e entendi porque a gente reza. É porque às vezes a vida da gente não se explica! Por isso! Fica entre a gente, pai, mas eu acho todo mundo reza pro mesmo Papai-do-Céu. Tava vendo na TV as pessoas rezando no mundo. Não sei se eles entendem, mas é o mesmo Papai-do-Céu. Claro que é!

Senta aqui que eu vou te explicar, pai. Eu posso até rezar todo dia antes de dormir, como a mamãe manda, mas no fundo só vou rezar mesmo quando tiver perdido uma coisa muito muito especial. Ou quando eu achar que tiver. E quando essa coisa especial estiver perdida, aí sim eu vou rezar de verdade. E olha que legal, pai: quando eu rezar vou juntar as mãos. Aquele menino com a cabeça engraçada, o Murad, nosso vizinho, vai rezar se ajoelhando num tapete com o pai dele e um outro cara, lá do outro lado do mundo, vestido de toalha, vai rezar meio que sentado na posição do indiozinho. Na verdade nem importa muito pai, porque quando eu juntar as mãos meu corpo vai estar igualzinho pra lá e pra cá, quando o Murad se ajoelhar, o corpo dele vai estar igualzinho dos dois lados, e o outro cara, do outro lado do mundo, também! É que eu tava vendo só a metade da tela da TV, brincando com o espelho da mamãe e descobri! Olha que legal! Se você passar um espelho em pé pelo meio do corpo de qualquer um rezando, no mundo inteiro, vai encontrar dois lados iguais. O legal é que eu nem notava o espelho e quando ia pro lado, pra ver a tela inteira, dava no mesmo. Era como se não tivesse espelho ali!

Aí eu pensei na coisa de nos livrar do mal que a mamãe ensinou a rezar. Nem acho que a gente queira se livrar do mal. Mamãe às vezes faz o mal pra mim e diz que é pro meu bem. Muito estranho isso porque ela diz que é pro meu bem e eu sei que dói e me faz mal. Daí fiquei pensando que as coisas tem seu bem e seu mal e às vezes a gente só vê um lado e se chateia por isso. Mas acho que não estamos rezando por medo do mal. Tem gente que quer o mal dos outros e reza. Já vi a tia na escola fazendo isso. Tem gente que reza pedindo o mal pra si mesmo, como quando a tia Nazinha pediu pra Deus pra ficar doente no seu lugar. Nem acho que rezamos para nos defender do mal. O mal acontece.

Acho que a gente reza porque tem coisa que não tem jeito mesmo. Outro dia mamãe estava fazendo saladinha pra mim e eu perguntei porque Papai-do-Céu levou o senhor pra longe da gente. Mamãe sempre dizia que era porque ele estava com saudades e que vocês estavam conversando lá no céu e cuidando da gente, mas dessa vez ela chorou muito sabe? Achei que tinha se cortado com a faca e fui lá abraçar ela e ela me abraçou de volta e disse que não sabia, que não sabia porque o Papai-do-Céu tinha levado o senhor. Logo depois ela me colocou na cama e ficamos conversando com Papai-do-Céu e com o senhor, lembra? Então, foi daí que fiquei pensando, a gente reza porque tem coisa que não faz o menor sentido! Eu sei que ela não sabe porque o senhor foi embora e sei que ela fica muito triste quando pergunto, mas quando vejo já perguntei. Um dia vou falar pra mamãe que descobri porque a gente reza: é que a gente é que precisa ter força da gente mesmo pra dar um sentido pra essas coisas, né? Bem, eu acho que é.

Pai, a mamãe está vindo aí pra irmos embora, semana que vem a gente conversa mais.

Conto e Receita: Renato Kress

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Conversa onírica (microconto estilo twitter)


J: Ando me sentindo meio aprisionada, sabe?
R: Disfarça, teu carcereiro é a tua cara...
Imagem por Francisco (Chico) Azevedo

Conto e receita: Renato Kress

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O bem mais valioso?



"Tenho que controlar minha respiração. Não falta muito. Depois de atravessar os muros desse palacete pelas paredes laterais, próximas às montanhas irmãs e ao Floresta das Folhas de Ouro, falta cada vez menos...", era o que pensava Ieresmieth, o mais novo candidato à Guilda dos Ladrões de Angabar.

Seis horas atrás, numa clareira na Floresta das Folhas de Ouro, Ieresmieth se encontrava com seus superiores, a Guilda dos Ladrões de Angabar. De olhos vendados, sentado sobre a relva amarela daquela floresta outonal, ele teve de indicar, fincando um alfinete com uma fita laranja no chão, a chegada de doze outros ladrões. A direção do alfinete deveria ser uma linha reta entre ele e quem chegasse. O momento de fincar o alfinete? Quando tivesse certeza de que alguém se aproximava. A certeza de que nenhum dos outros estaria roubando? Ele só deixaria de passar nessa prova se alguém se aproximasse o suficiente para lhe tocar a cabeça. Ao abrir os olhos, depois de fincar o último alfinete na relva, viu Salthimankar, um dos mais talentosos da Guilda, suspenso de ponta-cabeça por uma corda atada a um galho de árvore, com os dedos esticados, a menos de cinco centímetros de sua testa.

Foram-lhe dadas instruções muito precisas sobre o que fazer, embora nenhuma sobre como fazer. Era necessário entrar no palacete cinza, próximo à saída para as Montanhas Irmãs, e voltar de lá com a posse do bem mais valioso.

Os muros do palacete, não especificamente altos, mostravam pouco mais de dois metros e eram encimados por grades simples, de cobre vagabundo. O silêncio, característico da falta de guardas, talvez indicasse algo a mais. Ele deveria até o nascer do sol cumprir a tarefa e, naquele momento, percebeu que teria de se apressar no futuro, porque agora era hora de se concentrar, esperar. Tirou de dentro de um dos vários bolsos de seu casaco uma serpente vermelha e a jogou ao chão, próximo à luz de uma tocha, a meio caminho entre o muro e o palacete. A luz da tocha era essencial, caso quisesse colocar a descoberto a armadilha daquele silêncio todo.

Não teve de esperar muito. Em menos de dez segundos, o chão ao redor da cobra foi revolvido, formando três pequenos montes dos quais vieram à luz três grandes karmlags, ou cães-toupeira, uma espécie de cães de guarda muito comuns... a mil milhas de distância a noroeste daquelas terras! "Hum, não é uma casa comum".

Contornando a casa por cima do muro, descobriu o melhor modo de entrar: a porta da frente. Na verdade, não exatamente a porta da frente, mas um pouco acima dela havia um gárgula de marfim que servia de base para uma varanda e, um pouco abaixo dela, três degraus de mármore distanciavam a casa daquele chão sensível a quaisquer formas de vibrações. À distância que se encontrava, seria impossível saltar diretamente para os degraus. Teria de pular ao menos uma vez sobre a terra para depois saltar de novo sobre a soleira da porta.

Tirou uma flecha da aljava, amarrou uma corda com um guizo sobre essa flecha e esperou, observando a copa das árvores mais próximas. Aguçou audição e olhar até identificar um morcego, e mirou um pouco atrás do que via. O zunido seco da flecha encontrou o peito de uma coruja, predador natural do morcego. Aquele tiro cego lhe rendeu um sorriso que disparou seus batimentos e mais uma vez se repreendeu por se obrigar a perder tempo, controlando a descida dos seus batimentos enquanto saltava sobre o chão de terra batida e puxava atrás de si a coruja com o guizo. Ao pisar sobre o mármore, depois do segundo salto, recolheu a corda atada à flecha, sem a presa. "Os malditos bichos são rápidos!".

Saltou, fincando as mãos na mandíbula do gárgula e, em poucos segundos, estava do lado de dentro do segundo andar do palacete. Ao dar seus primeiros passos se afastando da varanda e esperando a vista se acostumar à pouca luz que vinha de fora, simultaneamente sentiu um frio nas costas e ouviu passos muito leves e despreocupados. Passos de mulher. Como suspeitava, a tapeçaria que recobria as paredes  sistema de aquecimento para aqueles dias frios e secos escondia um nicho, com uma estátua. Ieresmieth prendeu a respiração e dividiu o nicho com a estátua de olhar fixo. Poderia imaginar mil companhias piores para aquele momento. Ouviu os passos femininos se afastarem na mesma velocidade com que se aproximaram. Esperou ainda três minutos, depois de ter a certeza de que já estaria a salvo para sair e, agachado, meteu os olhos para fora do tecido. Nada além de um corredor sem aposentos. Percorreu o corredor a passos silentes e, com as mãos, sentia o vento que percorria, por trás das tapeçarias, os vários nichos. Até que não sentiu a brisa.

No vácuo entre os ventos, encontrou uma porta de ébano, rígida, com uma tranca simples. "Simples demais para quem tem karmlags no quintal!", observou, pela fresta da porta, num aposento, um pequeno altar em madrepérola e um anel de ouro branco com algumas gemas preciosas, sob a luz do luar. Olhou de novo a tranca. "Simples demais!". Olhou de novo o anel e a luz da lua. "Sagrada deusa, obrigado!", pensou. Pensou e saiu do corredor. Voltou à varanda percebendo que, embora não ouvisse mais os passos femininos, também não ouviu nenhuma porta se abrir ou fechar. Tentando desanuviar a mente, escalou o exterior do palacete até a claraboia, por onde o luar entrava para alumiar aquele anel. "Pequena demais!". Mas mesmo que fosse grande o suficiente, ele não colocaria seu corpo dentro daquele aposento. Desceu um pequeno gancho preso a um fio de seda, com o qual pescou o anel, sem problemas.

Voltando para a varanda, com um sorriso negligente, deixou-se cair agachado  de forma a não fazer ruído com seu impacto já pensando em como faria para sair. Mas foi surpreendido por outro barulho: uma inspiração, profunda e rápida! Um susto! Virou-se o mais rápido que pôde, sendo pego de surpresa pela coisa mais bela que já havia visto: a dona dos passos femininos. A mão direita de Ieresmieth imediatamente cresceu sobre aquela boca delicada, enquanto a esquerda passava por sua cintura. Seus olhos negros se envolveram com os olhos verde-esmeralda daquela menina e ele percebeu, na respiração dela, que ela não iria gritar. A mão que desceu da boca e a boca que encontrou a boca foram inevitáveis. Antes que pudesse se perder, ele saltou para trás e, em menos de dez segundos, já atravessava os muros do palacete.

Correndo para a clareira na floresta, chegou junto com o nascer do sol apenas para ouvir, por trás de um árvore, a voz de Salthimankar, áspera: "Você falhou, Ieri". Ieresmieth imediatamente apalpou os bolsos, e não encontrava o anel. Baixou a cabeça, envergonhado.

"Ieri, é uma pena, criança, mas não podemos aceitá-lo como irmão e também não podemos confiar em você como um civil. Você sabe o que precisa ser feito. Adeus." Ele teria que deixar a cidade e não voltar nos próximos dez anos. Ficou impassível, esfregando com as pontas dos dedos o tecido do bolso onde deveria estar o anel. Chegou a virar de costas, talvez para não encarar Salthimankar, talvez para ir embora. Foi quando cortou o silêncio daquela manhã com uma gargalhada estridente. Ele não viu, mas os olhos de Salthimankar se arregalaram por trás de seu ombro.

"Eu passei no teste, irmão", disse Ieresmieth sem olhar para trás.
"Então, onde está o anel... 'irmão'?", o tom áspero de Salthimankar beirava o ódio. "Ieri" sabia que não poderia chamá-lo assim caso não passasse no teste. Por que assinava sua sentença de morte tão estupidamente? Teria enlouquecido?

"Anel? Foi exatamente um 'anel' que você me pediu?", disse Ieresmieth, voltando-se para encarar Salthimankar. Riu, de lado, um riso incontido e disse: "Desculpe-me, é claro que sim... um anel... uma aliança, certo? Uma aliança entre mim e os ladrões, irmão! Uma aliança que seria firmada sobre o roubo do que houvesse de mais valioso dentro do palacete. Foi o que me pediram. Bem, só há uma forma de o anel não estar comigo: alguém, com a mão mais leve que a minha, tirou de mim. Até aí, falhei. Você tem razão, irmão. Mas também só havia um motivo para que eu conseguisse atravessar os muros do palacete a salvo dos malditos karmlags. Eu venci, irmão.

Salthimankar já pulava sobre ele, em fúria, com facas nas duas mãos. Não aguentava mais ouvir aquele fedelho o chamando de 'irmão', sem nada nas mãos. Foi quando Ieresmieth se esquivou e disse: "A coisa mais valiosa, Salthi! Eu roubei o coração da princesa dos ladrões... irmão!"

Conto e receita: Renato Kress

terça-feira, 29 de junho de 2010

Quedas são inevitáveis

Minha pequena Vitória,

hoje você está num colo quente e macio e se alimenta e se afaga e gosta de estar apertadinha e se sentir limpinha. Amanhã você estará engatinhando, conhecendo texturas, o frio e o quente, o áspero, o rugoso e o macio, vai perceber que não é o mundo que se move ao seu redor, mas que você pode mover o mundo também, e ir sozinha. Depois você firmará seus pezinhos no chão e entre sorrisos e chamados, talvez segurando um dedo do papai ou da mamãe, você vai enfim andar. Então terá seus braços livres para poder pegar, tocar tudo ao seu redor, vai mexer em muita coisa que não deveria, vai conhecer outra dimensão, a altura. Um dia você verá que o andar talvez já não seja adequado à velocidade dos teus desejos, à ferocidade com que teu coração ou estômago desejem o carinho dos seus pais ou uma barrinha de chocolate, nesse dia você vai correr. Correr vai fazer seu coração disparar, sua boca secar, seu rosto sentir melhor o vento... e talvez você caia. Provavelmente de quatro. Não se preocupe, quedas são inevitáveis.Acredite, você vai levantar, e ter o carinho ou o chocolate. Um dia, brincando com seus amiguinhos - e você vai ter vários amiguinhos - você vai jogar bola, queimado, ou vai querer alcançar algo bem alto e você vai pular. Seu primeiro pulo provavelmente vai ser desengonçado e é bem provável que você novamente caia. Não se preocupe, quedas são inevitáveis.

Um dia você estará andando, correndo e pulando muito bem e, nesse dia, você vai conhecer vários amiguinhos num local novo, longe do papai e da mamãe. Nesse dia você vai estranhar, vai se sentir acuada, é bem provável que você chore e sinta que está engatinhando, de novo. Mas esse dia vai vir acompanhado de outros dias e as vozes estranhas e os cheiros novos se tornarão familiares e cotidianos e você, aos poucos, vai se sentir andando de novo. Quando menos suspeitar vai perceber pela segunda vez a sensação de que o mundo não gira sozinho ao seu redor, mas que você pode controlar a passagem dele, e aí é que você vai poder correr e brincar e se sentir parte daquele novo e gigantesco universo. Um dia, algum tempo depois disso – que para você será uma maravilhosa aventura que nunca mais esquecerá enquanto viver – você vai sair daquele universo e pular no colo do seu pai. Sem suspeitar que aquele pulo era um salto quântico...


Eis novamente a Vitória num novo universo, cercada por outras pessoas e outras vozes e essas pessoas são novas e as vozes diferentes e é bem provável que ela se sinta insegura, como se voltasse a engatinhar, mas os dias trarão palavras, alguém vai ser eleita “a melhor amiga”, porque foi a primeira que se interessou por conhecer a Vitória e deu a já conhecida mão, para que a Vitória andasse. E andando ela correu e correndo, ela pulou...


Um dia a Vitória vai se apaixonar. Vai se sentir desorientada, perdida, como se voltasse a engatinhar. Mas a sensação, a sensação já vai ser conhecida e ela, esperta que é, vai saber o que fazer para andar, correr e, no momento certo, pular. Ela vai sofrer, achar que o mundo inteiro está se esmagando contra o peito dela, vai mergulhar no travesseiro ou no ombro de uma irmã, mas não importa o quanto esse tempo dure, ele vai passar. Afinal, até esse ponto, ela já vai lembrar: que quedas são inevitáveis. E isso vai se repetir no primeiro namorinho dela, primeiro emprego, primeiro amor, primeiro grupo de amigos, primeiro projeto pessoal...


Um dia a vitória vai perceber que essas quedas e saltos são mais sobre aprender e menos sobre deixar de errar, que o macete pra não se irritar com pessoas irritantes é imaginar que elas já foram crianças – e muitas não deixaram de ser birrentas e mimadas -, que o mundo vai tentar convencer ela de que necessita de milhões de bugigangas para ser amada ou respeitada, para “fazer parte” ou “estar integrada”, mas que muito antes de qualquer parafernalha ela já sabia, sempre soube, que já é. Pelo menos pelas pessoas que importam. Ela vai entender que essas pessoas que importam não precisam ser muitas, mas que elas precisam ser verdadeiras e que a Vitória precisa ser verdadeira com elas também. Vai entender o quão importante e gostosa é a idéia de cultivar. Cultivar seu tempo, seus pensamentos, seus sentimentos, seus pequenos prazeres e seus profundos e importantes valores. Vai aprender que a vida se dá por uma série de pequenas trocas, de olhares, de carícias, objetos, sentimentos, pensamentos. Que mesmo que tentem – e vão tentar – vender a ela a idéia de que a relação entre o corpo e a mente dela é uma dicotomia, que um só pode funcionar se estiver reinando soberano sobre o outro, nunca vão conseguir apagar o sentimento, aquela certeza profunda que ela tinha desde que engatinhou pela primeira vez, de que só uma harmonia entre eles pode reinar soberana, já que seus sentimentos vão influenciar seus pensamentos, o funcionamento do seu corpo e mesmo sua relação com a divindade e que nenhuma dessas esferas existe em separado e nenhuma delas é saudável em separado. Vão tentar convencer a ela de muitas coisas, certas e erradas, muitas ela terá de vivenciar para aprender, outras não. Mas o mais importante é que ela consiga distinguir as miríades de idéias, grupos, partidos e modismos que servem para separar a humanidade, das poucas e belas coisas que nos fazem solidários. E que ela saiba que a escolha, entre uma e outra, será sempre dela, assim como o mérito e a responsabilidade pela escolha.


Assim, um dia, quando ela já estiver bem vovozinha, com filhos que trarão netos e talvez bisnetos, ela possa ter vivido seus engatinhares, andares, correres e saltares, seus amores, seus estudos, profissões e toda uma corrente gigantesca de méritos maravilhosos. Nessa época, um dia, ela vai fechar os olhos e sentir que está caindo para trás... mas tudo bem, quedas são inevitáveis.


Receita e Conto: Renato Kress

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Catálogo das profissões afetivas do homem

Homem engenharia genética:
Também conhecido como maníaco por procriação. Só quer namorar pensando nos filhos. Existem vários tipos desse: O engenheiro fenotípico, que só se preocupa se a mulher tem olhos claros ou coxa grossa, se ela é alta ou se tem perfil de atleta; (O alquimista, que só se preocupa em alcançar o "equilíbrio químico" perfeito: procura na mulher o que acha que falta nele, na esperança de ter uma criança-construto; A evolução (estilo pokemon) do homem engenharia genética é o alpinista genético, que cria uma meta na cabeça"minha filha vai ser a Liv tyler com as coxas da Sheila Carvalho", por exemplo) e vai escalando eternamente. Esta profissão afetiva em geral conta com indivíduos que trocam de parceira constantemente.
Vantagem: Se você cumpre o checklist dele, quaisquer outros problemas que apresentar (desde ronco, amantes até convulsões na cama) serão considerados como "probleminhas".
Desvantagem: É bom estar em dia ou ele vai te largar pela primeira pessoa parecida contigo que tenha as mãos menores ou que tenha uma voz mais bonitinha.

Homem futebol:
É um dos mais comuns. Também conhecido como hommo mediocris brasiliensis. O homem futebol geralmente é amigo do homem dono de bar, embora os homens donos de bar em geral não se dêem entre si, os homens futebol têm a tendência a se agrupar. Mulheres que gostem de liberdade, direitos feministas e femininos em geral adoram o homem futebol, afinal, têm suas quartas, sábados e domingo liberados para fazerem o que quiserem, sozinhas. O homem futebol costuma ter predileções patológicas por determinados esquemas de cores, chegando mesmo a discutir com a parceira caso ela esteja com uma combinação de tons que não o agrade. Essa questão costuma piorar nas quartas, sábados e domingos. Você não precisa ser muito corpulenta, mas atente para o fato de que o homem futebol gosta de formas... arredondadas. O homem futebol sempre está atento aos inícios e términos dos ciclos que - segundo ele - compoem o cerne de toda vida humana na terra: Campeonato estadual, municipal, juniores, seniores, copa do mundo e, se for adepto de alguma religião que creia em vida pós-morte é bem provável que torça para algum time na copa do extra-mundo também.
Vantagem: Se o time dele for campeão, prepare-se! Sua noite será inesquecível. Outra: quando você estiver cansada dele, dê uma bolinha para ele brincar.
Desvantagem: Em geral a virilidade do homem futebol está ligada ao resultado do placar, então quando o time dele perder provavelmente o seu também perderá.

Homem cultura:
O homem cultura é um cara sedutor. Ele chega de mansinho, contando sobre povos ianomami, mitologia grega, psicologia e quando você vê está ligando à meia noite para o sujeito para dizer que teve uma discussão com o namorado. Depois de uma hora ouvindo sobre o mito de Eros e Psiquê é que começa a se dar conta de que a tal discussão nem era grave, mas aí você já esta acostumada à voz dele e... bem, ele é homem, certo? Então. O homem cultura poderia ser o homem perfeito se não fosse a intolerância natural da espécie para com outros homens cultura em especial e para com toda a humanidade de brinde. É que o homem cultura se acha o ó do borogodó intelectual e, obviamente, ninguém está apto a compreender as agruras do mundo a não ser ele. E mais ninguém! Mesmo que alguém concorde com o homem cultura, ele, irritadamente, vai desenvolver algum ponto específico em que discorde de quem venha a concordar com ele. Mesmo que tenha de desdizer o que disse antes! (O que é bem comum, nesse tipo de homem) O homem cultura no fundo cultiva mesmo o ego e com o ego é único e indissolúvel, ele precisa ser um eterno incompreendido/iluminado a espera dos seus biógrafos e de alguma carta de sociedade secreta, a qual ele não aceitará, mas guardará com todo carinho do mundo.
Vantagem: Se você gosta de citações e historinhas, esse é o cara! Aliás, se gosta de servir também; eles tendem a ter escravas no lugar de esposas. Você pode ter um caso com ele e aprender muitas coisas por muito tempo, mas quando for pensar por si mesma lembre-se de que irá perdê-lo.
Desvantagem: Se você pensa, tenha um caso tórrido com ele, mas nunca se filie. O partido dele não aceita. Não duvide de que qualquer disputa acadêmica de egos vai excitar ele mais do que a sua lingerie mais ousada.

Homem dono de bar:
É menos comum do que o homem futebol, mas segue quase as mesmas características. O homem dono de bar em geral é baixinho e gorducho. Embora tenhamos algumas variações, o mais característico é a presença de uma vassoura labial. Em geral o homem dono de bar é amigável e sociável e tem picos de serotonina nas quartas, sábados e domingos. Atualmente os homens donos de bares têm sido criticado pelos homens físico por transformarem muitas mulheres em "desgraças" e "bebassas", enquanto prometem aos outros homens em geral mocinhas devassas.
Vantagem: Se você é pinguça, divirta-se! Seu filho provavelmente será o queridinho dos amigos e das amigas.
Desvantagem: Bem provável que ele coloque você pra trabalhar atrás do balcão. E o pior! Sua filha de garçonete.


Homem trabalho:
O homem trabalho se considera um motor. Acredita que seja o responsável pelo desenvolvimento da sua atividade produtiva, da sua relação afetiva, do país e até do mundo. Geralmente preocupado, atarefado e cobrado não gosta muito de ver seus amigos, filhos (quando tem tempo de os ter) ou conhecidos parados ou descansando. Acreditando de descanso é igual a culpa acha que se você não está na zona de ação, está na linha de corte. Geralmente tem seu primeiro ataque cardíaco aos 28 anos. O homem trabalho tem o vício de ser produtivo e tende a estar mais presente (e familiarizado) no ambiente de trabalho que em casa, por isso é bem comum que, na interação com as pessoas mais próximas (por exemplo secretárias) acabe "produzindo" com elas. Finais de semana deixam o homem trabalho tenso, inseguro e irritadiço, mas isso costuma passar enquanto ele faz a agenda da sua semana seguinte no seu blackberry de 300 teclas. O maior desgosto de um homem trabalho é ter um filho homem praia.
Vantagem: Você é Carry Bradshaw? Esse é "o" cara! Compras eternas!
Desvantagem: Se você não é a secretária dele, instale câmeras no escritório ou um gps subcutâneo. Alto índice de produtividade em horas-extras.

Homem praia
O homem praia acorda cedo! É praticamente um habitante do deserto. Seu pé está mais acostumado à areia que ao chão firme, o que faz do seu senso de equilíbrio um dos melhores. Geralmente nunca fazem clareamento dental, o contraste entre sua pele e seus dentes faz com que isso pareça ridículo, mesmo que ele possa ser viciado em mate, que amarela tudo. O homem praia tem toda uma variedade de posições para brincar de estátua: mão na cintura, braços cruzados, mãos nas coxas... Adepto da vida saudável, em geral o homem praia curte nadar, surfar, futevôlei e vôlei. A idade costuma vir com duas raquetes e uma bolinha nas costas. Pode nem morar perto de nenhuma praia, mas acorda às seis da manhã para estar com o sol de sete às sete no verão. Ele é basicamente movido a bateria solar! A falta de bateria não causa cansaço ou moleza, mas irritabilidade. O homem praia gosta de olhar, gosta demais de olhar e ser olhado. Então se você está interessada em um exemplar do gênero, é bom estar em dia com a academia e a marquinha do biquini, caso contrário ele olhará para você com o mais completo olhar de paisagem.
Vantagem: Você pode saber o humor do homem praia olhando para o céu pela manhã. Simples, rápido e infalível.
Desvantagem: Se você gosta de frio ou não é adepta de academia, esqueça! É bom gostar de protetor solar, porque você vai beijar um e cheirar a um depois de um tempo de convivência.

Homem night
O homem night é divertido. Em geral está tentando te embebedar ou te convencer de que o amigo bonitão dele é gente boa, mas muito galinha, enquanto a mão dele desce pelas suas costas. O homem night é muito estudado! Em geral faz alguma faculdade, por oito a dez anos! Isso quando não troca de curso três vezes no caminho e acaba fazendo direito ou administração. Costuma ser bem humorado e projetar sua virilidade no teor etílico que estiver circulando por seu organismo. Sempre cercado de amigos, o homem night parece ainda viver resquícios da adolescência, onde só conseguia andar em bandos. Adepto da moda, é capaz de virar a noite num bate-estaca, faturar alguma menininha no processo, fingir que vai trabalhar só para expulsar a menina do apartamento do pai e ir tomar o café da manhã num shopping, esperando pra comprar a camisa da osklen que o fulano estava usando na noite anterior! O homem night tem a tendência de "chegar chegando", e muitas pessoas duvidam que eles possuam apenas um par de mãos, já que ele consegue chegar abraçando duas meninas pela cintura, bebendo vodka, redbull e segurando um celular ao mesmo tempo.
Vantagem: Não dá pra confiar direito, mas ele costuma ter amiguinhos bonitinhos, pelo menos. Ah, e você vai dançar até quebrar os joelhos!
Desvantagem: Acham que a vida vai acabar amanhã, então a não ser que você queira levá-lo a uma rave em Amsterdã, não faça planos!

Homem nerd
O homem nerd não é como o homem cultura. Para começar, ao contrário do homem cultura, o homem nerd consegue suportar a opinião alheia, pelo menos a ponto de criar grupos para jogar RPG (não, não estamos falando de reeducação postural global nem de redução percentual de gorduras, estamos falando de role playing game, um joguinho de representação que é como teatro para os desprovidos de talento interpretativo com imaginação hiper-hiperativa) nos domingos de manhã. O homem nerd em geral possui um emprego público, que lhe dá tempo e estabilidade para criar cidades imaginárias e lendas lendárias onde toda a sua criatividade e cultura inútil será despejada como estouros de represas ou como discussões em blogs de super-heróis, aliás criados e frequentados somente por esse tipo de homem. O homem nerd, quando consegue tomar banho e se barbear, pode ser considerado um "fofo" com as mulheres, porque tem a tendência de ser meticuloso e cuidadoso com tudo o que não conhece bem. Ele vai lembrar das suas frases, palavra por palavra, mesmo que às vezes insista que você estava vestida de fada ou com uma capa de vampiro. Em qualquer conversa evite frases como "aqui e agora", provavelmente ele vai achar que nem é com ele, já que vive em outra dimensão e tempo. Se você lia Marvel ou DC quando era criança, vai ser amor às primeiras sílabas. Se você consegue entender do que se trata siglas como DEVIR, AD&D, D&D, GURPS e cia, esse é o seu cara!
Vantagem: Se você conseguir convencer o sujeito de que é uma princesa, será tratada como uma!
Desvantagem: Não conte com ele para pagar contas em dia, fazer esportes ou comer bem. Aliás acostume-se com a idéia de que o computador é a esposa e você, na melhor das hipóteses a mãe incestuosa.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Solo

"Parece que, para compreender bem o silêncio, nossa alma precisa ver alguma coisa que se cale; para estar segura do repouso, ela precisa sentir perto de si um grande ser natural a dormir" - Gaston Bachelard

Ele era torpe. Não moralmente torpe, mas suas atitudes se orientavam no tempo como se visse o mundo por um vidro embaçado, entorpecido. Era uma situação fantasmagórica de uma palpitação interna arredia que desaparecia quando ouvia passos no corredor do prédio, ou o telefone tocando.


Ele tentava pensar em outras coisas, se ocupar, ler um livro, ir ao cinema, mas fosse o que fosse, o silêncio sempre ameaçava engolir seu peito como uma onda de nulidade que ameaçava mergulhar ele e seus pensamentos numa massa informe na multidão. O silêncio não era total nem auditivo. Talvez eu ou você ali ouvíssemos muitos sons. O silêncio era pessoal, era com ele, era nele.

Quando tentava trabalhar alguma espécie de bafo sobre seu ombro lhe gargalhava na cara a inutilidade, a frustração cotidiana da sua falta de tato para com as próprias idéias e aspirações. Era risível, cedo ou tarde ele teria de parar, cansado, e o trabalho teria avançado e retrocedido a ponto de estar sempre no mesmo ponto, mesmo que muito ou pouco fosse feito.

No cinema, após uma hora de filme, já se sentia esmagado na cadeira pela vergonha de levantar, sozinho, entre aquela pequena sociedade de casais e grupos de amigos, famílias. A dor não negligenciava sua memória por mais de uma hora, fosse como fosse. A rua para ele era como uma sucessão de fios multicoloridos que traçavam retas, estabeleciam laços e cruzavam nós, entre as pessoas que se conheciam, se sorriam, cumprimentavam. Sentia, da mesma maneira, que sobre seu corpo estava enrolado também o seu laço, que, por desuso, acinzentava, mas não perdia a força contritora, esmagando seus braços, limitando seus movimentos, amordaçando seus sorrisos.

Um dia, sentado no sofá, desligou a televisão. Quase nunca desligava a televisão. Sabia que atrás dela estava agachado o fantasma-tigre que daria o bote final sobre ele, naquele momento. Abriu bem os olhos, como se esperasse o ataque. Então fechou os olhos e simplesmente não resistiu, aceitou, respirou fundo e esperou.

Para seu espanto a solidão não o invadiu, pareceu até diminuir. Passou a imaginar situações do passado em que esteve profundamente só – viagens, momentos no seu quarto na infância, recreios no colégio, términos de relacionamentos, lutos – aquelas lembranças sempre foram a chave para seu quartinho asfixiante de pânico e tensão. Estranhamente a solidão tinha perdido seu poder. Não conseguia mais sentir o pânico, mesmo que tentasse. Quando mais convidava o sentimento a aparecer, mais impossível parecia, a si mesmo, sequer imaginar que havia sentido um dia aquela dor insuportável.

Ele havia descoberto, ou estava ensinando a si mesmo, que sentia a solidão aguda apenas quando fugia. Quando voltou para encará-lo de frente, o demônio fugiu.

Conto e receita: Renato Kress

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Mãe




O leite do meu seio é magma, o leito, do meu sono, é água. Participo de um equilíbrio delicado, tenho nomes e meus nomes tem camadas, como a forma pela qual me entendem meus filhos. Se me arrebatam a roupa de cama, remexo, sinto frio, suo, tremo. Se me perfuram a carne em demasia escorre do meu ventre o que escorre dos seus, minha seiva, meu sangue, minha vida.
Gaia, mesmo nos códigos que vocês inventam, esquecem depois seus significados. Vivem rodeados dela. Seja onde pisam, onde moram, o que respiram, comem, digerem, desejam, onde morrem e o que se tornam sempre: matéria. Lembro de quando descobriram a palavra matéria, vinha de Mater, Matris, “Mãe”. Porque certas palavras não se criam, certas palavras se sentem.
Erda, sou a anciã que sustenta teus saltos mais mirabolantes, tuas acrobacias e invencionices. Sou a senhora complacente e submissa, que recebe os castigos malcriados dos filhos imaturos. Sou a firmeza calma e duradoura. Além de ser suas bases, sei de algo que não sabem aceitar: eu fico, vocês passam. Antes de vocês houve outros e depois os haverá, tão cedo que nunca se lembrarão, tão tarde que nunca conhecerão. Ainda assim, os amo e nutro, como únicos.
Geb, sou universal, primordial, essencial. Sou fecundada pela água que sai de mim mesma. Minha língua é um sistema que se equilibra sozinho e eu tenho algumas eternidades para me equilibrar. Mesmo que eu tivesse pressa, vocês nunca notariam. Suas idéias, pensamentos, seus mais puros ou devassos sonhos são piscares dos olhos de seus próprios deuses, cada um dos quais precisou de um solo para erguer suas sinagogas e catedrais... e eu os doei com tanta alegria!
Porque tenho um carinho especial pelas formas como resvalam em mim sem me perceber. Ninguém pode vir ao mundo sem passar por mim, ninguém pode ver a luz se não por mim. E vocês me procuram em tantos lugares incríveis, e vocês me projetam a alturas indizíveis. De alguma forma não cabe a vocês – ainda – perceber que eu possa estar abaixo da planta de seus pés e ainda assim palpitar dentro do seu peito saída diretamente de uma alga. Porque eu sou mais singela do que vocês imaginam e vos acaricio por inteiro, não importa o que vocês façam, não importa onde vocês vão, eu estarei lá, eu serei lá.
Procuram meu centro em tantos espaços, terras santas, bem aventuradas, centros do mundo. No meu centro mesmo não podem viver, e já bem o conhecem, mas podem fazer de qualquer espaço meu um centro. Não sou mais eu aqui do que lá, mas sinceramente? Gostaria que fizessem de si mesmos centros sagrados. Porque eu vou ficar aqui, mas me dói ver vocês partindo tão cedo.
Conto e Receita: Renato Kress

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cacos

Não, ele estava ali, sabe? Na beira do precipício. Espera, deixa eu contar do início. Era um escritório assim como o seu, mas havia um armário diferente na parede, um armário que eu nunca havia notado. Simplesmente ele estava lá, na verdade tenho a impressão meio nítida de que era só uma maçaneta suspensa no ar, como se desenhada na parede, aí eu simplesmente coloquei a mão nela. Alguma coisa me puxou, minha mão, sabe? Então, a maçaneta estava fria, como se ninguém tocasse nela há muito tempo e começou a esquentar muito rápido quando eu toquei nela. Como eu te disse, estava num escritório - engraçado como ele parecia com o seu - e sabia que ele era meu. Não sei ao certo porque, mas sentia que aquele espaço pertencia a mim, como se fosse uma extensão de mim mesmo por aquelas paredes azuis. Quando coloquei a mão na maçaneta ela esquentou, lembra? É. Eu tirei a mão. Mas percebi que enquanto ela esquentava formava uma espécie de contorno, uma silhueta de porta na parede. Aquilo tudo era muito perceptivo, bem claro, óbvio, embora eu soubesse que não estava vendo todo o contorno simultaneamente, porque estava perto demais da porta pra ver, mas sabia que ele se formava inteiro, assim que eu colocava a mão na maçaneta. Testei ela de novo e estava fria, esquentava de novo. Abri de uma só vez e entrei num cômodo amadeirado enorme, recheado de livros e gavetas e armários. Como se houvesse uma outra biblioteca dentro daquele escritório, e haviam alguns andares para cima e uma escadinha, à esquerda, que dava pra baixo. Era enorme! Posso relembrar minha alegria quando percebi que havia ali mais livros do que eu jamais havia sonhado em ler e aquilo tudo atiçava minha curiosidade, mas algo me dizia que eu voltaria ali e não era necessário começar a olhar tudo - todo aquele inacreditável presente - de uma hora para outra, porque eu tinha pego a chave da porta, assim que a fechei atrás de mim. Me aproximei de uma mesa, uma grande mesa de centro, e era engraçado porque ela exalava o perfume que sinto quando escrevo, sabe? Talvez o perfume da minha mente, criatividade. Procurei não pensar naquilo enquanto via uma carta endereçada a mim sobre os papéis avulsos ali. Estava endereçada a mim, mas não tinha remetente identificado, só um símbolo de um sol eclipsado por uma lua na parte da frente, mas o tal eclipse só era visto contra a luz, num determinado ângulo que não percebi de primeira. Enfim, abri. Senti-me ridículo por abrir a carta e ver apenas uma indicação vaga da planta daquele cômodo, com uma indicação forte, por entre as linhas negras de nanquim, apontando uma varanda em tinta vermelha. olhei para trás para perceber que a tal varanda ficava ali atrás de mim, de onde eu estava sentado, logo acima do lance de escadas que me levava para cima, no segundo andar da casa, o andar recheado de livros, tanto que não se via a cor da parede. Subi as escadas e estava chegando à varanda quando uma luz qualquer me irritou os olhos. Era o sol e na verdade, o fim da varanda não era bem uma varanda, mas uma entrada ao nível do solo, e eu percebi que o tal cômodo estava enterrado dentro da terra, foi quando vi que a planície à minha frente se elevava até formar uma colina, onde uma figura muito bizarra praticava alguma dança sinistra. É claro que aquilo tudo me deixava cada vez mais curioso e desnorteado, então fui andando em direção à tal figura, cuja silhueta percebia muito vagamente, porque exatamente atrás dela ficava o sol, imponente e acho que estranhamente vivo. Não sei explicar a idéia de um sol vivo, mas ele reagia, respondia ao longo dos meus passos e depois a coisa foi ficando mais intensa. fui percebendo que, à medida que me aproximava da tal figura dançante o sol ficava mais forte, quente, agressivo. Quando comecei a suar demais, sentei. Coisa entre cinco e dez metros da tal figura. Ele parecia não notar minha aproximação. Foi quando percebi que, à frente dele, exatamente na linha onde ele dançava e fazia malabarismos e saltos, estava um abismo. Quem me mostrou o abismo foi o vento, o vento que subia e trazia, às vezes tão forte que, sentado no chão, tinha que agarrar a grama pra não me sentir jogado pra trás. A figura fazia malabarismos sobre um abismo e eu, sem ter o que fazer ali, comecei a falar com ela. - Oi? Porque você está fazendo malabarismos no abismo? Ele deu uma gargalhada baixinha, e percebi que tinha uma barba longa nessa hora, foi quando me respondeu: - E não estamos todos? Fiquei perplexo porque sua voz era uma mistura estranha da minha, da minha mãe, meu pai, uma professora do primário, um professor da faculdade, um senhor com quem conversava na adolescência, uma mulher que me ensinou religião e mais um monte de outros que não distingüia. De qualquer forma segui ali admirando seu equilíbrio, sobre o vento do abismo. Estranho que quando ele parecia se desequilibrar o vento aumentava e jogava ele para cima de volta. De alguma forma ele se movia livre porque sentia que não iria cair. Tentei de novo me aproximar, dessa vez mais rápido e o sol arrebentou em luzes multicolores que me queimaram a pele e me cegaram. Confuso, sentei de novo. Voltei a onde estava antes e até acertei a mão sobre onde ela estava, marcada na grama. Esperei minha visão voltar ao normal e perguntei: - Quem é você? À medida que as palavras iam saindo de minha boca ele plantou bananeira com uma mão só bem na beira do abismo, de costas para mim, já não tinha a tal barba longa. Nessa posição parou, imóvel, e disse: - Sou o nunca-você! Aquela voz dessa vez havia saído como o bater de asas de mil pássaros e aquilo me atordoou demais. Foi quando ele disse: - Não gostou da minha primeira voz, troquei. E não, eu não consigo falar baixo, não a essa distância. Não prefere conversar da varanda? Aquela última frase havia saído num tom de desafio, de cinismo, meio como uma brincadeira. Foi quando alguma coisa entrou no meu dedo, cortando. Olhei para baixo e vi um caco, um caco qualquer que entrou na dobra do meu dedo indicador. Tirei. O sangue passou quente para a grama, que se pintou de um vinho brilhoso. Fui olhar o caco, era um pedaço de uma gola de camisa que usei no dia que levei a Talita no colégio pela primeira vez. Do lado dele tinham outros cacos e outros, por toda a grama vinho um monte de cacos enormes, pequenos, minúsculos, como grãos de areia ou lajes e telhas. Foi quando me irritaram todos aqueles pedaços amontoados. Alguns tinham pedaços, imagens de mim, um pedaço do meu calcanhar quando caí de bicicleta, meu polegar e indicador assinando um documento qualquer, meu umbigo num jogo de futebol, nunca me via inteiro, muitos cacos não tinham sequer um pedaço de mim, mas de alguma forma não eram estranhos de todo. Não sei explicar. Tinha gente que nunca vi em alguns pedaços, um sorriso de um velho oriental, um olhar de uma criança negra, cabelos de índios. Foi quando olhei para a frente, a planície que virava abismo estava recoberta desses cacos, milhões desses cacos a ponto de me enlouquecer ali, e eram todos cortantes. Foi quando pensei no malabarista, na sombra, olhei diretamente para ele - o mais que dava, claro - e vi seu corpo todo ensanguentado, enquanto ele fazia malabarismos sobre os cacos no abismo. Ele não parecia se importar com nada daquilo e, a cada segundo dava saltos mais altos, saltos mortais, carpados, saltos impossíveis à beira do abismo. Perguntei: - Você está sangrando, pára! Levantei as mãos recheadas de cacos, sangue, disse: - O que é isso? A figura parou, cravando os pés violentamente no chão, de frente para o abismo, costas para mim. Tomou distância do abismo, andando de costas na minha direção. Respirei aliviado, tentava ver seu rosto, quando sua sombra cobriu todo o meu corpo sentado no chão ele correu para o abismo e saltou: - É vida!

Conto e Receita: Renato Kress

domingo, 25 de abril de 2010

Carta a um sobrinho




Oi Henrique,

Aqui é o seu tio Renato, tudo bem? Espero que sim. Tenho visto suas fotos das apresentações do teatro e estou vendo que terei que ligar do Ziembinsky e perguntar dos elencos das peças para poder ver algo seu. Para não dizer que não tem meus telefones, segue junto com essa carta um cartão com todos eles, inclusive meu endereço, caso me dê a honra de responder a essa singela cartinha.

Me disseram que anda interessado em mitos. Provavelmente por mitologia grega, que é o caminho natural quando a gente começa a se interessar pelo assunto. Eu resolvi te escrever um pouco sobre isso e espero que goste do que vai ler nas próximas páginas. Vou tentar descrever uma história que contei para alunos meus num curso em que eu usei mitologia grega como base. Espero que você goste.

O Fio do destino

De Zeus a Helena

Vou te contar uma historinha diferente, algo que eu sei que não vai encontrar nos livros que eu pretendo te dar em breve. Vamos ver... que tal saber como Zeus gerou a maior guerra do mundo grego para poder se livrar de um “probleminha” familiar dele?

Na verdade tudo começa no Kaos (ou Cáos) uma divindade bem lá de trás, antes mesmo do tempo e até mesmo do espaço existirem. Kaos é uma bagunça só. Na verdade ele é tudo misturado e sem forma, como as suas roupas no cesto antes de lavar, só que pior, como se elas estivessem costuradas umas nas outras e misturadas com as dos seus irmãos e misturadas com perfumes, jogos de Playstation, cabelo velho, perna de barata, pedacinho de feijão no dente e tudo o mais que você puder imaginar.

Acontece que na mitologia Kaos era isso. Era tudo misturado, sem diferença, sem distinção, sem sentido (mais ou menos como turistas japoneses ou o noticiário da TV). Um dia Kaos se sentiu isolado, carente e sozinho (dizem que ele estava tentando coçar as próprias costas, mas, na bagunça, não achava nem o coçador nem a própria mão e quando achou uma mão não tinha bem certeza de que era sua) e, então, pra se livrar da coceira, juntou toda a matéria num único ponto, que chamou de Gaia.

Gaia era toda a matéria condensada num pontinho que se separou de Kaos. Ela precisava se separar para coçar as costas dele, lembra? Mas à medida que ela ia coçando, ele - que era tudo e era bagunça - foi se arrumando em Gaia e não-Gaia, em bagunça e não-bagunça, até que desapareceu.

Gaia, que passou três eternidades, dois infinitos e meio “para sempre” coçando as costas de Kaos até que ele desaparecesse, finalmente respirou aliviada. Do suspiro profundo saído dos pulmões primordiais de Gaia saiu Úrano (não, não é urina, é sopro e se chamava Úrano, com acento no “u”) e Úrano se espreguiçou por todo o espaço possível, criando, junto com Gaia, o que os antigos contadores dessa história chamavam de Kosmos (“ordem”). Antes com Kaos era uma bagunça generalizada: mosquitos comiam dinossauros que tinham patas de caranguejo enquanto hipopótamos azuis dançavam com igrejas cantantes.

Úrano e Gaia se olharam e se acharam assim... engraçados. Ela toda feita de matéria, toda terra, toda árvore, metal e pedra; Ele todo feito de ar, sopro, vento, idéias. Então casaram e tiveram muitos e muitos filhos, todos deuses. Mas com receio de que algum filho pudesse destroná-lo de seu lugar como rei dos deuses, Úrano não deixava que Gaia desse à luz os deuses que se avolumavam em sua barriga. A deusa terra foi ficando cada vez mais inchada, roliça, rotunda, parecia uma bola de praia.

Um dia, cheia de dores, ela disse aos seus filhos – todos cada vez mais amontoados e sufocados dentro de seu ventre:

- Aaaaah!!! Essa agonia está me matando! Minha pele está esgarçada, meu corpo inteiro dói e meu umbigo parece um vulcão! Aquele entre vocês que conseguir me livrar da tirania de seu pai Úrano, será o novo rei dos deuses. Qual dentre vocês vai me livrar dessa dor?

Dentro de Gaia haviam três gerações de divindades que ouviam seu discurso: os três Cíclopes - Arges, Estérope e Brontes -, mestres do raio, do trovão e das tempestades, os três Hecatônquiros – Coto Briareu e Gias -, os maiores de todos, gigantescas criaturas com cem braços e cem olhos e, por último, a geração dos doze Titãs, seis homens – Oceano, Ceos, Crio, Hipérion, Jápeto e Crono – e seis mulheres – Téia, Réia, Febe, Mnemosina e Tétis .

Não se sabe ao certo se o mais novo entre as três gerações de divindades dentro de Gaia foi o mais ávido pelo poder ou se simplesmente não teve forças para se esconder atrás dos irmãos quando todos, amedrontados, se acotovelaram para dentro de Gaia, com medo de uma punição do Pai todo-poderoso Úrano, Senhor dos Céus. O fato foi que Gaia entendeu que seu caçula Crono, deus do tempo, era aquele destinado a vingar a mãe pela crueldade do pai, que não deixava que ele e seus irmãos nascessem. A mãe terra deu então a seu filho vingador uma foice feita do “leite do seu seio”, na verdade uma foice criada pelo metal líquido que corre nas entranhas do planeta, e, com essa foice, Cronos foi instruído a subir por uma nuvem até o espaço em que poderia avistar alguma parte de seu pai.

Não demorou muito para que Úrano viesse, como sempre, visitar Gaia e esta, sem muita opção mas tramando em segredo, deixou que ele entrasse. Assim que Úrano chegou, Crono se adiantou e, com a foice, castrou seu pai que, num urro grotesco que se confundiu com as vibrações do universo por milhares de anos, ecoou avassalador ensurdecendo toda a realidade por aquele momento. Ao se afastar, sangrando, Úrano lançou a seguinte maldição:

- Serás destronado e destruído pelo mais jovem entre os seus!

Crono sabia muito bem que, a partir de agora, deveria temer, acima de tudo, seus filhos. Sendo assim libertou todos os seus irmãos titãs, menos aos Hecatônquiros e aos Ciclopes, irmãos mais velhos que ele sempre temeu. Os titãs casaram entre si e tiveram várias outras divindades, sobrinhos de Cronos que casou com Réia, uma de suas irmãs.

Por causa da maldição de seu pai Úrano, Cronos temia muito que qualquer filho seu viesse a crescer para lhe derrotar ou tomar seu lugar. Então pedia a sua esposa Réia que, assim que nascesse qualquer um de seus filhos, o entregasse para que ele pudesse... criar a criança. Na verdade ele engolia os bebês e dizia para Réia que “em breve” ela os veria de novo. Depois de um tempo, claro, a deusa regente do mundo começou a estranhar o sumiço dos bebês e a criar um ressentimento muito grande do poderoso rei dos deuses, seu marido.

Depois de um tempo ela engravidou de seu sexto filho, Zeus. Cansada de dar seus filhos para que Crono desaparecesse com eles, escondeu o pequeno Zeus numa caverna na ilha de Creta e deu a Crono uma pedra enrolada com línguas de animais para que ele as comesse. Crono não estranhou e engoliu rapidamente o que achava que era o pequeno Zeus.

Zeus cresceu numa caverna na Ilha de Creta e foi criado por sua avó Gaia e por uma cabra chamada Amaltéia, mas essa é uma outra história que contarei a você um outro dia. O fato é que Zeus cresceu o suficiente para batalhar com seu pai Crono, conseguiu fazer com que ele vomitasse seus irmãos engolidos e, junto com eles, libertou os Hecatônquiros e os Ciclopes unindo forças contra seu pai e seus tios, da geração dos Titãs. Foi uma batalha horrível, que modificou todo o solo do mundo, criou e devastou montanhas, desviou cursos de rios e criou explosões oceânicas enquanto o céu bradava. Os titãs sobre o monte Ida e os olímpicos receberam seus nomes justamente por estarem localizados sobre o monte Olimpo, bem no centro da Grécia. Sobre essa batalha podemos conversar mais à frente, o fato é que os Olímpicos venceram e Zeus, cumprindo a profecia de seu avô Úrano, destronou seu pai Crono e tornou-se o novo rei dos deuses.

Muito tempo se passou e Zeus, estabilizado no poder e depois de ter dividido o universo entre três camadas sobre as quais ele reinava supremo, desentendeu-se com seu primo Prometeu, por este ter roubado o fogo sagrado dos deuses e levado para os homens, para que eles se abrigassem no frio, cozinhassem e pudessem dormir de noite sem medo de serem atacados por animais selvagens. Zeus havia tirado o fogo dos homens por medo de que eles adquirissem poder suficiente um dia para destroná-lo. Ao contrário de seu avô e de seu pai, Zeus não engolia seus filhos, mas sempre fez questão de ser um ótimo pai, amigo e companheiro de seus filhos, para que nenhum deles quisesse se virar contra ele. De qualquer forma Zeus prendeu seu primo Prometeu no monte Cáucaso onde ele ficou de cabeça para baixo tendo seu fígado comido eternamente por uma águia. O fígado de Prometeu se regenerava toda noite e, assim, ele ficaria sofrendo para todo o sempre, não fosse o fato de Prometeu ser um deus que conhecia a “Mântica”, a arte da adivinhação, e, por isso, sabia de um segredo que muito importava ao rei dos deuses: Como e quando ele iria ser deposto!

Zeus havia jurado a Prometeu que ele nunca se veria livre da punição por ter dado o fogo aos homens, que estaria “ligado ao monte Cáucaso para sempre”. Então não poderia libertá-lo e, sem essa liberdade, seu primo também não diria quem, como e principalmente quando Zeus seria destronado. O deus dos deuses estava completamente encurralado por sua própria palavra. Não poderia libertar Prometeu porque a palavra de Zeus não volta atrás, e sem voltar atrás não poderia saber como impedir que um filho seu pudesse tomar seu lugar, como fizeram seu pai e ele mesmo. Chamou Hermes, um de seus filhos e deus dos mercadores, da comunicação e dos ladrões para persuadir Prometeu.

Seguiu-se uma terrível discussão em que Prometeu, usando da sua polymetes (astúcia, inteligência ligada à prudência) reverte todos os argumentos de Hermes lhe mostrando que, por ser patrono dos mercadores e ladrão desde o nascimento, o deus de pés alados não poderia compreender que Prometeu não estaria interessado em ‘ganhar’ qualquer coisa com aquela discussão e nem Hermes teria qualquer autoridade para acusá-lo de ladrão, pois como Prometeu “roubou” o fogo de Zeus para dá-lo aos humanos, Hermes, assim que nasceu, roubou os bois de seu irmão Apolo. Hermes voltou a Zeus de mãos abanando, apenas para ouvir o trovão na voz de seu pai, expulsando ele para longe, irritado com a falta de habilidade do deus da comunicação e da lábia.

Muito tempo depois Hércules libertou Prometeu do monte Cáucaso e, para não desobedecer a seu pai Zeus, deixou que uma das correntes que prendiam ao poderoso deus pelos pés ficasse presa, quebrando apenas uma parte da montanha. Dessa forma Prometeu ficou para sempre preso a um pedaço do monte, e, liberto do castigo de Zeus, disse a Hércules que Tétis – uma deusa do mar, filha do Titã Oceano – estava fadada a ter um filho cem vezes mais poderoso que o pai e este, com certeza, poderia destroná-lo e matá-lo. A essa época Zeus estava cortejando Tétis quando foi avisado por Hércules. Zeus então desistiu imediatamente de estar com ela e obrigou a deusa do mar a casar com um mortal que, mesmo que fosse cem vezes mais poderoso, nunca chegaria aos pés de Zeus. Porque mesmo que Tétis viesse a se casar com outro deus, seu filho, cem vezes mais forte que o próprio pai, ainda poderia dar problemas no Olimpo.

Zeus arranjou para que Tétis casasse com Peleu, um rei grego, e desse casamento nasceu Aquiles, o maior dos heróis da Grécia. Cem vezes melhor que seu pai, mais forte, mais rápido, mais habilidoso do que qualquer ser humano e melhor do que qualquer um dos Heróis gregos de sua época, Aquiles foi o maior herói grego de seu tempo.

Ao casamento de Tétis e Peleu foram convidadas todas as divindades do Olimpo, menos Éris, a deusa da discórdia. Afinal, quem quer a discórdia numa festa de casamento? Bem, no dia da festa Atena - deusa da inteligência, justiça e estratégia – Hera – esposa de Zeus, deusa do poder, da família e do casamento – e Afrodite – deusa do amor, da sensualidade e da sedução – estavam conversando juntas. Éris jogou entre elas uma maçã de ouro em que estava escrito “para a mais bela”. As três deusas correram para Zeus, para que ele decidisse a quem pertencia a maçã, qual delas era a mais bela. Zeus, esperto que é, não poderia escolher entre duas filhas e sua esposa e disse a elas que o príncipe Páris, de Tróia, era o mais justo entre os homens e ele poderia facilmente decidir a quem pertencia a maçã. Mesmo que Zeus já soubesse que isso não ia dar em boa coisa porque Páris não era nada justo, e, para falar a verdade, havia feito tantas bobagens como príncipe em Tróia que seu pai Príamo havia deixado ele de castigo cuidando dos rebanhos do reino bem longe do palácio. As três deuses tentaram Páris, cada uma a seu modo, subornando-o. Hera ofereceu poder e o reinado sobre o mundo, Atena ofereceu a vitória em todas as batalhas que travasse, a glória e a sabedoria e, por último, Afrodite ofereceu a Páris o amor da mais bela entre as mulheres, Helena.

Claro que Afrodite esqueceu de dizer a Páris que Helena era casada com Menelau, rei da Lacedemônia, território que depois mudou o nome para Esparta, assim como Zeus esqueceu de dizer às três que isso tudo ia dar um problema muito maior, uma guerra tão grande que poucos Heróis gregos sairiam vivos. Mas tudo bem, porque Prometeu esqueceu de dizer também que, depois dessa guerra, a crença na existência de Zeus e de todos os outros deuses seria cada vez menor, até desaparecer por completo... mas essas são outras histórias, para outras cartas.

Conto e Receita: Renato Kress

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