quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Dois em uns



Um sorriso e um suspiro. “Perfeito!!!” Pensou Olívia, sentindo uma leveza qualquer e indiscernível nas pontas dos dedos, um arrepio pela sola do pé esquerdo até a nuca que percorreu seu corpo pequeno como uma leve centelha elétrica e lhe deu uma graça felina para perto do corpo de Eduardo. Fechou seus olhos verdes e deixou uma linha labial se esgueirar entre as orelhas, criando duas lindas covinhas no solo das bochechas.

Queria estar ali por horas, esquecer relatórios, endereços, compromissos. O entrelaçar úmido de suas coxas, já sem forças para qualquer outro movimento, era simplesmente perfeito! O cheiro fresco do shampoo de menta de Eduardo e a atmosfera de pêlos e pele simplesmente haviam catapultado Olívia para fora da Samsara, da roda das encarnações nesse mundo. Ela era o nirvana, ela era ele. Mais um longo suspiro e... Era tudo perfeito!

Talvez fosse o melhor momento para dorm...

- Tava pensando...
Um estremecimento qualquer interrompeu o fluxo de sensações dentro da cabeça da jovem.
- Tava pensando na gente. Você nunca fala nada. Sabe.... durante.
Silêncio total. Olívia simplesmente não acredita enquanto Eduardo puxa bruscamente o braço por trás de suas costas, apoiando-se sobre o cotovelo e empurrando um pouco seu rosto para ajeitar o braço. Pequenas insensibilidades que minaram o solo de nuvens do castelo de Olívia.
- Não sei. Nunca sei se você está gostando, se eu deveria fazer diferente, mudar menos de posição, te pegar em outros lugares, puxar menos teu cabelo... demorar mais no comecinho...

Olívia fecha os olhos, tenta recompor o fluxo, o nirvana. Concentra-se nas suas coxas, virilha. A mão de Eduardo passa por sua cabeça quase que embaralhando seu cabelo e idéias, como se faria com uma criança que precisa terminar a lição antes de dormir e diz: - Amor, tô falando.

Quase sem som a boca de Olívia se abre em tom de desaprovação.
- Está perfeito. Não muda nada. – E suspira e vira de lado profundamente querendo parar as palavras dele agora já mais dentro que fora dela.

- Sei que parece, mas podemos melhorar, não acha? Li?
Ela morde as paredes internas das bochechas quase como se travando quaisquer palavras que não pudessem sair àquele momento. Mas falha, elas fogem tão logo Olívia afasta seus dentes e, entre um aspirar profundo que precede o suspiro irritadiço, atingem em cheio o ar recheado de um silêncio tenso:
- Eu sabia que isso ia acontecer...
- O que?
Abrindo suas lindas órbitas verdes em direção àquela voz ininterrupta, Olívia dispara:
- Tudo teu é complexo demais. Juro que estranhei que o sexo fosse tão bom e que depois você soubesse ficar quieto. Tava demorando mesmo...

- Mas Li...
- É sério, Du. Olha, é a terceira vez que estamos aqui na tua cama, se não fosse perfeito na primeira juro que simplesmente não atenderia teus telefonemas mais, inventaria uma desculpa, deixaria você perceber umas pistas. Mas não, apesar da tua cabeça, da tua necessidade de uma vida sem mistério, obscuridade charmosa que geralmente tanto me encanta... dessa tua necessidade de sempre deixar tudo tão claro que a graça se perde no caminho, apesar dessa sua transparência chata, tuas manias de explicar tudo, falar demais, nosso sexo é perfeito. Sempre foi. Por isso estou aqui agora, dormi aqui ontem.

- Preciso saber o que acontece com você. Quero te entender.
Olívia passou a mão na testa, desacreditando a ingenuidade quase infantil daquele homem de quase dois metros de altura.
- Lindo – palavra que saiu irritantemente condescendente aos ouvidos dele -, presta bem atenção: Eu não quero ser entendida. Nem sei se quero ser amada como você pretende amar. Estamos ótimos como estamos. Não problematize as coisas.

- Não tem como você me escutar mesmo, não é?
A mão que estava na testa agora fechou-se deslizando o antebraço delicado de Olívia para cima dos olhos. Apenas sua boca delicada, sem covinhas nem sorrisos, irritada e monossilábica:
- Tem. Depois.

Eduardo levantou-se bruscamente da cama. Colocou cueca, calças, camisa. Maçãs do rosto vermelhas, dentes trincados.

Olívia escorregou o antebraço para olhá-lo com certo desdém e irritação.
- Que foi agora?

Apertou com força a trava do relógio no pulso:
- Nada. Vou sair. Pode deixar, não vou ficar falando, problematizando, explicando nem tentando entender.

Ao deslizar o antebraço para cima dos olhos de novo, Olívia deu um sorriso. Poderia ser alivio, ironia, desdém. Na realidade nem ela saberia a pulsação daquele sorriso, e não saber, para Olívia, era o conforto necessário à graça da vida.

Aquele sorriso, visto pela periferia do olhar tenso de Eduardo foi um soco no estômago.
- Ta bom, chega! Não te entendo, não tô afim de ficar pensando nisso agora, não tô com saco pra agüentar tua ironia. Que merda de sorriso foi esse?
O minimalismo de Olívia impediu que qualquer músculo de seu corpo além dos de sua boca participassem da resposta: - Você quer mesmo brigar?

- Não. Quero te ver depois. Tô indo na rua esfriar a cabeça. Pensar direito na gente.
- Engraçado você. Vai na rua esfriar a “cabeça”, precisa “entender” tudo, “pensar direito”. Pensei em te perguntar se te passou pela cabeça que não é pela cabeça que deveriam passar teus pensamentos agora, mas você não “entenderia” a pergunta.
- Olha, vai se ferrar. Tô saindo da minha casa pra te deixar em paz, já vi que minha voz te irrita, que meu jeito é péssimo pra você, que você precisa viver esses mistérios sentimentais dos quais eu nunca vou participar.
Olívia levantou de um pulo, seus olhos poderiam estar vermelhos do antebraço pesando, das lágrimas contidas, da raiva, do sono - Fica tranqüilo, “pensador”, eu deixo você sozinho aí no teu castelinho regrado e pensado. Quanto aos mistérios, te diria que são mais sensíveis que “sentimentais”, você não me deixou chegar a esse ponto, ainda. Nem vai. – Mergulhou o vestido sobre seus braços até abaixo do joelho e andou em direção à porta, esperando que Eduardo a seguisse, nu de palavras, e a abraçasse por horas, trouxesse o nirvana de volta.

- Aproveita e leva o aquário!
Um suspiro profundo desceu pela garganta até a boca do estômago de Olívia.
- Não é um aquário porra, é um vaso! Tem uma planta aí.
Marchou até ela com passos duros, a redoma de vidro entre as mãos.
- Não é porque eu coloco uma rosa na privada que ela deixa de dar descarga.

Blam!

Ah, é?

Crash!

Receita e Conto: ®Ҝ
Fotografia: Caroline Poirey

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Eu e Ela


- Vem, hoje vamos passear.

- Só nós dois, vó?

- Só nós dois, amor.

Procurou como um louco o gravador que havia ganho semana passada de seu pai. Levava ele sempre no bolso. Pensava que tudo deveria ser gravado, repensado, escutado várias e várias vezes. No fundo amava aquele poder incrível de viver a vida várias vezes, escutar sempre com outros ouvidos a mesma e a mesma conversa. Era divertido.... Nada. Embaixo da cama, nas estantes, gavetas, mochila do colégio, afundou a mão dentro das roupas sujas no banheiro... nada.

Apareceu na porta com as mãos no bolso, olhando pra baixo, chateado. Recebeu um afago da avó sorridente e desceram o elevador.

- Onde vamos vó?

- É surpresa, lindo. Surpresa. – e a septuagenária de vestido florido piscou os olhos enrugados com ar de cumplicidade que calou o menino. Não deveria ser nada que ele não fosse gostar “Não lembro a última vez que a vovó saiu comigo...”

Chegando na portaria, cumprimentaram seu Manoel e o menino não se conteve: “Vou sair com a minha avó!”. Antes que o porteiro pudesse esboçar qualquer reação, a grande revelação: “É segredo!”, disse com um piscar de olhos confidente.

Entraram num táxi que já os esperava à porta. “Bom dia Miguel, vamos?”, a intimidade da avó com o taxista – aliás pareciam ter a mesma idade – causou estranhamento no pequeno rapaz. Passando pela cidade, com os olhos atentos à vó e ao motorista, simplesmente teve um “clic”: Vovó não disse pro taxista onde iríamos!

Cutucou a vó com suspeita, como se fosse fazer uma confissão:

- Vó... o moço sabe onde...

- Sabe! Já estamos quase lá, meu lindo.

Apertou as mãos com certa desconfiança entre as pernas e a irritante sensação de impotência infantil parecia presa entre seus dentes. Pensava se não deveria tentar abrir a porta do carro e pular com a senhora pra fora. Suas mãos suavam e se esfregavam nos joelhos. Não entendia o que estava acontecendo ali e começou a suar olhando para os lados, aflito.

Nesse instante aquela mão leve de pele fina e delicada fez um carinho nas mãos apertadas do menino. Fingindo não entender o que ele sentia, ela sorriu: - Tudo bem meu amor, tem banheiro lá.

- Não vó, é que...

- Chegamos. – disse em tom sério o taxista. Recebeu duas notas amassadas da mão da senhora e partiu.

Estavam em frente ao portão do cemitério da cidade. O garoto conhecia o lugar. Apertou forte a mão da avó, preso como uma âncora no chão, os joelhos totalmente extendidos, os ombros duros, suor pela nuca: - On-on-onde é que a gente vai, vó?

- Vamos arranjar um banheiro para você. – disse a senhora caminhando para dentro do cemitério.

- Ma-ma... eu não quero ir ao banheiro! – e soltou a mão da avó num puxão ficando parado no mesmo lugar. Tremia.

- Ótimo! Primeira coisa que você fez de certo hoje! Tomou uma decisão sua! Muito bem. Agora pode decidir se quer continuar essa conversa ou não lá dentro. – e caminhou a passos lentos e rígidos sem olhar para trás.

Ainda fincado como uma rocha na calçada, o menino balbuciou qualquer coisa que fosse uma boa desculpa para não ficar ali sozinho: - Vamos ver o vovô?

A voz já estava longe: - Talvez...

Correu como pôde atrás do vestido florido. Agarrou a mão da avó com força e só pensou em estar em qualquer lugar mais familiar: - Onde fica o banheiro, vó?

Depois de ir à repartição dentro do cemitério e pegar as chaves do banheiro com um senhor com as sobrancelhas grossas de taturana que faziam uma sombra enorme e horrível sobre seus olhos e alcançavam as bochechas moles e chupadas que “deveriam morar numa das tumbas”, ele saiu refeito, com ar sério e tomando sua decisão:

- Pronto vó, podemos ir embora agora!

A senhora riu do peito estufado do menino enquanto arrumava suas calças e soltou o desafio com um sorriso unilateral: - Achei que fosse mais corajoso!

- Mas eu sou! É que eu tenho dever pra fazer pra amanhã.

- Amanhã é sábado, meu anjo. – e pegou a mão do rapazote que ainda não acreditava que havia gasto a desculpa mais perfeita em seus onze anos justamente na pior hora.

Caminharam por uns três “quarteirões” – se é que se pode chamar assim as divisões internas de uma necrópole – e, para a grande surpresa, vovó sentou-se num dos túmulos que não era tão baixo, de forma que suas perninhas com sapatinhos de salto baixo ficaram pendendo no ar. Convidou com o olhar a que o neto fizesse o mesmo, mas não ao lado dela, e sim na lápide em frente a ela.

- Vovô está aí? – disse apontando para onde a avó estava sentada. Ela apontou para a frente à direita e disse: - O seu avô está pra lá!

Girou o pescoço com uma jovialidade muito estranha a alguém com aquela idade e disse:

- Essa daqui é do... da senhora Ingrid Lima dos Anjos, e a sua meu bem?

Ele olhou para trás com um medo gigantesco, sentia como se fosse voltar a cabeça e não encontrar a avó, como se o dono daquela tumba não fosse gostar dele estar sentado ali: - Mário... Medeiros, vó.

Aquele virar de cabeça, perdendo e reencontrando por míseros segundos o olhar carinhoso da avó deu ao menino toda a confiança de que necessitava para estar ali. Sua avó não fugira, ninguém havia “pulado” nele da tumba, nada. Vovó continuava ali. Sorrindo.

- Você já olhou seu cotovelo hoje?

- Como é?

- Seu cotovelo, já olhou?

Respondeu tentando olhar de perto, girando os braços: - Não, que tem ele?

- Não dá pra ver direito, amor. Estica seu braço e toca no seu cotovelo.

Ele o fez.

- Tá. Que tem ele?

- A pele é mais grossa? Estica mais que as outras?

- É, estica sim.

- Se eu te dissesse que essa pele que você tem no cotovelo é pele de dinossauro?

- Ah, vó, pára!

- Sério, dinossauro. – disse apontando para o braço do menino.

Em ar juvenil de autoridade: - Não tem como, vó.

- Claro que tem, meu amor. Já ouviu falar que, na natureza – disse a avó pegando uma semente no bolso do vestido e depois apontando para as flores próximas àquele túmulo -, nada de perde, nada se cria, tudo se transforma?

- Mas como pode a pele do dinossauro ter vindo parar no meu cotovelo?

- Ah, você está perdendo o sentido da conversa, amor... nada se perde, nada se cria, tudo se transforma! – e os olhinhos da senhora brilharam com uma luminosidade jovial que o menino nunca havia visto antes. Um arrepio lhe subiu pelas costelas até um tilintar frio na nuca. Não deveria ser nada, frio, um vento talvez.

- O que está escrito ali? Entre aquele anjo e a figura de Nossa Senhora?

- Pra lá?

- U-hum, ali.

- Re... reter.... revertere ad... locum tuum. – Não sei o que é vó.

- “Revertere ad locum tuum”, é latim, significa: “retorna ao teu lugar”. Mas não se preocupe, isso não é dito pra nos deixar pequenos diante do universo. Não. Significa que nossa jornada aqui é um fenômeno divino, do início ao fim. Que no fundo não sabemos pra onde vamos, nem mesmo de onde viemos, mas a idéia é que, seja de onde viermos, é para lá que vamos.

O garoto respirou fundo e pensou que se acelerasse aquela conversa iria embora logo dali. Esticou os braços para trás para se apoiar, começava a ficar mais à vontade naquele lugar:

- Por que a senhora está me falando isso?

- Não me pergunte coisas que você pode descobrir por si mesmo. Lembra da história que te contei, sobre os trabalhos de Hércules?

- Lembro, claro! – e olhou em volta esperançoso de ver naquelas esculturas, de outra cultura, qualquer uma das que via nos livros da avó.

- Então, o que aconteceu com o caranguejo que foi mandado para picar o pé de Hércules quando ele combatia a Hidra?

- Hércules esmagou ele e a Hera colocou o caranguejo nas estrelas. Daí ele virou o meu signo.

A senhora abriu um sorriso enternecido: - Isso. Ele virou uma constelação. Câncer. Nas histórias que eu te conto é comum que os heróis virem estrelas: o Leão de Neméia, Órion fugindo do Escorpião...

- Sei, os signos.

- Também, mas não é disso que estou falando. É comum que nas civilizações antigas se procurasse entender para onde ia a vida que animava aquele corpo que agora estava frio, pesado. Para onde tinha ido a alegria dos olhos daquele filho, as risadas do irmão, o calor do colo da mãe, as palavras da avó.

Nesse momento ele não se conteve, olhou fixamente nos olhos da senhora: - Vó, a senhora vai morrer?

- Vou!

Antes que ele pudesse descer do túmulo com seus abraços e afagos, a divertida vovó continuou: - Você também! Seus pais, seus filhos, seus netos, seus tataranetos, aquele senhor que te emprestou a chave do banheiro talvez vá antes de gente, mas morrer vamos todos meu amor.

Ainda assim ele desceu de onde se sentara, abriu os braços e abraçou os joelhos flutuantes por uns dois minutos sem falar nada.

- Senta aqui então, fica comigo. – Não resistiu a senhora.

- Sabe, teve uma época em que você só babava, chorava, fazia xixi e quase tentava escavar o ar. Suas mãozinhas eram do tamanho do seu mindinho agora, ou menores. Depois, teve uma época em que você só andava de quatro. Acha que isso aconteceu assim, de um dia pro outro?

- Ah, vó, não tem como lembrar.

- Não perguntei se você lembra, perguntei o que você acha, espertinho.

Baixou a cabeça pensativo.

- Não deve ter sido do nada. Não sei.

- Foi teu primeiro ponto de independência. Você deixou de apreender tudo pela voz e pelo corpo dos teus pais e começou a procurar o teu caminho. Foi quando eu percebi que você reconhecia a minha voz. Você era um menino esperto, mexia em tudo o que fosse colorido, quase tudo era comestível pra você naquela época. Tenho que te confessar que vi você com mais admiração naqueles dias. Era teu primeiro contato com a Morte. Não! Não estranhe! Evidente que você estava nascendo para a vida, para o mundo, recheado de expectativas, de desejos, de curiosidades, de celeridade... como você engatinhava rápido! Foi justamente isso que te apressou o contato com a morte. A partir daquele ponto nunca mais teus pais seriam o centro do universo, nunca mais seriam tudo aquilo que daria lógica, sentido e direcionamento aos teus passos. Eles podiam reclamar, brigar, te colocar de castigo, te orientar, mas nunca, nunca mais poderiam ser responsáveis por cada um de seus passos. Ali você matou seu “papai-Deus” e sua “mamãe-Deusa” onipotentes, oniscientes, onipresentes. Foi teu primeiro contato com a morte. O melhor de tudo, foi que não me lembro de você ter olhado para trás. Em nenhum momento. Talvez só bebês saibam realmente lidar com a morte.

A senhora, percebendo a receptividade conflituosa do menino à história, pegou mais uma vez em suas mãos. Mesmo que agora a vovó tivesse mãos um pouco mais frias, o menino não reclamou, apenas queria apressar tudo aquilo e ir embora:

- A grande sabedoria é estar em sintonia com o teu centro e vivenciar aquilo que está passando, não como mutilação, que é uma perda destrutiva e sem sentido, mas como sacrifício, que é a troca, é a perda em função do ganho em algo maior. Passamos a vida em fases, que morrem. Só podemos aprender algo com as fases se aprendermos algo com a morte. Passamos a primeira fase da vida nos nutrindo através da fertilidade alheia e do trabalho alheio que nos proporcionam subsistência e forças para nos formar. Temos uma memória fugaz, uma discriminação frágil entre as polaridades. Bom é o que sacia nosso desejo; Mau o que cerceia e dificulta. Essas fases não vêm com a idade. São apenas fases - tem quem viva a primeira fase até os noventa anos de idade, acredite! - e só precisam de um elemento para podermos viver além do universo delas: é preciso deixar que essas fases morram. Passamos a segunda fase da vida na organização e no dever, no status, na labuta – significa trabalho, meu amor -, compreendendo o sentido do sacrifício e do mérito. Estendemos nosso campo de ação para lidar com a vida, nossa consciência cria mil e uma estratégias, estereotipa – cria um modelo, amor – de conduta, padroniza normas. Normalmente recebemos a compreensão de que somos responsáveis por nossas vidas até o momento de nossa morte. Muitas vezes os traumas de deixar que a primeira fase de nossa vida realmente morra são tão grandes que acabamos nos impondo pela agressividade, competição e conquista. É uma fase intensa, mas ainda assim é preciso deixar que essa fase morra. Se deixarmos que ela realmente morra, poderemos desfrutar da terceira fase da vida, que gira em torno da criatividade e da compaixão, onde não é mais necessário provar nada, além da nossa capacidade, às vezes enferrujada pela segunda fase da vida, de perdoar a nós mesmos aqui e ali. Porque no fundo, só podemos perdoar a nós mesmos, mas está tudo bem, é tudo que realmente precisamos. Ainda agora é preciso deixar que essa fase morra. Sim, tem mais! Caso consigamos viver essa última morte, perdoado e rido muito de milhares de pequenas atitudes fúteis – que tiveram sua razão de ser, nem que fosse a gargalhada enorme que damos quando nos revemos em certas ocasiões, pensamos nossas palavras, gestos, fricotes, acessos... enfim, caso consigamos viver essa gargalhada de choro e perdão de ninguém mais que nós mesmos, aí sim poderemos viver a quarta parte da vida. Uma parte de desprendimento e talvez até de uma certa onipresença que antecipa o que viveremos daí em diante. Viver essa quarta fase é ter total controle sobre a morte. Sei que um dia você vai vivê-la, talvez antes do tempo que eu precisei para vivê-la, espero, e vai se lembrar dessa nossa conversa. Aliás, aqui está algo que eu preciso que você se lembre sempre: ou vivemos a morte sacrificando – tornando sagrado – e ultrapassando todas as fases de nossa vida ou deixaremos que a Morte se instale sobre nossos ombros como um gigantesco corvo negro do qual jamais poderemos suportar o peso ou as garras.

Abraçou o neto com carinho enorme. Deu-lhe dois beijos no topo da cabeça e abraçou o pequeno por muito tempo, tempo suficiente para que a respiração deles fosse a mesma, seus batimentos os mesmos, e o perfume familiar adormeceu aquele menino.

- Levanta garoto! Dia de aula!, disse seu avô cutucando os ombros moles do menino às seis horas da manhã. Foi até a parede, benzeu-se para o retrato de sua avó e correu o dia.

Receita e Conto: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?