sexta-feira, 27 de março de 2009

Inocência


Todos ali queriam ouvir ele falar. Pelo que ele sabia, pelo que todos sabiam, era o último membro de sua tribo. Um rapaz indígena relativamente novo, as marcas no rosto e pescoço, que se podiam ver naquele terno (que pareciam ter costurado ao redor do corpo dele) indicavam que já parecia ter passado por um ou mais ritos de passagem. Pelo menos era uma mensagem que se ouvia entre tantas outras de tantas línguas que se alvoroçavam em torno daquele pequeno homem de olhar triste, cabisbaixo e concentrado.

Encontrado numa clareira aberta pela queda de um avião na floresta ombrófila densa da amazônia, foi logo cercado por repórteres, antropólogos, psicólogos, indigenistas, geógrafos, curiosos e famosos. Acredita-se ser o último remanescente de sua tribo. Até onde se sabe o avião parece ter incinerado todos os seus familiares, companheiros, toda a sua cultura. "Ab-ka-bôi-tê-râ", como ficou conhecido, por não repetir nada além dessas palavras quando foi encontrado, não fala uma língua derivada do macro-tupi ou do macro-gê. Outras tribos indígenas chegaram a oferecer membros para ajudar a decrifrar a língua de Ab-ka-bôi-tê-râ, mas no início alguns chegaram mesmo a insinuar aos lingüistas, antropólogos e psicólogos de plantão que ele estava em estado de choque e não articulava palavras, só misturava sons. Uma psicóloga chegou a dizer que o trauma havia eliminado a conexão lógica entre suas palavras e seu pensamento e que este último deveria estar fragmentado numa espécie de vórtice que voltava sempre ao ponto do trauma. Junto com um sociólogo ela descreveu uma enorme teoria sobre a sobrevivência do indivíduo ao que eles chamavaram de "juízo final do pertencimento" e sobre a solidão, considerando que ele não nos compreendia como "seres humanos" e talvez achasse mesmo que estava morto e sendo punido.

O fato é que Ab-ka-bôi-tê-râ, como tudo, deixou de ser novidade. Assim que perceberam que "ab-ka-bôi-tê-râ" significa: "Me deixem em paz!" foi inserido às pressas numa aldeia na esperança de que ele se socializasse. O que não aconteceu. Depois de sete meses o pajé da aldeia foi reclamar junto a um fucionário da Funai que "Me deixem em paz" queria viver entre os caraíbas (homens brancos), porque fazia tudo sozinho, não compartilhava da vida na aldeia e achava que podia viver melhor entre os caraíbas, que "vivem isolados também".

Então Ab-ka-bôi-tê-râ foi morar numa universidade e serviu de estudos para um antropólogo e um lingüista. Mais alguns anos se passaram e as pesquisas na língua nativa do pequeno índio foram completadas. Quando tudo o que pôde ser traduzido o foi, quando os três, já amigos, eram fluentes na língua do pequeno índio, começaram a vir à tona algumas questões interessantes e o apoio à pesquisa foi escasseando à medida em que Ab-ka-bôi-tê-râ proibia a publicação do que quer que fosse conversado entre eles sob o risco de simplesmente não falar mais nada. O que de fato ele chegou a fazer, por algumas semanas, deixando todos loucos porque muitos já viviam da verba para a pesquisa daquele indiozinho.

Foi no meio dessa bagunça que Ab-ka-bôi-tê-râ começou a estudar profundamente a cultura e os costumes dos homens brancos. Ao mesmo tempo em que estudava sobre religiões do mundo todo, passava horas vendo TV. Quando começou a produzir um material sobre seus estudos, preferiu a caneta e a mão, mesmo já sabendo operar o computador. Dormia abraçado a seus escritos e garranchos. Nunca teve boa letra. Sob o risco iminente de finalizarem a pesquisa e tirarem seu acesso aos livros, acomodações e cozinha da universidade, Ab-ka-bôi-tê-râ resolveu dar uma palestra para expor o resultado de seus estudos. Foi um enorme espanto para todos, até então ele parecia ter verdadeira aversão a palcos, flashes e palestras.

"- Boa tarde. Sei já se passaram quatro anos que me encontraram. Já sabem minha história bastante, até folder explicando vocês receberam quando entraram. Eles me melhoraram na foto, pareço mais alto. Espero que não fiquem desapontados com o que vou falar. Quando avião caiu no meu mundo - a palavra que quero dizer é mundo sim, não é a tribo de vocês - eu estava em retiro na floresta. Por isso não morri. Preparação para "kaidjé" ou "pajé", líder religioso. Desde novo, neto do último "kaidjé", eu estudava só religião. Só magia. Só o sagrado.
Quando aqui aprendi sua língua. Fiz amigos. Nunca esqueci meu papel no mundo. Eu sou kaidjé, eu estudo religião, eu estudo sagrado.

Sagrado é tudo aquilo em que acreditamos. Sagrado é crença, sagrado é fé. O sagrado fica no nosso redor na cabeça, nas decisões, no que é importante acima de tudo. O mais importante. O essencial. O sagrado, no meu mundo, me disseram era sobre o que mais se fala num lugar, numa tribo, numa aldeia. Aquilo é sagrado, porque o que mais se fala, o que mais a gente vive, é o que faz nossa realidade. O sagrado faz nossa realidade, é nosso universo, "sistema de crença" como o amigo Wladimir chama.

Então quando aqui, observei o teu sagrado. Coisa que mais falam. Coisa que mais respeitam. Coisa que tem medo, que respeitam e nunca compreendem. Mas coisa que controla toda vida de vocês. Aqui chama "Mercado" o que no meu mundo era "sagrado", ou "Du-pâ-niaki", a "Alma do Céu e da Terra".

Admiro fé de vocês. Estudei 3 anos todo dia, profundo estudo, da língua do seu Deus. Ouvi os sermões de seus kaidjés, todos os dias na TV. Muito ritual eu vi. Mesmas palavras, mesmo ritual. Sempre. Anotei palavras chave, tudo tudo. Li teorema do Shmidt: "Lucros de hoje, empregos de amanhã", pesquisei mais 60 anos de notícias e lucros aumentam, desemprego também. Acompanho os sermões hoje. Ainda dizem Schmidt. Só fé explica isso. Muita fé. Fé no salmo: "Lei da oferta e procura e confiança". Muita fé.

Muito não consegui entender. "Índio", vocês dizem. Pode ser. Com certeza. Índio. Mas da lógica e da filosofia, Ricardo, Marshall, Keynes, caraíbas chegaram em discursos que um índio vê o vazio. Fico preocupado da inocência de vocês!

Li os jornais. Vi os experts, pastores da religião do Mercado falando. Anotei palavras, frases. Queria aprender. Não gostei de comparar. Quando no meu mundo dávamos espaço pra pensar, gostávamos aprender e ver a visão do outro. Comparando os pastores falam não a mesma língua, a mesa coisa. Adestrados, como animais. Todas análises iguais pedem o que religião pede: submissão, flexibilidade (para "Mercado" impor leis e dor), sacrifício, tudo sob "dura e justa lei do Mercado Financeiro". Toda religião pede sacrifício, justifica dor. Coloca felicidade no além. Toda religião de caraíba. Importante é ser submisso, dócil e preparado sempre para o sacrifício.

Com tempo cortei que sobrava nos discursos dos pastores do "Mercado". Decobri fórmula de três pontos para que "Mercado" pedia. Porque deuses tem estranha mania de precisar da gente, seus fiéis, para existir. Mas não passa cabeça de ninguém domesticar Deus, nem em cabeça de caraíba domesticar Deus-Mercado. A fórmula, tirando toda sobra que economistas, especialistas, adestradores e pastores de TV dizem é: "O Mercado precisa de mais credibilidade, flexibilidade e liquidez". Vou repetir as oferendas: Credibilidade, Flexibilidade, Liquidez. Faladores de TV, adestradores religiosos dizem todos os dias: Credibilidade - "acreditem em mim" - flexibilidade - "se virem, dêem o seu jeito, sejam flexíveis" - e liqüidez - "dinheiro": "Acreditem em mim, se vira e me dá o dinheiro". Me parece ladrão de gravata. Mas índio não entende nada. Então faz palestra.

Aí Índio dá o dinheiro. Mas o Expert do Índio errou. Índio perde dinheiro. Dinheiro é comida, é trabalho, é suor. Índio jogou meses da vida no lixo, quer entender porque médico não tem liberdade pra errar, engenheiro e condutor de trem não tem liberdade pra errar, porque tem cadeia. Penso que todo direito de errar é dos economistas, experts, comentadores. Representantes do "Todo-Poderoso", eles podem dar dinheiro às máfias internacionais e lamentar que isso seja feito, de aniquilar os direitos dos povos todos, o do índio mais fácil que índio não se defende certo, de dizer que não podem fazer nada a respeito.

Índio tem humor, entende deboche. Não acha engraçado quando Attali debocha que economista é "sempre capaz de dizer no dia seguinte porque na véspera disse o contrário do que está acontecendo hoje". Pra Índio isso é definição de palhaço também.

Economia é anestésico como latim de igreja, como palavras sem sentido que índios pronunciam quando querem impressionar caraíbas. Hoje economia ganha onde igreja perde: maior centro de fé da humanidade. Toda fé depositada no Mercado. Não basta fé, é preciso fé e dinheiro, muita "liqüidez", credibilidade, flexibilidade, liqüidez. Confia em mim, dá o seu jeito, me passa o dinheiro.

Até índio percebe, na economia ortodoxa, na lei da oferta e procura, no liberalismo ideal, uma utopia. Até índio vê uma religião, com fiéis, papas, inquisidores, seitas, ritual, latim (matemática), dissidentes, e, talvez um dia, um alienígena venha mostrar o ridículo disso tudo. O "verbo" é muito forte, precisa ser de fora desse mundo pra não mergulhar no turbilhão da TV, do jornal, da revista.

A "mão invisível" é avatar do espírito santo, do "Mercado" onipotente, onipresente e anterior ao próprio tempo (pergunte a um economista: "sempre existiu mercado?"), ser de razão superior, substância imanente, princípío dos seres, da alma, da vida - "você não passa de um raciocínio custo/benefício" - Mercado é causa que cria o mundo e que tem tudo da divindade, até poder sobre destino: ninguém pode escapar do "Mercado", Ele existia antes de você e existirá depois, é impossível pensar numa pós-economia porque é impossível pensar um mundo sem Deus. Problema da religião é que fica difícil pensar fora dela, ainda mais se vemos o mundo através dela.

Agora vivo religião pura. Sem ser humano. Pareto escreveu economia pura, tirou Marx, que pensava ser humano. Agora todo trabalho da economia - voz de Deus - é raspar, esfregar, limpar, passar a limpo, reescrever tudo que cheira social, humano, gente. Culto à luz e à pureza vira "mariologia" econômica. Idolatra virgindade entre equações. A matemática preserva do contato, da carne, do tempo. Miséria, desemprego, dinheiro, luxo não existe, só o destino, obra de Deus, melhor dos mundos, único possível."

Foi quando o microfone foi cortado e três homens e uma mulher enormes vestidos de branco entraram com macas e uma camisa de força.

Conto e Receita: ®Ҝ

terça-feira, 24 de março de 2009

Cabeça de homem.


- Me abraça, me agarra, me lambe, morde, fode, come, cospe, mata, atravessa. Teu corpo como carne, meu seio como massa, como manga na tua mão, na tua boca. Me prende, fere, segura, puxa, volta, geme, levanta, esfregando a mão pela minha nuca, puxando o cabelo pra tua língua que mergulha atrás da minha orelha... arfa mordendo e respirando pesado, teu corpo pesando em mim. Teus olhos mordendo meu rêgo, teu cheiro entre as minhas coxas, minhas unhas, tuas costas...

- E aí, o que ele disse? 

- "Não entendi. Diga "Conta" se deseja uma segunda via ou para resolver problemas referentes à sua conta. Diga "cancelamento" se deseja cancelar nosso serviço. Diga "técnico" se está tendo problemas técnicos. Diga "atendimento" se deseja falar com um de nossos atendentes."

- É. São todos assim.

Conto e Receita: ®Ҝ

quinta-feira, 12 de março de 2009

Construindo um castelo



- Puta que pariu, o Rio de Janeiro é um ovo, cara! Um ovo de codorna!!! hahaha Tá ouvindo? Essa porra tá chiando demais. Me liga quando chegar. Tô, tô sim. Três, e daí? Vem, vem, vem. Tchau. 

- Ei, cara, qual teu nome? 
- Antônio, senhor.
- Pega o "senhor" e enfia. Relaxa, é Felipe. Então Antônio, você mora no Rio há quanto tempo?
- Eu sou daqui, senhor.
- Vai ficar com o cu cheio de "senhor" cara, você que sabe! Pois é... ih, me vê mais um desse amigo aqui. Tá furado esse troço, hein Antônio! Não, não, não vai não. Ficaí. Meu primo tá chegando e eu preciso falar. Quantas namoradas você já teve, Antônio?
- Seis, senhor.
- Ah, ôu, Tonhô, fala sério cara! Seis? Cê é do Rio mesmo?
- Depois eu entrei pra Igreja, senhor. E casei.
- Opa! Derrubei o copo, cara. Tá certo... Desculpa te incomodar aí Antônio, traz o refil aí que eu vou ficar aqui quietinho. Pxxxiu, pxxxiu. 


- Deus do céu. Cacete, olha pra você. Se babou todo.
- Fala, cara! Babou nada, tô suado. Sentaí. Ihhh, olha tua cara... Você vai reclamar, encher o saco, então escuta pra poupar saliva: Eu não vou dirigir. Você me leva pra casa depois daqui. Tó, taí a chave. Se quiser fica com ela, ou me devolve amanhã que eu venho aqui pegar o carro. Outra coisa: só saio daqui depois que a gente colocar as cartas na mesa, hoje.
- Que carta o quê, seu maluco? O garçom me falou que você está aí falando palavrão e gesticulando. Pára com isso e fala o que você quer que eu te levo depois.
- Porra, Antônio. Eu não enchi com a tua "Igreja", você vem encher com meu palavrão? Vacilando... mas tu é um cara maneiro e eu te perdôo meu filho: In nomine pater et fili et spirictu santi e o escambau. 
- Já falei pra falar baixo, cara! Vai ficar de sacanagem eu te levo agora.
- Você falou pra gesticular baixo, esperto, não falar. Eu tô alcolizado, não tô surdo. Pára com a machisse. Cê não vai me levar nem me fazer rir. Quando eu te falei das cartas eu tava falando sério. Cartas. Baralho.
- Ah, quer jogar truco agora? Vai perder, doido.
- Não. Pede um chopp pro Antônio e espera.
- Antônio, me vê um suco de laranja, por favor, e um chopp.
- Obrigado.
- A laranja é pra você.
- Ah. Só vai me fazer mijar, você sabe.
- Menos mal. Que que você quer falar, Felipe?
- Uhh... "Felipe". Parece minha mãe. Que se foda. O lance é que hoje eu encontrei a Carla. Achei que ela era tipo um quatro ou cinco de copas pra mim, sabe? Mas cara, ela tá linda e com a cabeça legal e tudo o mais. Não diria "Ás", mas foi um "sete", ou um "pagem" maneiro. Tem futuro.
- Tá, agora eu viajei. Que lance é esse de "pagem", "ás" e tudo o mais? 
- Ah, pagem não tem no baralho que você conhece. Pagem é o "dois". O dois você sabe, pode ser um começo, um potencial, uma semente, um espacinho pra coisa crescer, ou pode ser só dois mesmo. Você e ela ali. Dois segundos de um sorriso correspondido na multidão, dois minutos num bloco de carnaval, duas horas numa festa, dois dias numa semana. Mas sabe, não é mais que isso, é dois. O dois é aquele maldito enigma. A merda do dois é que ele fica em aberto. Não é como o três.
- Tá empolgado, hein!
- É essa lua, olha!
- Tá linda mesmo. Foi a Carla, não foi?
- Ah, ela agora é o dois, sabe? 
- O dois com potencial, imagino. Ela nunca vai ser o dois das duas noites, das duas semanas. Não pra você.
- Ah, não tem como, a gente foi noivo. Morei com ela...
- Tá rindo de quê?
- Ah, cara. Eu tinha 19 anos. Era um moleque. Tava vivendo um sonho ali e nem me ligava. Não tem arrependimento, não tem nostalgia, só tem a graça do destino mesmo. Essa dança maluca. Se Deus é safo de não jogar dados com o universo eu não sei, mas a gente joga fácil com a nossa vida, não é?
- Você sempre jogou. Eu não.
- Nem vem que você arriscou pacas. Tá namorando agora esquece que quando estava solteiro você escrevia cartas que só faziam sentido depois da terceira? Que bolava umas surpresas absurdas. Pagou pro garçom pra ele levar uma carta dentro do cardápio pra Fernanda que eu lembro. E nem ficou sério com a Fernanda, tá namorando com a Laila. Malandrão você, nem vem.
- Isso não é arriscar, é investir!
- Tem mesmo diferença? Não responde. Pensa aí que eu não terminei minha história das cartas. Te falei que o dois fica em aberto. Pois é. O dois fica em aberto, diferente do três. O três é finito. Tem aquele gosto meio triste da resignação, sabe? Pensa nos relacionamentos de dois meses e nos de três. Os de três terminaram porque não davam mais. Passou o prazo de validade daquela perfeição infantil do início. A perfeição mesmo, aquela do sorriso diário, das cartinhas pela manhã antes de sair pro trabalho, do dia inteiro no celular mandando mensagem só dura dois meses. O terceiro é a prova. Sair uma segunda vez é ainda tentar a primeira, de novo. Sair uma terceira é ver o que tem depois. Se o depois não agradar, se não morder na alma e cravar legal que nem âncora de navio, ferrou. O três é meio fechadão, sabe? É como um tripé mesmo. Você é engenheiro, saca isso melhor que eu, com dois pontos de apoio é complicado erguer qualquer coisa, com três vc faz uma cadeira. Ela tende a cair, eu sei, mas ainda assim dá pra fazer. Dá até pra sentar por um tempo, só não rola se sacudir em cima que a base não é boa. Mas aí não tem como, você tem que correr pra fazer o quatro. Porque com o três não tem jeito, mais cedo ou mais tarde a gente cai.
- Quero ver você correr ali e fazer o quatro, isso sim. Ah, ô, fecha a cara não. Isso dos números tem a ver com grau de intimidade também, não é?
- Tem a ver com tudo cara! Você sabe que quando a gente bebe as respostas vêm, tudo se encaixa e que nas mesas de bar todas as questões de política internacional, amor e filosofia se resolvem em três ou quatro rodadas.
- Pra você pensar tanto assim é porque já rodou faz tempo.
- É, semgraçalho pracadinho você. Quer ouvir ou não?
- Agora tá bom, continua aí. Obrigado Antônio. Desculpe o inconveniente, ele vai ficar quieto. Tem açúcar? Obrigado.
- Tô afim de tomar isso não. 
- Então levanta e vamos embora.
- Chatão você, hein! Coloca bastante açúcar nisso então.
- Vai falando aí. Tá engraçado ouvir.
- Eu vou escrever isso, cara... Que cara é essa?
- Escrever se você lembrar.
- Tô te contando pra você me ajudar, pô.
- Ah e eu pensando que era pelos meus belos olhos verdes. Tá, pode tomar.
- Valeu. Então... a Carla chegou no oito sabe? Quando a gente começa a pensar em juntar grana e viver uma vida confortável a dois? Tipo viajar, comer fora direto, fazer curso junto, aprender a dançar, a gente fez kung-fu junto e forró.
- Legal, cada um com as suas vontades e os dois juntos. 
- Quase isso. Mas ela chegou no oito, isso é que é o importante. Ela era meu oito perfeito. Perfeito naquela hora, sabe? No oito a gente vive cada dia como se fosse o último. A gente era noivo, morava junto, mas nem tocava em assunto de casar. Filho era realidade distante, encarada como funeral, sabe? Casamento você acha que vai rolar, você encara numa boa, mas não fala tanto e age como se pudesse pensar nisso amanhã. Aquele "amanhã" metafísico, tá ligado? Filho não é agora, o agora é a realidade, então filho é irreal no oito, ou surreal, sei lá. O oito é meio budista, sabe? Se você pensar bem até o número me lembra o gordinho sentado meditando. Maior embaixo com a carequinha redonda em cima. Simples assim. Namoro de gente nova. Cabeça de gente nova. Essas coisas.
- E o oito vira nove?
- Nêgo supõe que sim, que rola uma progressão nisso. O oito vira nove quando está completo. Qualquer número vira outro quando tá completo. Ele tem um ciclo, sabe? Acho que todos têm um ciclo. Mas também rola do oito virar cinco. É aquele nosso conhecido "Vamos dar um tempo?". hahaha
- Pois é. Legal, então o dez é o fim, tipo: casou morreu?
- E não é? Hahaha, sacanagem. Talvez o fim daquele ciclo. Como namoro geralmente termina em noivado que termina em casamento que termina em...
- Divórcio.
- Eu ia dizer filhos. Porque aí sim o divórcio ferra legal com a gente.
- Ou com a cabeça da criança.
- Mas ninguém casa com a pretensão ou expectativa de separar. Pelo menos não devia. Eu acho. Vai saber, né? 

- Agora fiquei curioso aqui, e as cartas altas? Valete, dama, rei, rainha, coringa.
- Valete é o solteirão, sa coé? Aquele maluco com grana, solteiro, sedutor. Aí entra o naipe. Valete de espada é o solteirão pegador, aquele que não é solteiro convicto, é quase invicto! O de ouros é o playboy, ricaço, do programa caro, do carrão. De paus é o tarado, esse daí não tem como namorar. A não ser mulher bem otária mesmo. O de copas é o perfeccionista, tá sozinho porque escolhe demais, cheio de mania, todo romântico e exigente. Esse sofre, coitado. Ainda mais no Rio, onde a fauna feminina é sensível e calorosa que nem iceberg. 
- Tá pessimista, hoje hein!
- Errar é inevitável, eu prefiro errar sendo pessimista.
- E o resto?
- A dama é a que está esperando. Ela pode esperar juntando grana, comprando apartamento, aí é de ouros. Ela pode esperar na janela, deixando a trança crescer pra tacar pro príncipe, são as mais exigentes, as mais pentelhas, eu acho. Mas não tem muito disso por aqui, das de copas. Tem as ninfo também, estilo femme fatale, saca? São as de espadas. Difíceis de segurar. Tipo neguinho viciado em novidade. As de paus são aquelas que só te querem se tu é um cara estável, com emprego, família, projeto, tudo nos conformes, o lance delas é o cara "próspero".
- Tá filósofo hoje. Vamo indo? Me conta o resto no carro. Antônio! Fecha pra gente? Obrigado. Então, e os Reis e Rainhas?
- Ah, esses são raros. Sabe aquele grande amor? Pois é. Tua Rainha. O lance é que você pode passar a vida procurando e não achar a pessoa que te entende no olhar, saca teu humor pelo tom da tua voz, tem aquele lance de pele que você não explica - mas o cheiro dela te deixa de pau duro e tá tudo certo - a pessoa que te observa e te respeita, te compreende e te acompanha e, mesmo assim, ainda vive a vida dela, tem os momentos dela, as idéias que só ela sabe, os projetos pessoais, sabe que tanto é maneiro conversar sobre a relação quanto às vezes o bom mesmo é calar a boca e dar um abraço. Sabe aquela pessoa filha da puta que te cala com um beijo na hora certa? É... e sai te deixando mordendo os lábios e pensando: "caralho, é ela". O lance é que no fundo todo mundo quer uma Rainha, mas ninguém quer o ônus de ser Rei. Porque só um cara fodão mesmo pra manter uma dessas. Dessas que te dão tudo o que você quer e exigem, com o olhar, com um toque, com gestos, com sorrisos e sinais, exatamente a mesma coisa de volta. Conviver com o que a gente quer é um inferno! Ser humano é um bichinho egocêntrico e vadio. Difícil pra gente enxergar o outro como outro, mais difícil ainda viver o outro, quase impossível deixar te enxergar o... cacete, se quer que eu entre então abre a porta... que que eu tava falando mermo?
- Da dificuldade de conviver com as Rainhas.
- É, pois é. Querer a Rainnha é mole, foda é ser Rei, cumpadi. Quando as meninas falam pra gente que tá faltando homem, tem umas que acham que tá faltando homem mesmo, mas a maior parte fala que tá faltando Rei. Que príncipe é coisa de adolescente.
- Agora eu quero saber só uma coisa.
- Fala.
- Onde é que você se coloca nisso tudo?
- Então... sabe o coringa?

Conto e receita: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?