quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O homem


O homem vinha com pernas apressadas do seu almoço executivo em direção ao escritório. Apenas algumas quadras a mais para ter de reapertar a gravata, o elevador e quem sabe encontrar a estagiária do sexto andar. Passou acelerando os passos por entre jovens yupies passeando em grupo, rindo olhando o céu com a mão no bolso. Fazia anos que não andava daquele modo. Era adulto, tinha prazos, horários, compromissos. Mal pôde disfarçar uma irritação talvez angustiante e provavelmente invejosa ao abrir caminho aos solavancos por entre o grupo de jovens. Eles o receberam a ombradas, cotoveladas e empurrões. Tudo na mais civilizada reciprocidade competitiva impessoal e acelerada de centro da cidade. O homem perde seu equilíbrio.

Com o chão fugindo sob seus pés, o homem abriu os braços dançando no ar qualquer malabarismo que trouxesse um ponto fixo, alavanca, âncora. Nada. O ar estava vazio quando seu pé encontrou o chão, mas da posição em que estava não bastaria apenas esticar o joelho para levantar-se. Mesmo assim o fez. De um coice firmou o pé no chão e esticou o joelho, jogando-se para o que julgava ser "acima". Bateu forte o topo da cabeça numa caixa amarela dos correios que, pensou, definitivamente não deveria estar lá.

Abriu os olhos tateando os bolsos do paletó. Com certeza não tinha ficado ali por muito tempo. Celular, carteira, chaves, tudo no lugar. Ao seu redor o jornaleiro, duas secretárias gordas de repartição e um menino de feições familiares. Ainda lembrando sua queda eo ridículo que pudesse estar passando, olhou cansado e irritadiço para o menino, que respondeu com um olhar profundo, também cansado e saiu correndo, sumindo na multidão que voltava do seu almoço. Por instantes pareceu ao homem ver o garoto passar correndo pela frente de um ônibus em movimento, simultaneamente. O ônibus passou. Sem buzina, sem estrondo, sem multidão. Apenas um solavanco breve. Era o corpo? O homem se levantou intenso, como se fosse o único a ver o claro atropelamento daquele garoto familiar. Sentiu como se mais alguns fios se tornassem brancos enquanto esticava o pescoço em curva para tentar compreender a passividade citadina daquela cena. Nada.

Deu dois passos para frente, percebendo que duas mãos o seguravam pelo sovaco, ajudando-o a se levantar: uma pequena e gorda a outra áspera e pesada. Agradeceu ao jornaleiro e a uma das secretárias e perguntou sobre o menino, a corrida, o ônibus. Todos unânimes em atravesar sua pergunta com outras ou conselhos: "O senhor está bem?", "Quer um copo d´água?", "Respire devagar" - Até que o homem girou o braço por cima da mão da secretária e esticou a mão aberta como se demonstrasse o óbvio a duas quadras. Ele caíra, o menino, provavelmente morrera: "O menino é seu neto?", "Pra onde foi?", "Estava com o senhor?" e recomeçaram indagações até aos que estavam próximos.

Zonzo e irritado o homem caminhou ajudado pelo jornaleiro e recostou-se suando, em pé, na banca. Manteve os olhos baios enquanto se perguntava em que mundo estava que preocupavam-se com ele quando um menino acabava de ser praticamente tragado por um ônibus, por aquela espécie de prédio sobre rodas que deveria ter arrombado o corpo do garoto como um aríete no meio da cidade, em plena luz do dia.

Levantou lentamente os olhos para recompor-se antes de atravessar as ruas à procura dos vestígios - não era possível que ninguém tivesse visto nada! - e, percorrendo com a vista os passos que o garoto havia dado, desviando o olhar dos saltos, sapatos, pedras portuguesas, panfletos da ritmia incessante do centro, refez o trajeto à velocidade insana mais da mente que dos olhos e achou uma mancha negra no chão, onde o garoto foi atropelado. Seus órgãos se contraíram dolorosamente no fechar dos olhos refazendo a cena. Morreu. O garoto morreu.

Correu como pôde encontrando vários pontos no tornozelo torcido, na panturrilha e na cabeça onde a dor impedia que se esquecesse do ridículo do tombo. Correu entre os ternos, tailleurs e vestidos, para o ponto negro no chão. Um ponto estranhamente.... redondo?

Aproximou-se do bueiro aberto com o peito ardendo do ar quente da cidade, da corrida, da esperança. Ajoelhou-se no meio da rua, próximo à esquina e gritou, berrou para dentro do bueiro. Ele tinha que estar ali!, pensou. Gritou mais, sentiu as lágrimas rolando sem saber a razão e abriu os braços à esquerda, em direção à calçada agora de passos atônitos, procurando alguém que ajude, um policial, uma ajuda, alguém. Viu olhos vidrados para além dele, como se o homem ali, ajoelhado na via, fosse menos importante que qualquer coisa que passasse por trás dele. Foi o tempo de sentir no corpo a vibração orgânica da buzina do segundo ônibus.

Conto e Receita: Renato Kress.

Fotografia: Caroline Poirey

Um comentário:

Unknown disse...

Ficou mt bom! Diferente doq imaginei pelo compêndio q vc me fez, mas gostei!! Quem sabe qlqr eu coloque minha idéia "no papel" e te envie hahahaha... :P beijos!

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