terça-feira, 9 de setembro de 2008

Tímida


Ela era tímida. Assim dizia Ivan, aquele circunspecto cigano acampado há três semanas atrás da casa de Isabela. A Magia de verdade era tímida. Nunca pôde, em toda a história da humanidade, ser demonstrada. Era intrinsecamente pessoal, intransferível. Era engraçado que ela quisesse aprendê-la nas noites entre uma história e outra, entrevendo vultos e sorrisos enigmáticos através das labaredas da fogueira de Ivan. Seus excessos em colares, em pedras, cordões, pulseiras, moedas, amuletos, por trás da cortina de chamas mesclavam-se com as estrelas no firmamento. Talvez sua pele escura, ela não sabia, de qualquer modo o fogo a enegrecia e se fazia perder num conjunto de pequenas fulgurâncias até que toda pele desnuda do cigano era uma com a noite e seu sorriso se tornasse uma meia lua sob dois eclipses. Essas eram as noites de Isabela atrás de sua casa, no final do quintal onde havia acampado Ivan, há três semanas.

Estava determinada a ver a tal Magia. De uma infância desencantada, não queria perder a cada dia mais e mais do pouco que tivera. Por isso escondia Ivan de seus pais, dissera à mãe, mais perceptiva e desconfiada, que havia adotado um cachorrinho: “Papai não gosta de bicho, a senhora sabe.”

A cada dia uma estratégia nova para as noites das histórias de Ivan. Mamãe não poderia saber, papai nem sonhar. Com toda alma nômade derramavam-se longas horas como um feixe multicor de símbolos e significados intrincados, de lições internas independentes das histórias, de figuras loucas e sábias.

Um dia, pais e irmão fora, um rato bateu na sua janela. Feio, cisudo. Olhando fixamente nos olhos castanhos de Isabela. Um arrepio familiar percorreu sua nuca nua, suas pernas ficaram leves e trêmulas enquanto o roedor marrom escuro com um rabo pelado girava a cabeça em direção ao canto do armazém, atrás da piscina, atrás da casa de hóspedes vazia, onde se escondia seu amigo noturno. Fez o mesmo movimento uma, duas vezes. Lembrou-se de que Ivan havia dito a algumas noites: “Ela é discreta, os sinais são dados apenas as vezes necessárias para que sejam compreendidos. A dúvida faz com que ela se retraia. Simples, querida, a Magia age como o amor”. A única forma de não se questionar sobre a estranheza, não deixar que a Magia se perdesse, era ir à janela. A repugnância pelo rato lhe atrapalhava, e o pequeno percebeu, ao jogar suas costas para frente a fim de sair da cadeira onde lia, viu o rato rir (rir?) e sumir pelo parapeito correndo.

Correu à janela e olhou afoita. Nenhum sinal de nada muito diferente. Olhou com atenção para diversos pontos, nada. Pensava se não havia duvidado, se Ela não havia se contraído, envergonhada. Desceu as escadas correndo, não havia ninguém na casa a não ser Benta, a senhora que fora sua babá e, de alguma forma, sabia e não comentava sobre suas escapadas, deixava a porta dos fundos encostada com uma tartaruga de areia impedindo que batesse. Correu por ela sem nenhuma palavra, atravessou a piscina, a hortinha de sua mãe, a criação de coelhos. Surpreendeu-se de Ivan, sentado como um índio, à frente de um estranho bastão. O cigano fez com os olhos para que ela sentasse e, ao esboçar o primeiro sorriso e palavra de Isabela, repreendeu-a com o olhar, cerrando pálpebras.

Sentada em frente a Ivan aquietou-se e esperou.
- Desfoque o olhar!
- Como?
- Da próxima vez que quiser ver algo, seja da sua janela, aqui ou em qualquer lugar, desfoque o olhar. Nuble sua vista.
Isabela riu desencontrada e timidamente. “Estava me vendo?”
- Nunca ouviu sobre a história de Perseu e da Medusa?
A irritante e estranha mania de parecer sempre mudar de assunto começara.
- Medusa, sim. O outro não sei.
- Perseu foi o que cortou a cabeça dela.
- Ahn, entendi.
O cigano levantou os olhos ao nível dos olhos dela, fixamente.
- Você acha mesmo?
Aquela pergunta soava como um desafio incômodo, peso desnecessário que se poderia passar à frente:
- Não sei, me diga você.
O olhar do cigano se desviou novamente, dessa vez para o estranho bastão no chão.
- Como cortar a cabeça de algo que não se pode ver, chegar perto, olhar diretamente? Como ter habilidade, ter mira, ter foco, desfocado?
Isabela olhou intensamente para o estranho bastão à procura de uma solução rápida e óbvia, como se a direção do olhar de Ivan trouxesse em si o cerne da resposta.
- Não sei.
As mãos de Ivan se contraíram irritadiças por alguns segundos. Pareciam querer algo. Seus olhos se fixaram nos da jovem.
- Pense.
- Pelo som? Pelo cheiro?
- Boa resposta. Agora esqueça seus sentidos. Tente de novo.
Franziu as laterais da boca numa clara irritação pré-adolescente de seus 13 anos e soltou:
- Impossível. Como vou fazer sentido do mundo sem eles? O que você quer dizer? Sem cheiro, sem som, sem poder ver...
Ivan fechou novamente os olhos, fixando-os em seguida sobre a janela de Isabela por alguns instantes.
- Você sabia que seus pais não estavam em casa quando desceu correndo atrás do rato?
Sem pensar exatamente sobre como ele sabia do rato, respondeu à pergunta.
- Não vim atrás do rato, vim atrás de você.
- Tem certeza? Bem, como sabia, com absoluta certeza que seus pais não estavam em casa? Seu pai foi apenas no vizinho, hoje é sábado, poderia ter voltado já, sua mãe saiu bem de manhã com seu irmão, poderia ter voltado já. Seu quarto e o de seu irmão ficam na parte de trás do terceiro andar da casa, você não teria ouvido a porta da sala abrir, ninguém chegar. Como sabia?
Isabela estranhou, mas tentou desanuviar seus pensamentos sobre como Ivan saberia tanto do dia a dia de seus pais, movimentação pela casa, enfim:
- Sei quando meus pais estão em casa.
Um sorriso paternal se esticou pelos lábios morenos e marcados daquela figura altiva.
- Sem ver, ouvir, cheirar?
Isabela fechou os olhos e respirou fundo. Ele tinha razão. Pensou sobre o que dizer em seguida, não encontrou as palavras certas e teve um profundo suspiro desolado cortado por outra pergunta.
- Porque o rato e não o coelho?
- Como?
- Porque você viu um rato e não um coelho? Existem vários aqui e às vezes alguns fogem. Apenas quis te enviar uma mensagem e a Magia escolheu o melhor meio de te chamar a atenção. O problema é que existem poucos ratos por aqui e muitos coelhos. Então, porque um rato e não um coelho?
Isabela fitou os olhos de Ivan na mesma busca por uma resposta. O cigano fechou novamente os olhos e o dia começava a escurecer, logo algum de seus pais chegaria. Sabia que se não respondesse à pergunta não ouviria mais nada de Ivan, não era a primeira vez que isso aconteceria. Fechou seus olhos também e começou a pensar na figura de um rato. Ratos são imundos, fedorentos, feios, trazem doenças, causam nojo. Ratos proliferam rápido – como coelhos! – são roedores e mamíferos. Darwin não iria ajudar... o que um rato significa? Esfomeado, noturno, bicho infernal. Destrói as plantações daqui de casa. Uma vez minha mãe me contou a história de um deus rato indiano que destruía, trazia e também curava as doenças, era uma divindade da vingança, da eliminação. Como sobrevive? De noite, roubando tudo o que precisasse para comer, para viver. Se apossava, roubava. De repente Isabela abriu os olhos, olhou afoita para Ivan e percebeu que abriram os olhos na mesma direção, na mesma velocidade. Seus olhos estavam estranhos, de um vermelho vivo, a noite já havia caído sobre a cidade e ele elevou a mão para o céu, fazendo movimentos circulares com as pontas dos dedos sem tirar os olhos vermelhos dos olhos afoitos de uma Isabela congelada de pavor. Deslizou sobre a face um sorriso diferente, malicioso, e abriu sua boca com presas e dentes pontiagudos enquanto suas orelhas criavam um aspecto triangular e corriam para cima e para trás na cabeça:
- É assim que você me vê? Como um rato?
Isabela tremia, sentia sua coluna presa ao solo num frio lancinante por sob a blusa, com os olhos frenéticos sobre os globos vermelhos de Ivan-Rato, não pôde dizer uma palavra.
- Desfoque o olhar, nunca olhe diretamente. – Disse Ivan-Rato fazendo sinal com os olhos para que Isabela olhasse para onde ele apontava com o braço estendido para o céu em movimentos ondulares.
A menina sentiu sua nuca se repuxar para trás, seu queixo se jogar para cima e ficou vesga, olhou para muito além do que poderia enxergar. Demorou. Alguns instantes em que ela se lembrava da face horrenda de Ivan, de suas presas, de algum estranho cheiro de esgoto aberto. Alguns minutos que pareciam horas, dias. Viu um movimento negro nas nuvens cinza no céu, antes que pudesse identificar, antes que pudesse olhar diretamente (não deveria olhar diretamente!) viu outro e outro e mais outro. Três morcegos enormes pareciam estar seguindo no céu os movimentos das mãos de Ivan. Como sombras rasgando a tela cinza das nuvens próximas, eram imagens de trevas sobre sua cabeça que lhe enlouqueciam os sentidos, não os via diretamente, mas estavam lá e às vezes mudavam de cores e tamanhos, eram roxos, ocres, marrons, negros novamente e vieram baixando, baixando até passarem como um único vulto gigantesco sobre os olhos pasmos de Isabela para desaparecerem no ar quando ela, por curiosidade, tentou olhá-los diretamente. Voltou-se para Ivan que já tinha o aspecto normal, embora seu coração sobressaltado ainda insistisse em recriar a imagem das presas e orelhas triangulares no alto da cabeça. Respirou como se pela primeira vez, inspirou uma tonelada de ar até sentir dor nas pálpebras e ouviu dos olhos fechados de Ivan:
- O rato é todo seu. Eu só te mandei uma mensagem. Quero te agradecer pelos dias aqui.
Passou a mão pela cabeça de Isabela e sorriu, novamente o sorriso paternal de um rosto moreno e marcado pela idade, mas humano. Profundamente humano. Desceu os dedos pela testa da menina e, sem esperar reação, deu um forte peteleco.

Sônia acorda assustada, seu terceiro sonho como Isabela esse mês. Catadora de papel e lata, vive e trabalha numa cooperativa onde procura esperar pacientemente sua vez no mutirão para a construção de sua primeira casa. Olha com carinho para a filha Marta, dormindo como uma pedra com sua neta Isabela no ventre. “Cedo demais”, ela pensa. Separa o ursinho e bolas de golfe que encontrou numa lixeira e deu de presente à filha e sai às pressas às quatro da manhã para iniciar sua jornada nos parques e jardins da cidade até que encontra Ivo, colega de profissão, amigo e, às vezes, mais. Estava calada a manhã toda, o sol já nascia e ela não pronunciara nada além de um sorriso quando avistou Ivo.
- Que você sonhou essa noite?
- Um futuro pra minha neta.

Receita e Conto: Renato Kress
fotografia: Caroline Poirey

12 comentários:

Nath disse...

Misterioso... é a magia que habita o futuro de nós todos? Ratos e morcegos são sinais de coisas ruins, negatividades?? No final das contas só depende de nós mesmos ver ratos ou coelhos, é a nossa escolha não é? O rato é todo meu, o coelho também... bjs bjs

Anônimo disse...

Créditos pelo Moça TOP Doce de Leite PELOAMORDEDEUS seu egocêntrico!

Renato Kress ®Ҝ disse...

Enfim, o Moça Top foi-me presenteado pela belíssima Pricila Almeida. Gente fina, embora com delírios sobre o excesso de atenção do autor ao próprio umbigo.

Ana Carolina disse...

"Por favor leia meu blog!!!" - o que é um leonino sem atenção? :) um rato? um coelho? um morceguinho vagante pela noite?

MT BOM o seu texto Mr. Kress!

bjs, e queijos :)

Anônimo disse...

Texto marcado pelo mistério, e realmente depende apenas de nós mesmos enxergar os sinais que tem um estigma negativo pelo prisma positivo! Adorei o texto, porém se perde um pouco no fim a associação de idéias do sonho de uma pessoa cuja realidade é ser catadora de lixo. Mas o texto é mto bom, tb, escrito por ti não poderia ser diferente!
Com carinho
Alezinha

Anônimo disse...

Hum... diferente... fantasia + realidade, cotidiano, dia-a-dia. Não dá nem p/descrever a reação ao ler o conto. Se a idéia foi essa, Bingo! Diferente.
Bjs,

Ana Rachel disse...

eu kero beber isso sem café e em engordar kkkk possible? :)

Unknown disse...

O conto..prende a atençao, gostoso de ler....intrigante... Gostei muito!
Tb nao gosto dos ratos rs

bjus
cristina

Anônimo disse...

Graças à citação de Darwin, o conto foi muito bom.
Brincadeira, mesmo sem ela o conto é excelente.
Primeiro comentário de um sobrinho seu, hein!

Celia Marli disse...

Misterioso, envolvente, místico com uma pitada de terror ... pena que a personagem tenha associado o cigano a um rato ... na simbologia cigana o rato nos remete a situações difíceis... espero que ela tenha acordado com o peteleco rsrsrs. Beijos. Celia

Unknown disse...

Meio tenebroso, mas eu gostei sim! eh intrigante e interessante de ler!
bjinhusss
não gosto de rato, prefiro coelho! rs
=D

Anônimo disse...

É muito curioso estar sempre em alguma linha ou ponto de seus contos ...eles não são os olhos de ressaca de Capitu,mas me prendem...me sugam...e acabo encontrando neles também outras pessoas...muitos momentos!E uma delas é você...continue escrevendo Renato...obrigada.
Mel

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