segunda-feira, 17 de maio de 2010

Solo

"Parece que, para compreender bem o silêncio, nossa alma precisa ver alguma coisa que se cale; para estar segura do repouso, ela precisa sentir perto de si um grande ser natural a dormir" - Gaston Bachelard

Ele era torpe. Não moralmente torpe, mas suas atitudes se orientavam no tempo como se visse o mundo por um vidro embaçado, entorpecido. Era uma situação fantasmagórica de uma palpitação interna arredia que desaparecia quando ouvia passos no corredor do prédio, ou o telefone tocando.


Ele tentava pensar em outras coisas, se ocupar, ler um livro, ir ao cinema, mas fosse o que fosse, o silêncio sempre ameaçava engolir seu peito como uma onda de nulidade que ameaçava mergulhar ele e seus pensamentos numa massa informe na multidão. O silêncio não era total nem auditivo. Talvez eu ou você ali ouvíssemos muitos sons. O silêncio era pessoal, era com ele, era nele.

Quando tentava trabalhar alguma espécie de bafo sobre seu ombro lhe gargalhava na cara a inutilidade, a frustração cotidiana da sua falta de tato para com as próprias idéias e aspirações. Era risível, cedo ou tarde ele teria de parar, cansado, e o trabalho teria avançado e retrocedido a ponto de estar sempre no mesmo ponto, mesmo que muito ou pouco fosse feito.

No cinema, após uma hora de filme, já se sentia esmagado na cadeira pela vergonha de levantar, sozinho, entre aquela pequena sociedade de casais e grupos de amigos, famílias. A dor não negligenciava sua memória por mais de uma hora, fosse como fosse. A rua para ele era como uma sucessão de fios multicoloridos que traçavam retas, estabeleciam laços e cruzavam nós, entre as pessoas que se conheciam, se sorriam, cumprimentavam. Sentia, da mesma maneira, que sobre seu corpo estava enrolado também o seu laço, que, por desuso, acinzentava, mas não perdia a força contritora, esmagando seus braços, limitando seus movimentos, amordaçando seus sorrisos.

Um dia, sentado no sofá, desligou a televisão. Quase nunca desligava a televisão. Sabia que atrás dela estava agachado o fantasma-tigre que daria o bote final sobre ele, naquele momento. Abriu bem os olhos, como se esperasse o ataque. Então fechou os olhos e simplesmente não resistiu, aceitou, respirou fundo e esperou.

Para seu espanto a solidão não o invadiu, pareceu até diminuir. Passou a imaginar situações do passado em que esteve profundamente só – viagens, momentos no seu quarto na infância, recreios no colégio, términos de relacionamentos, lutos – aquelas lembranças sempre foram a chave para seu quartinho asfixiante de pânico e tensão. Estranhamente a solidão tinha perdido seu poder. Não conseguia mais sentir o pânico, mesmo que tentasse. Quando mais convidava o sentimento a aparecer, mais impossível parecia, a si mesmo, sequer imaginar que havia sentido um dia aquela dor insuportável.

Ele havia descoberto, ou estava ensinando a si mesmo, que sentia a solidão aguda apenas quando fugia. Quando voltou para encará-lo de frente, o demônio fugiu.

Conto e receita: Renato Kress

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Mãe




O leite do meu seio é magma, o leito, do meu sono, é água. Participo de um equilíbrio delicado, tenho nomes e meus nomes tem camadas, como a forma pela qual me entendem meus filhos. Se me arrebatam a roupa de cama, remexo, sinto frio, suo, tremo. Se me perfuram a carne em demasia escorre do meu ventre o que escorre dos seus, minha seiva, meu sangue, minha vida.
Gaia, mesmo nos códigos que vocês inventam, esquecem depois seus significados. Vivem rodeados dela. Seja onde pisam, onde moram, o que respiram, comem, digerem, desejam, onde morrem e o que se tornam sempre: matéria. Lembro de quando descobriram a palavra matéria, vinha de Mater, Matris, “Mãe”. Porque certas palavras não se criam, certas palavras se sentem.
Erda, sou a anciã que sustenta teus saltos mais mirabolantes, tuas acrobacias e invencionices. Sou a senhora complacente e submissa, que recebe os castigos malcriados dos filhos imaturos. Sou a firmeza calma e duradoura. Além de ser suas bases, sei de algo que não sabem aceitar: eu fico, vocês passam. Antes de vocês houve outros e depois os haverá, tão cedo que nunca se lembrarão, tão tarde que nunca conhecerão. Ainda assim, os amo e nutro, como únicos.
Geb, sou universal, primordial, essencial. Sou fecundada pela água que sai de mim mesma. Minha língua é um sistema que se equilibra sozinho e eu tenho algumas eternidades para me equilibrar. Mesmo que eu tivesse pressa, vocês nunca notariam. Suas idéias, pensamentos, seus mais puros ou devassos sonhos são piscares dos olhos de seus próprios deuses, cada um dos quais precisou de um solo para erguer suas sinagogas e catedrais... e eu os doei com tanta alegria!
Porque tenho um carinho especial pelas formas como resvalam em mim sem me perceber. Ninguém pode vir ao mundo sem passar por mim, ninguém pode ver a luz se não por mim. E vocês me procuram em tantos lugares incríveis, e vocês me projetam a alturas indizíveis. De alguma forma não cabe a vocês – ainda – perceber que eu possa estar abaixo da planta de seus pés e ainda assim palpitar dentro do seu peito saída diretamente de uma alga. Porque eu sou mais singela do que vocês imaginam e vos acaricio por inteiro, não importa o que vocês façam, não importa onde vocês vão, eu estarei lá, eu serei lá.
Procuram meu centro em tantos espaços, terras santas, bem aventuradas, centros do mundo. No meu centro mesmo não podem viver, e já bem o conhecem, mas podem fazer de qualquer espaço meu um centro. Não sou mais eu aqui do que lá, mas sinceramente? Gostaria que fizessem de si mesmos centros sagrados. Porque eu vou ficar aqui, mas me dói ver vocês partindo tão cedo.
Conto e Receita: Renato Kress

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?