terça-feira, 30 de setembro de 2008

Cartas Abertas - Carta 2

Um terço de TERRA, dois terços de AR {+3/4 de FOGO x 27/18 de ÁGUA}

Ontem cortei as unhas. Falava ao telefone com ela. Uma gota rubra, de um pus viscoso e quente pingou sobre o chão de taco, muito próximo ao pé prateado da mesa. Essa pasta de vida, esse líquido de mim, imprimiu da minha história um ponto por sobre a casa. Água fria, coloquei o pé na privada e dei pitadas de sal – cicatrizando ou temperando? -. Tive sono. A gota permaneceu vermelha, tensa, de uma coagulação quase carnal, sobre o chão de taco, muito próximo ao pé prateado da mesa. Era uma gota, tinta do meu corpo, corpo da minha letra em literatura e vida, como um extrato de pensa-pele por sobre meu espaço.

Hoje, menos de doze horas da gota. Está preta, nenhuma formiga veio vampirizar minha tinta, nenhum inseto, nada. Quanto tempo durará qualquer obra se meu sangue, se meu corpo e minha tinta duram menos de doze horas? O que me restará além da queratina por sobre o cérebro? Hoje a carne tem sequer vestígio donde veio a gota, hoje nem minha mãe poderia saber de qual dedo pingou a marca tão preta, carnuda e morta de hemoglobina e plaquetas por sobre o chão de taco, muito próximo ao pé prateado da mesa. E tenho medo do que estou construindo, e tenho medo do poder avassalador do tempo. Essa gota, incerteza carnal se cristalizando por sobre os meus espaços, essa bibliografia das minhas veias por sobre minha biografia em espaço, em sala, em som, essa gota que ejetou sem dor lembra a agonia da ausência de raízes.


...


Puxo o pé prateado da mesa, muito próximo à gota, agora entre o taco e a prata. Vou pro trabalho.

“Sometimes i feel that i don´t have a partner,

sometimes i feel that my only friend is the city i live in

the city of angels, lonely as i am, together we cry”

– Red Hot Chilli Peppers, Under the Bridge.

Ass: Eduardo Grinder Amos Fonseca


Receita e Conto: Renato Kress

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Cartas Abertas - Carta 1

Um terço de terra, dois terços de ar.

‘Mihi pinnas inciderant’ – me cortaram as asas – e é preciso aprender a andar.Na literatura, como ‘homme de letres’, é preciso reaprender a nadar. E o que quero, como me vejo? Não creio no homem genótipo, na carne de raiz, prefiro o Augusto lego, a personalidade construto. Lidar com escolhas não me é necessariamente brincar com a liberdade, mas flertar com a responsabilidade; tanto assusta quanto excita.

Nas tentativas de organizar – mente, família, casa, estudo, projetos – ainda a esperança de que o hábito se torne a natureza. É questão então de escolher a natureza para construir o hábito. Que sempre me fascinou o ideal grego, o ‘mens sana in corpore sano’, fibras musculares apolíneas na mente dionisíaca. Que quando menor, o ideal fora o agente secreto: culto, inteligente, malicioso, poliglota, forte, rápido, sedutor. No estereótipo a melhor defesa era o ataque. A questão do agente secreto, do Augusto ideal, esbarra na construção do hábito. Todos os dias devo malhar, ao menos uma hora e quarenta, uma hora por dia estudar italiano, rever quando possível o alemão, terminar um dia o inglês, no mínimo dois livros por semana, todos os textos da faculdade – sublinhar, fichar – as leituras complementares, jogar tarô para treinar – estudar mitologia em casa, bater o caderno no computador e escrever um artigo por semana para um periódico qualquer para ser o que me agrade.

A questão é o cansaço, desapego das tarefas, trepidação do ânimo. O ideal está sempre adiante, como farol na Ilha de Utopia, o ideal, adiante, dois passos para cada passo meu. A força necessária para transladar o sonho em projeto, meus sonhos em etapas com um fim alcançável, essa eu talvez não tenha sozinho, essa eu talvez tenha de ter, sozinho. Não quero mergulhar no Mediterrâneo ou buscar a luz, nem mastigar oxigênio, adeus ao Augusto-Ícaro, preciso de terra! Emprego, rotina, projeto que acabe, idéia concreta, amor que dure, companheirismo que se estabeleça, forma física estável, segurança, estabilidade, equilíbrio.

Hoje a alma oscila, a mente cambaleia, emoções tropeçam, corpo desaba. Mas os dias avançam, a carne trespassa os cronológicos caminhos e já não mais corto ou quebro, a descida na trajetória do herói está feita, o distanciamento, o corte, o estranhamento, toda a desconstrução está. É preciso erguer algo – como Arquimedes, para que mova minha ‘Terra’, necessito de um ponto de apoio, referência, algo sólido -, meu castelo, meu espaço dentro de mim. ‘Estamos em obras para melhor servi-lo’ seria a placa mais propícia a encontrar numa autópsia do cérebro ou coração.

Um fim-de-semana é fenomenal para colocar as pendências em dia, livros vão com cópias acumuladas da faculdade e demais questões: a angústia se vai nas letras. Nestas que desenho sobre o caderno, nas que li e as que me lambem as sinapses durante o dia, as que se lambuzam na baía de mielina.

Este corpo, espaço e angústia são meus e estranhamente não mais sinto falta dela, dessa musa, dessa idéia. Aristófanes me perdoe mas não posso sentir falta do que nunca tive, ou do que não me lembro. A quem tenha óculos cor-de-rosa esse é o melhor momento, o lapso em que se está apto a aceitar o outro, a matar o leão. A quem hasteia ceticismo é o olho-do-furacão, instante de arrumar estantes, templo zen em duração fast-food. A alma de um instante ampliado à exaustão.

Entrando num ritmo, não o celerado das multifacetadas personas do eu Augusto-lego, mas um ritmo outro, que agrade. Não o ser a cada palpitação, mas o ser desarmônico e incompleto em dois, quatro dias ou uma semana. Esse ser em lastro, ser histórico; ‘Estrela da vida inteira’. Existem momentos de tanta leveza que se pensa ter tropeçado, pela manhã, no tal ‘Manual de Instruções da Vida’ e tudo ainda tem o seu peso, mas se fez o que pode e, além disso, um bom e velho ‘que se foda’, sim, encaixa.

O zen em mim é estado, não essência. Às vezes – as piores delas – preciso flechar a essência que traga um caminho na insana bifurcação da bifurcação do atalho daquele continuum hip-hop, trance, samba de roda mnemônico.

Tem dias que só observar a beleza – de longe – é a melhor forma de (re)viver aquela felicidade que eu sei que pode ser vivida, em terceira pessoa. Noutros resvalo na leveza de espírito e a tal completude parece mais tranqüilidade estanque de pós-madrugada. A mais das vezes – como Nietzsche – todo extremo me parece patológico e, lógico, me coloco no ‘phatos’ e me embebedo. Esse mergulho no extremo tem um quê de resistência ao ritual de passagem, a esse ‘ser adulto’; ou a toda uma imagem de ‘ser adulto’ como um ‘ser tolido’ um ser aquém do limite da adolescência, recheado de novos limites – e a novidade afronta, o novo desconstrói o que era certo, o claro e óbvio, cria o instante liminar, lugar em que se chupa a alma por cada poro da fortaleza das certezas.

Ainda tenho que admitir o medo, o limite, o humano em mim. Esse desprender dos cipós do pântano – caverna, útero – tem uma certa dor, uma carne que não se ejeta – numa passagem pós-modernamente ‘clean’ esterilizada – mas que se rasga, que fere, arranca tripa, ventre, eviscera e transmuta. Mas deixa a íris oca, nada é novo porque não há carne, o oco impermeabiliza, suprime a cicatriz. É preciso aceitar a morte e a bengala. O que em mim deixa de ser para que alguns algo-outros me deixem ser. Esse mesmo que é um outro, esse ‘lux feros’ – esse portador da luz – que é Lúcifer, o desconstrutor da ordem vigente. Ser Bhrama, Vishnu e Shiva ou aceitar a responsabilidade de retirar Excalibur da pedra, arcar com seu reino, relações e deveres.

Esse desfazer-se da pedra básica de Excalibur, do todo da ‘mãe-terra’, para construir Camelot, um espaço autônomo ‘para além da antiga terra’, teu novo reino, espaço da instituição das novas regras, é o rompimento psíquico e social do umbigo, a dor e a liberdade primordial. A senha de Eros e Thanatos, onde a permissão da vida exige a aceitação da morte.

É preciso aceitar que morri para que me permita viver. Engraçado como racionalizar acaba mais paralisando o processo do que me ajudando a sair da liminaridade, da margem entre o que já não mais pode ser e o que não tem permissão ou coragem para pertencer ao novo.

Esse assumir o fraco, o ‘trágico’ do homem grego de Vernant na sua trajetória rumo à Pólis, exige assumir o fraco sem qualquer vestígio do forte, implica em mergulhar sem escafandro no lodaçal primevo das ilusões, vergonhas e desejos e reconhecer o caráter decadente da estrutura anterior, sem vislumbre da ‘Pedra fundamental’ ou qualquer tato com a nova estrutura. A essência básica da anomia de Durkheim aplicada à psique.

Nessa ‘trajetória do herói’ de Campbell, a ‘Katábasis’ – ‘descida às trevas’ – me pede uma honestidade que talvez não tenha exercitado – o espaço entre a troca de máscaras, de personas, deixa minha face à mostra e não incomoda realmente ser visto pelo outro, incomoda não reconhecer a essência, ou ter de aceitar a impureza – essa aceitação da sujeira, da baixeza, do podre, foi, quem sabe, nas poesias. O livro que sempre vêm. O livro que, fosse suficiente, não restaria a angústia. Talvez falte lançar o livro, mais uma vez a questão da finalização, da completude.

A incompletude é eterna, isso entendo nos dias, é uma imagem midiática bem-vestida, sentada de braços abertos num sofá claro, ou uma liberdade de braços abertos e lábios rasgados num sorriso de jovem mulher ciclista – aliás, como são belas as coxas da liberdade. O problema é a latência de estar eternamente a ponto de finalizar o que em mim sempre se torna infinito. Essa fantástica capacidade de encerrar tudo o que seja cotidiano, pasta de dente, escova, louça, vassoura, roupa, perfume, banho, T.V., academia etc acaba me limitando terminar o extra, o novo, o fora de padrão. É a mente que avança e estupra o trabalho da idéia antiga com o nascimento da idéia nova, essa tempestade criativa que avança em idéias, projetos novos e não estrangula os quereres velhos, só cerra a ação, a resolução. É a lâmina líquida que corta a travessia da carne, a impossibilidade física – que de tão rocha seca a medula no osso do desejo – da passagem, no ritual.

Há semanas de foco, de estreito do pensamento no que fossem as vísceras do eu – desejo, carne, amor e mitos - , espaço de mentalizar o lugar – a casa, faculdade, espaços – caminho que se recheia de entusiasmo – desse en theos, do ‘haver deus dentro de si’ – e as horas passam em cor. Mas a construção do eu, que dá as lentes e constitui o horizonte dentro donde se quebra-cabeçam as tarefas, está por fazer, está longe, líquida. É preciso manter à parede do quarto algumas máscaras que se lhe deslizem ao rosto pela manhã, nunca estar líquido, sereno, sincero. Essa vastidão do eu que me extravasa e atropela, ser esse eterno homem morrendo no próprio trabalho de parto.

A falta de regularidade, essa minha ausência de ciclo e repetição, a total liberdade que excita e trava. Esse a cada dia reinventar o café-da-manhã, organização da casa, identidade visual, esse ser o demiurgo da própria vida a cada milímetro milimétrico infinitesimal do construto na personalidade, no ambiente, nas horas, é abraçar o caos onde só um elemento pode se deitar em berço esplêndido ou urrar ‘liberdade’ enquanto lhe cortam a cabeça: a vontade. O caos não é o que eu quero, esse é o problema. Como ter a vontade além da natureza, como escolher – ter a coragem de escolher – a nova natureza que vai legar o novo hábito inspirado no velho compromisso lido pelas novas lentes?

Sinceramente não sei nem espero que saiba a resposta – a maior parte das respostas rápidas para essas questões envolvem dogmas que não me atraem – para isso acima. Só estou compartilhando a angústia de ser, ainda que um pouco tardio, humano.

Ass: Augsuto Köhner Braunbaum

Receita e Conto: Renato Kress

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Tímida


Ela era tímida. Assim dizia Ivan, aquele circunspecto cigano acampado há três semanas atrás da casa de Isabela. A Magia de verdade era tímida. Nunca pôde, em toda a história da humanidade, ser demonstrada. Era intrinsecamente pessoal, intransferível. Era engraçado que ela quisesse aprendê-la nas noites entre uma história e outra, entrevendo vultos e sorrisos enigmáticos através das labaredas da fogueira de Ivan. Seus excessos em colares, em pedras, cordões, pulseiras, moedas, amuletos, por trás da cortina de chamas mesclavam-se com as estrelas no firmamento. Talvez sua pele escura, ela não sabia, de qualquer modo o fogo a enegrecia e se fazia perder num conjunto de pequenas fulgurâncias até que toda pele desnuda do cigano era uma com a noite e seu sorriso se tornasse uma meia lua sob dois eclipses. Essas eram as noites de Isabela atrás de sua casa, no final do quintal onde havia acampado Ivan, há três semanas.

Estava determinada a ver a tal Magia. De uma infância desencantada, não queria perder a cada dia mais e mais do pouco que tivera. Por isso escondia Ivan de seus pais, dissera à mãe, mais perceptiva e desconfiada, que havia adotado um cachorrinho: “Papai não gosta de bicho, a senhora sabe.”

A cada dia uma estratégia nova para as noites das histórias de Ivan. Mamãe não poderia saber, papai nem sonhar. Com toda alma nômade derramavam-se longas horas como um feixe multicor de símbolos e significados intrincados, de lições internas independentes das histórias, de figuras loucas e sábias.

Um dia, pais e irmão fora, um rato bateu na sua janela. Feio, cisudo. Olhando fixamente nos olhos castanhos de Isabela. Um arrepio familiar percorreu sua nuca nua, suas pernas ficaram leves e trêmulas enquanto o roedor marrom escuro com um rabo pelado girava a cabeça em direção ao canto do armazém, atrás da piscina, atrás da casa de hóspedes vazia, onde se escondia seu amigo noturno. Fez o mesmo movimento uma, duas vezes. Lembrou-se de que Ivan havia dito a algumas noites: “Ela é discreta, os sinais são dados apenas as vezes necessárias para que sejam compreendidos. A dúvida faz com que ela se retraia. Simples, querida, a Magia age como o amor”. A única forma de não se questionar sobre a estranheza, não deixar que a Magia se perdesse, era ir à janela. A repugnância pelo rato lhe atrapalhava, e o pequeno percebeu, ao jogar suas costas para frente a fim de sair da cadeira onde lia, viu o rato rir (rir?) e sumir pelo parapeito correndo.

Correu à janela e olhou afoita. Nenhum sinal de nada muito diferente. Olhou com atenção para diversos pontos, nada. Pensava se não havia duvidado, se Ela não havia se contraído, envergonhada. Desceu as escadas correndo, não havia ninguém na casa a não ser Benta, a senhora que fora sua babá e, de alguma forma, sabia e não comentava sobre suas escapadas, deixava a porta dos fundos encostada com uma tartaruga de areia impedindo que batesse. Correu por ela sem nenhuma palavra, atravessou a piscina, a hortinha de sua mãe, a criação de coelhos. Surpreendeu-se de Ivan, sentado como um índio, à frente de um estranho bastão. O cigano fez com os olhos para que ela sentasse e, ao esboçar o primeiro sorriso e palavra de Isabela, repreendeu-a com o olhar, cerrando pálpebras.

Sentada em frente a Ivan aquietou-se e esperou.
- Desfoque o olhar!
- Como?
- Da próxima vez que quiser ver algo, seja da sua janela, aqui ou em qualquer lugar, desfoque o olhar. Nuble sua vista.
Isabela riu desencontrada e timidamente. “Estava me vendo?”
- Nunca ouviu sobre a história de Perseu e da Medusa?
A irritante e estranha mania de parecer sempre mudar de assunto começara.
- Medusa, sim. O outro não sei.
- Perseu foi o que cortou a cabeça dela.
- Ahn, entendi.
O cigano levantou os olhos ao nível dos olhos dela, fixamente.
- Você acha mesmo?
Aquela pergunta soava como um desafio incômodo, peso desnecessário que se poderia passar à frente:
- Não sei, me diga você.
O olhar do cigano se desviou novamente, dessa vez para o estranho bastão no chão.
- Como cortar a cabeça de algo que não se pode ver, chegar perto, olhar diretamente? Como ter habilidade, ter mira, ter foco, desfocado?
Isabela olhou intensamente para o estranho bastão à procura de uma solução rápida e óbvia, como se a direção do olhar de Ivan trouxesse em si o cerne da resposta.
- Não sei.
As mãos de Ivan se contraíram irritadiças por alguns segundos. Pareciam querer algo. Seus olhos se fixaram nos da jovem.
- Pense.
- Pelo som? Pelo cheiro?
- Boa resposta. Agora esqueça seus sentidos. Tente de novo.
Franziu as laterais da boca numa clara irritação pré-adolescente de seus 13 anos e soltou:
- Impossível. Como vou fazer sentido do mundo sem eles? O que você quer dizer? Sem cheiro, sem som, sem poder ver...
Ivan fechou novamente os olhos, fixando-os em seguida sobre a janela de Isabela por alguns instantes.
- Você sabia que seus pais não estavam em casa quando desceu correndo atrás do rato?
Sem pensar exatamente sobre como ele sabia do rato, respondeu à pergunta.
- Não vim atrás do rato, vim atrás de você.
- Tem certeza? Bem, como sabia, com absoluta certeza que seus pais não estavam em casa? Seu pai foi apenas no vizinho, hoje é sábado, poderia ter voltado já, sua mãe saiu bem de manhã com seu irmão, poderia ter voltado já. Seu quarto e o de seu irmão ficam na parte de trás do terceiro andar da casa, você não teria ouvido a porta da sala abrir, ninguém chegar. Como sabia?
Isabela estranhou, mas tentou desanuviar seus pensamentos sobre como Ivan saberia tanto do dia a dia de seus pais, movimentação pela casa, enfim:
- Sei quando meus pais estão em casa.
Um sorriso paternal se esticou pelos lábios morenos e marcados daquela figura altiva.
- Sem ver, ouvir, cheirar?
Isabela fechou os olhos e respirou fundo. Ele tinha razão. Pensou sobre o que dizer em seguida, não encontrou as palavras certas e teve um profundo suspiro desolado cortado por outra pergunta.
- Porque o rato e não o coelho?
- Como?
- Porque você viu um rato e não um coelho? Existem vários aqui e às vezes alguns fogem. Apenas quis te enviar uma mensagem e a Magia escolheu o melhor meio de te chamar a atenção. O problema é que existem poucos ratos por aqui e muitos coelhos. Então, porque um rato e não um coelho?
Isabela fitou os olhos de Ivan na mesma busca por uma resposta. O cigano fechou novamente os olhos e o dia começava a escurecer, logo algum de seus pais chegaria. Sabia que se não respondesse à pergunta não ouviria mais nada de Ivan, não era a primeira vez que isso aconteceria. Fechou seus olhos também e começou a pensar na figura de um rato. Ratos são imundos, fedorentos, feios, trazem doenças, causam nojo. Ratos proliferam rápido – como coelhos! – são roedores e mamíferos. Darwin não iria ajudar... o que um rato significa? Esfomeado, noturno, bicho infernal. Destrói as plantações daqui de casa. Uma vez minha mãe me contou a história de um deus rato indiano que destruía, trazia e também curava as doenças, era uma divindade da vingança, da eliminação. Como sobrevive? De noite, roubando tudo o que precisasse para comer, para viver. Se apossava, roubava. De repente Isabela abriu os olhos, olhou afoita para Ivan e percebeu que abriram os olhos na mesma direção, na mesma velocidade. Seus olhos estavam estranhos, de um vermelho vivo, a noite já havia caído sobre a cidade e ele elevou a mão para o céu, fazendo movimentos circulares com as pontas dos dedos sem tirar os olhos vermelhos dos olhos afoitos de uma Isabela congelada de pavor. Deslizou sobre a face um sorriso diferente, malicioso, e abriu sua boca com presas e dentes pontiagudos enquanto suas orelhas criavam um aspecto triangular e corriam para cima e para trás na cabeça:
- É assim que você me vê? Como um rato?
Isabela tremia, sentia sua coluna presa ao solo num frio lancinante por sob a blusa, com os olhos frenéticos sobre os globos vermelhos de Ivan-Rato, não pôde dizer uma palavra.
- Desfoque o olhar, nunca olhe diretamente. – Disse Ivan-Rato fazendo sinal com os olhos para que Isabela olhasse para onde ele apontava com o braço estendido para o céu em movimentos ondulares.
A menina sentiu sua nuca se repuxar para trás, seu queixo se jogar para cima e ficou vesga, olhou para muito além do que poderia enxergar. Demorou. Alguns instantes em que ela se lembrava da face horrenda de Ivan, de suas presas, de algum estranho cheiro de esgoto aberto. Alguns minutos que pareciam horas, dias. Viu um movimento negro nas nuvens cinza no céu, antes que pudesse identificar, antes que pudesse olhar diretamente (não deveria olhar diretamente!) viu outro e outro e mais outro. Três morcegos enormes pareciam estar seguindo no céu os movimentos das mãos de Ivan. Como sombras rasgando a tela cinza das nuvens próximas, eram imagens de trevas sobre sua cabeça que lhe enlouqueciam os sentidos, não os via diretamente, mas estavam lá e às vezes mudavam de cores e tamanhos, eram roxos, ocres, marrons, negros novamente e vieram baixando, baixando até passarem como um único vulto gigantesco sobre os olhos pasmos de Isabela para desaparecerem no ar quando ela, por curiosidade, tentou olhá-los diretamente. Voltou-se para Ivan que já tinha o aspecto normal, embora seu coração sobressaltado ainda insistisse em recriar a imagem das presas e orelhas triangulares no alto da cabeça. Respirou como se pela primeira vez, inspirou uma tonelada de ar até sentir dor nas pálpebras e ouviu dos olhos fechados de Ivan:
- O rato é todo seu. Eu só te mandei uma mensagem. Quero te agradecer pelos dias aqui.
Passou a mão pela cabeça de Isabela e sorriu, novamente o sorriso paternal de um rosto moreno e marcado pela idade, mas humano. Profundamente humano. Desceu os dedos pela testa da menina e, sem esperar reação, deu um forte peteleco.

Sônia acorda assustada, seu terceiro sonho como Isabela esse mês. Catadora de papel e lata, vive e trabalha numa cooperativa onde procura esperar pacientemente sua vez no mutirão para a construção de sua primeira casa. Olha com carinho para a filha Marta, dormindo como uma pedra com sua neta Isabela no ventre. “Cedo demais”, ela pensa. Separa o ursinho e bolas de golfe que encontrou numa lixeira e deu de presente à filha e sai às pressas às quatro da manhã para iniciar sua jornada nos parques e jardins da cidade até que encontra Ivo, colega de profissão, amigo e, às vezes, mais. Estava calada a manhã toda, o sol já nascia e ela não pronunciara nada além de um sorriso quando avistou Ivo.
- Que você sonhou essa noite?
- Um futuro pra minha neta.

Receita e Conto: Renato Kress
fotografia: Caroline Poirey

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