domingo, 5 de abril de 2009

Selene



As unhas delicadas de Diana pousaram lentas sobre o livro de Ademar, bem sobre a página aberta, denunciando - com o tempo que ele levou para se assustar - seus olhos perdidos no céu.
- Pai, por que você finge que está lendo de noite?
Um sorriso desconcertado baixou olhos acinzentados até as mechas negras da menina de vestido verde musgo e casaco azul de lã.
- Como?
- Pai, tem anos que eu já sei que você não lê aqui nessa varanda de noite. Eu sei que você vira a cadeira no meio do ano e desvira ela perto do fim do ano e que às vezes você abre no início de um livro que está "lendo" a semanas, coloca o marcador de trás pra frente, pega a lapiseira e não dá um traço no livro e essa semana você pegou o livro errado! Por que você finge que está lendo?

Ademar largou o livro sobre uma mesa de centro daquela varanda enorme no segundo andar de um casarão em Santa Teresa, olhou para os olhos azuis de Diana e pegou nas suas mãos macias e suadas levando a menina a sentar-se na cadeira de couro vinho ao lado.
- Pensei que você não notasse.
- Pai, você está bem?
O sorriso de Ademar permaneceu enquanto seu rosto virava novamente para o céu. Seus olhos só se desprenderam dos de Diana quando o ângulo certo o punha de frente para a lua. Quando ela respirou fundo, olhando fixamente para o pai, sentiu suas mãos serem pressionadas de leve por aqueles dedos gordinhos e um leve aceno da daquela cabeça grisalha a indicou que acompanhasse seu olhar.
- O que você sabe sobre a sua mãe?

- O que a vó me falou, porque o senhor nunca me fala nada dela! A vó diz sempre que se vocês não tivessem casado ela ainda estaria viva. Acho isso bizarro.

Ademar apertou mais uma vez as pequenas mãos da filha e acenou para que olhasse para o céu. Era uma noite límpida. A lua parecia estranhamente clara, luminosa, como um gigantesco olho por sobre a cidade constelada de respingos amarelos, vermelhos e brancos.

- Está vendo a noite?

- Pai, cê tá legal?

A mão de Ademar pressionou com alguma força a mão da filha para em seguida soltar lentamente dedo a dedo. Diana buscou as mãos gorduchas do pai com carinho e apertou.

- Não, pai, me conta você. O que tem a noite?

Ademar sorriu.

- A noite é filha do Caos e mãe do Céu. Ela tem um nome: Nyx. Sem parceiro ela gerou o sono e a morte, Hipnos e Thanatos, os sonhos, as angústias, a ternura e o engano. As noites eram prolongadas pela vontade dos deuses, que paravam o movimento do Sol e da Lua a fim de realizarem suas proezas. Alguns casamentos de deuses tiveram noites de núpcias que duravam meses. Nyx percorre o céu envolta num véu negro, sobre um carro atrelado a quatro corcéis negros cujos cascos e olhos são estrelas cadentes. Alguma vez você viu estrelas cadentes lado a lado? Então imagine o tamanho desses seres. Quando algum pecado, algum descomedimento, gerava fúria da noite – que sumia com crianças, enviava pesadelos intermináveis e os homens tinham medo de dormir, quando isso ocorria, imolava-se uma ovelha negra. Sacrificava-se uma ovelha negra. Aqueça a água para o meu chá que continuaremos a conversa.

- Então, pai. Conta. Acho que estou entendendo.

- O maior furo no manto da noite é a lua. Os raios da lua sempre foram fecundantes, poderosos fertilizantes. Era óbvio. Nos dias que se seguiam ao plantio, não só as ervas e frutos estavam maiores como o sêmen da lua ainda se conservava sobre elas, na forma de orvalho. Para a Noite a semente nunca passou de massa inerte, absolutamente desprovida do poder de germinar. Esse poder pertencia à divindade da fecundação, a Lua. Somente as mulheres faziam prosperar as colheitas, porque somente elas estavam sobre a proteção da Lua, somente elas tinham o poder de germinar internamente, amadurecer e gerar frutos.

Os lábios de Ademar se esticaram num quase-sorriso forçado. Alguma inoportuna imagem lhe roubara a concentração.

- O chá, filha. Inferno é não poder com o açúcar mais. O chá e o adoçante.

- Para a Noite, que gerou sozinha, o homem não tem função maior que romper o hímen para que os raios da Lua possam fecundar o ventre, o âmago da Terra, que também é uma mulher, Gaia. Os raios da Lua eram tão poderosos que bastaria a mulher se deitar nua sob o quarto crescente para ficar grávida. Para a Noite, o homem é dispensável. Mas a gravidez é um processo penoso, mesmo para divindades. Na Babilônia, Ishtar, a deusa Lua, ficava indisposta durante a lua cheia, quando então era instituído o sabattu, ou melhor, o sapattu, donde o hebraico sabbat, o “repouso do coração”. Durante a indisposição de Ishtar, no período da lua cheia, guardava-se o “sábado”, não se podendo executar nenhum trabalho, viajar ou comer alimentos cozidos.

- Pai, o que isso tem com o livro? O que tem com a minha mãe?

Ademar sorveu todo o resto do líquido naquela infusão bruxuleante sobre a sombra da noite iluminada. Deixou que seus olhos nebulosos se desviassem do luar por algum segundo imperceptível enquanto abria os lábios deixando de lado a xícara vazia e fumegante.

- Eu disse que teria? Não me olhe assim, filha. Também não neguei que tivesse. Você descobre. – Apontou para a lua, brilhante, e fechou os olhos.

Conto e Receita: ®Ҝ


Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?