domingo, 21 de dezembro de 2008

Um parágrafo de Lara


Correra toda noite. Carro sem gasolina, deiado na estrada. Pés cansados pressionando a areia macia, panturrilha ardendo. Sorriso. Tinha saído do estado? Ainda havia praia e a panturrilha, ainda... Quisera dar uma lição a eles - Malditos carcereiros! - Sem saídas, sem viagens, sempre cedo em casa, antes das dez... - inferno! - Agora abria as asas e sorria na chuva, um riso louco, gargalhada ecoante entre as pedras, a areia. Roía as vísceras entre a garganta e o infinito. Nada poderia feri-la. Sem comida, sem abrigo, duvidava ter energia para voltar ao carro. Adiantaria de que? - Grandes merda! - queria estar sozinha. Não! Queria estar consigo. Seguir as suas regras, prestar contas a si mesma. Saborear a maresia, seu sorriso escorrendo, seguia o vento que lhe abraçava. Único abraço que precisara em toda a vida e só agora isso ficava claro. Tão óbvio, tão limpo. Sentou-se sobre uma rocha e chorou. Momentos antes de sentar, milésimos de segundo em que toda sua vida se passara diante de seus olhos, tal fosse, aquele simples "sentar na pedra", o último ato da vida. Talvez daquela vida. Chorou pelos erros, lamntou oportunidades perdidas. Crescera dez anos naquela pedra, naqueles segundos. Cabeça entre os joelho e a língua percorrendo a infinidade dos seus lábios, ciclos contínuos de prazer. Incapazes de proferir as palavras de que tanto necessitava. Incapaz de se sentir viva. Enfrentá-los. Mesmo ali. Mesmo só. Mesmo poesia sobre a praia dançando luxuosos salões em Camelot, mesmo ela, espírito tão selgvagem, tão arisco, do mundo, mesmo ali, vazia. Consciente do vazio. Mesmo ali, inútil. Deveria enfrentá-los, talvez nem deixar que notem que estivera tão longe. Notariam sua falta, poderia ter dormido em casa de amigos. Fechou-se no amor, saudades de casa - Malditos carcereiros! - lembrou-se do amor, não quisera amar. Lidava com a ventania, seus pensamentos digladiavam alma, coração, entranhas, peito arfante, mil quilos entre os pulmões e seu espírito pesava sobre as roupas encharcadas. Chuva forte. De repente o riso, novo, mil infinitos mais intenso, pré-histórico, de um animal, quase rugido. Abriu os olhos, o dia raiava. Deu o primeiro passo de volta. Era mais forte que eles.

(Para Lara com carinho)

Conto e receita: ®Ҝ

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Sérgio & Lúcia X Lúcia e Sérgio


Sérgio & Lúcia


Houve dias de balestra, um dardo atrás do outro e meia dúzia de fundas zunindo sobre a cabeça. Agora calmaria, agora sonho, agora espero. As intimidades, amenidades que se tornaram, vagavam cegas pelas entreabertas coxas dela. Não que se acostume de todo, meio insensatez frictícia ou a ritmia decorada da dança mórbida, até já sem palavras, esparsos gemidos e insatisfações talvez melhores que nada. A mesma fuga na culpa muda sobre o outro. O chapéu e os sapatos, já perto da porta, não quiseram entrar muito, esperavam mostrando o caminho de volta. Certos detalhamentos, quando muito evidentes, irritam - pensou. Pensou e caminhou rua afora. Não deixara nada, nenhum ato falho, nem lembranças, apenas uma leve sensação de hipersensibilidade peniana - "A vadia tinha a buceta travada!" - Atravessou a calçada cambaleante num sorriso de desbravador português sobre indefesa indiazinha. Sua casa ficava longe, Marta o esperava, com sua carne cheirosa, sua pele lisa e seu sorriso limpo - pasta de dente demais.


Lúcia e Sérgio


Homem sério sobre o balcão, antebraço grosso, olhar perdido, rígido. Coxas grossas e um perfume caro - as palavras foram poucas antes da penetração. Depois, nenhuma. Violência e rispidez, mas ela queria. Ela desejava porque sabia que ele era assim, amava. Nunca se atrevera, mas amava. Deitou-se de bruços - na verdade queria conversar, parar por um instante que fosse, tornar aquilo tudo real. Foi levantada pela cintura - Por Deus, de novo não! - ele havia achado sua mina e começava a escavar seu ouro. Luzes apagadas. Nenhuma palavra. Hemorragia. Nenhuma percepção. Era hemofílica. Antes do sono um leve gemido, mordera tanto os lábios que o visco rubro lhe percorria o pescoço, descia pelo braço - sem tato, sensibilidade. Luzes apagadas. Nada visto. Morreu horas depois, sem dor, sem amor - amava.


Receita e Conto: ®Ҝ

Manuscrito Íntimo


Acreditam que pesam sobre meus ombros. Que esmagam minha traquéia. Essas carotidantes lembranças, certas pessoas jugulares. Uma amiga me ensinou que, se quisermos, as pessoas têm botões de "eject". Aprendo rápido. A filhadaputa ejetou, a F., a D., a P. todas ejetaram. Quero mais essa tristeza não; não essa. Quero tristeza vaga, diáfana, tristeza doce, leve e sábia. Você sabe. Já viu um sorriso desse pela rua, um senhor sentado num deck na Lagoa, lembra?


Vinde a mim as criancices! Tô trocando as figurinhas agora mesmo, Deus: pode ficar com 'angústia', me vê minha 'tristeza leve'. Não é que a cruz não seja minha não, é que é inútil mesmo. quero meu carinho, meu amor e meu tempo. Tudo pra mim. Coloca aí na mochila. quero mais um tempo rindo de mim. Correr na orla é terapêutico. O ônibus está chegando. Preciso mostrar meu armário novo para os velhos demônios.


Conto e Receita: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?