domingo, 21 de dezembro de 2008

Um parágrafo de Lara


Correra toda noite. Carro sem gasolina, deiado na estrada. Pés cansados pressionando a areia macia, panturrilha ardendo. Sorriso. Tinha saído do estado? Ainda havia praia e a panturrilha, ainda... Quisera dar uma lição a eles - Malditos carcereiros! - Sem saídas, sem viagens, sempre cedo em casa, antes das dez... - inferno! - Agora abria as asas e sorria na chuva, um riso louco, gargalhada ecoante entre as pedras, a areia. Roía as vísceras entre a garganta e o infinito. Nada poderia feri-la. Sem comida, sem abrigo, duvidava ter energia para voltar ao carro. Adiantaria de que? - Grandes merda! - queria estar sozinha. Não! Queria estar consigo. Seguir as suas regras, prestar contas a si mesma. Saborear a maresia, seu sorriso escorrendo, seguia o vento que lhe abraçava. Único abraço que precisara em toda a vida e só agora isso ficava claro. Tão óbvio, tão limpo. Sentou-se sobre uma rocha e chorou. Momentos antes de sentar, milésimos de segundo em que toda sua vida se passara diante de seus olhos, tal fosse, aquele simples "sentar na pedra", o último ato da vida. Talvez daquela vida. Chorou pelos erros, lamntou oportunidades perdidas. Crescera dez anos naquela pedra, naqueles segundos. Cabeça entre os joelho e a língua percorrendo a infinidade dos seus lábios, ciclos contínuos de prazer. Incapazes de proferir as palavras de que tanto necessitava. Incapaz de se sentir viva. Enfrentá-los. Mesmo ali. Mesmo só. Mesmo poesia sobre a praia dançando luxuosos salões em Camelot, mesmo ela, espírito tão selgvagem, tão arisco, do mundo, mesmo ali, vazia. Consciente do vazio. Mesmo ali, inútil. Deveria enfrentá-los, talvez nem deixar que notem que estivera tão longe. Notariam sua falta, poderia ter dormido em casa de amigos. Fechou-se no amor, saudades de casa - Malditos carcereiros! - lembrou-se do amor, não quisera amar. Lidava com a ventania, seus pensamentos digladiavam alma, coração, entranhas, peito arfante, mil quilos entre os pulmões e seu espírito pesava sobre as roupas encharcadas. Chuva forte. De repente o riso, novo, mil infinitos mais intenso, pré-histórico, de um animal, quase rugido. Abriu os olhos, o dia raiava. Deu o primeiro passo de volta. Era mais forte que eles.

(Para Lara com carinho)

Conto e receita: ®Ҝ

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Sérgio & Lúcia X Lúcia e Sérgio


Sérgio & Lúcia


Houve dias de balestra, um dardo atrás do outro e meia dúzia de fundas zunindo sobre a cabeça. Agora calmaria, agora sonho, agora espero. As intimidades, amenidades que se tornaram, vagavam cegas pelas entreabertas coxas dela. Não que se acostume de todo, meio insensatez frictícia ou a ritmia decorada da dança mórbida, até já sem palavras, esparsos gemidos e insatisfações talvez melhores que nada. A mesma fuga na culpa muda sobre o outro. O chapéu e os sapatos, já perto da porta, não quiseram entrar muito, esperavam mostrando o caminho de volta. Certos detalhamentos, quando muito evidentes, irritam - pensou. Pensou e caminhou rua afora. Não deixara nada, nenhum ato falho, nem lembranças, apenas uma leve sensação de hipersensibilidade peniana - "A vadia tinha a buceta travada!" - Atravessou a calçada cambaleante num sorriso de desbravador português sobre indefesa indiazinha. Sua casa ficava longe, Marta o esperava, com sua carne cheirosa, sua pele lisa e seu sorriso limpo - pasta de dente demais.


Lúcia e Sérgio


Homem sério sobre o balcão, antebraço grosso, olhar perdido, rígido. Coxas grossas e um perfume caro - as palavras foram poucas antes da penetração. Depois, nenhuma. Violência e rispidez, mas ela queria. Ela desejava porque sabia que ele era assim, amava. Nunca se atrevera, mas amava. Deitou-se de bruços - na verdade queria conversar, parar por um instante que fosse, tornar aquilo tudo real. Foi levantada pela cintura - Por Deus, de novo não! - ele havia achado sua mina e começava a escavar seu ouro. Luzes apagadas. Nenhuma palavra. Hemorragia. Nenhuma percepção. Era hemofílica. Antes do sono um leve gemido, mordera tanto os lábios que o visco rubro lhe percorria o pescoço, descia pelo braço - sem tato, sensibilidade. Luzes apagadas. Nada visto. Morreu horas depois, sem dor, sem amor - amava.


Receita e Conto: ®Ҝ

Manuscrito Íntimo


Acreditam que pesam sobre meus ombros. Que esmagam minha traquéia. Essas carotidantes lembranças, certas pessoas jugulares. Uma amiga me ensinou que, se quisermos, as pessoas têm botões de "eject". Aprendo rápido. A filhadaputa ejetou, a F., a D., a P. todas ejetaram. Quero mais essa tristeza não; não essa. Quero tristeza vaga, diáfana, tristeza doce, leve e sábia. Você sabe. Já viu um sorriso desse pela rua, um senhor sentado num deck na Lagoa, lembra?


Vinde a mim as criancices! Tô trocando as figurinhas agora mesmo, Deus: pode ficar com 'angústia', me vê minha 'tristeza leve'. Não é que a cruz não seja minha não, é que é inútil mesmo. quero meu carinho, meu amor e meu tempo. Tudo pra mim. Coloca aí na mochila. quero mais um tempo rindo de mim. Correr na orla é terapêutico. O ônibus está chegando. Preciso mostrar meu armário novo para os velhos demônios.


Conto e Receita: ®Ҝ

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Dois em uns



Um sorriso e um suspiro. “Perfeito!!!” Pensou Olívia, sentindo uma leveza qualquer e indiscernível nas pontas dos dedos, um arrepio pela sola do pé esquerdo até a nuca que percorreu seu corpo pequeno como uma leve centelha elétrica e lhe deu uma graça felina para perto do corpo de Eduardo. Fechou seus olhos verdes e deixou uma linha labial se esgueirar entre as orelhas, criando duas lindas covinhas no solo das bochechas.

Queria estar ali por horas, esquecer relatórios, endereços, compromissos. O entrelaçar úmido de suas coxas, já sem forças para qualquer outro movimento, era simplesmente perfeito! O cheiro fresco do shampoo de menta de Eduardo e a atmosfera de pêlos e pele simplesmente haviam catapultado Olívia para fora da Samsara, da roda das encarnações nesse mundo. Ela era o nirvana, ela era ele. Mais um longo suspiro e... Era tudo perfeito!

Talvez fosse o melhor momento para dorm...

- Tava pensando...
Um estremecimento qualquer interrompeu o fluxo de sensações dentro da cabeça da jovem.
- Tava pensando na gente. Você nunca fala nada. Sabe.... durante.
Silêncio total. Olívia simplesmente não acredita enquanto Eduardo puxa bruscamente o braço por trás de suas costas, apoiando-se sobre o cotovelo e empurrando um pouco seu rosto para ajeitar o braço. Pequenas insensibilidades que minaram o solo de nuvens do castelo de Olívia.
- Não sei. Nunca sei se você está gostando, se eu deveria fazer diferente, mudar menos de posição, te pegar em outros lugares, puxar menos teu cabelo... demorar mais no comecinho...

Olívia fecha os olhos, tenta recompor o fluxo, o nirvana. Concentra-se nas suas coxas, virilha. A mão de Eduardo passa por sua cabeça quase que embaralhando seu cabelo e idéias, como se faria com uma criança que precisa terminar a lição antes de dormir e diz: - Amor, tô falando.

Quase sem som a boca de Olívia se abre em tom de desaprovação.
- Está perfeito. Não muda nada. – E suspira e vira de lado profundamente querendo parar as palavras dele agora já mais dentro que fora dela.

- Sei que parece, mas podemos melhorar, não acha? Li?
Ela morde as paredes internas das bochechas quase como se travando quaisquer palavras que não pudessem sair àquele momento. Mas falha, elas fogem tão logo Olívia afasta seus dentes e, entre um aspirar profundo que precede o suspiro irritadiço, atingem em cheio o ar recheado de um silêncio tenso:
- Eu sabia que isso ia acontecer...
- O que?
Abrindo suas lindas órbitas verdes em direção àquela voz ininterrupta, Olívia dispara:
- Tudo teu é complexo demais. Juro que estranhei que o sexo fosse tão bom e que depois você soubesse ficar quieto. Tava demorando mesmo...

- Mas Li...
- É sério, Du. Olha, é a terceira vez que estamos aqui na tua cama, se não fosse perfeito na primeira juro que simplesmente não atenderia teus telefonemas mais, inventaria uma desculpa, deixaria você perceber umas pistas. Mas não, apesar da tua cabeça, da tua necessidade de uma vida sem mistério, obscuridade charmosa que geralmente tanto me encanta... dessa tua necessidade de sempre deixar tudo tão claro que a graça se perde no caminho, apesar dessa sua transparência chata, tuas manias de explicar tudo, falar demais, nosso sexo é perfeito. Sempre foi. Por isso estou aqui agora, dormi aqui ontem.

- Preciso saber o que acontece com você. Quero te entender.
Olívia passou a mão na testa, desacreditando a ingenuidade quase infantil daquele homem de quase dois metros de altura.
- Lindo – palavra que saiu irritantemente condescendente aos ouvidos dele -, presta bem atenção: Eu não quero ser entendida. Nem sei se quero ser amada como você pretende amar. Estamos ótimos como estamos. Não problematize as coisas.

- Não tem como você me escutar mesmo, não é?
A mão que estava na testa agora fechou-se deslizando o antebraço delicado de Olívia para cima dos olhos. Apenas sua boca delicada, sem covinhas nem sorrisos, irritada e monossilábica:
- Tem. Depois.

Eduardo levantou-se bruscamente da cama. Colocou cueca, calças, camisa. Maçãs do rosto vermelhas, dentes trincados.

Olívia escorregou o antebraço para olhá-lo com certo desdém e irritação.
- Que foi agora?

Apertou com força a trava do relógio no pulso:
- Nada. Vou sair. Pode deixar, não vou ficar falando, problematizando, explicando nem tentando entender.

Ao deslizar o antebraço para cima dos olhos de novo, Olívia deu um sorriso. Poderia ser alivio, ironia, desdém. Na realidade nem ela saberia a pulsação daquele sorriso, e não saber, para Olívia, era o conforto necessário à graça da vida.

Aquele sorriso, visto pela periferia do olhar tenso de Eduardo foi um soco no estômago.
- Ta bom, chega! Não te entendo, não tô afim de ficar pensando nisso agora, não tô com saco pra agüentar tua ironia. Que merda de sorriso foi esse?
O minimalismo de Olívia impediu que qualquer músculo de seu corpo além dos de sua boca participassem da resposta: - Você quer mesmo brigar?

- Não. Quero te ver depois. Tô indo na rua esfriar a cabeça. Pensar direito na gente.
- Engraçado você. Vai na rua esfriar a “cabeça”, precisa “entender” tudo, “pensar direito”. Pensei em te perguntar se te passou pela cabeça que não é pela cabeça que deveriam passar teus pensamentos agora, mas você não “entenderia” a pergunta.
- Olha, vai se ferrar. Tô saindo da minha casa pra te deixar em paz, já vi que minha voz te irrita, que meu jeito é péssimo pra você, que você precisa viver esses mistérios sentimentais dos quais eu nunca vou participar.
Olívia levantou de um pulo, seus olhos poderiam estar vermelhos do antebraço pesando, das lágrimas contidas, da raiva, do sono - Fica tranqüilo, “pensador”, eu deixo você sozinho aí no teu castelinho regrado e pensado. Quanto aos mistérios, te diria que são mais sensíveis que “sentimentais”, você não me deixou chegar a esse ponto, ainda. Nem vai. – Mergulhou o vestido sobre seus braços até abaixo do joelho e andou em direção à porta, esperando que Eduardo a seguisse, nu de palavras, e a abraçasse por horas, trouxesse o nirvana de volta.

- Aproveita e leva o aquário!
Um suspiro profundo desceu pela garganta até a boca do estômago de Olívia.
- Não é um aquário porra, é um vaso! Tem uma planta aí.
Marchou até ela com passos duros, a redoma de vidro entre as mãos.
- Não é porque eu coloco uma rosa na privada que ela deixa de dar descarga.

Blam!

Ah, é?

Crash!

Receita e Conto: ®Ҝ
Fotografia: Caroline Poirey

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Eu e Ela


- Vem, hoje vamos passear.

- Só nós dois, vó?

- Só nós dois, amor.

Procurou como um louco o gravador que havia ganho semana passada de seu pai. Levava ele sempre no bolso. Pensava que tudo deveria ser gravado, repensado, escutado várias e várias vezes. No fundo amava aquele poder incrível de viver a vida várias vezes, escutar sempre com outros ouvidos a mesma e a mesma conversa. Era divertido.... Nada. Embaixo da cama, nas estantes, gavetas, mochila do colégio, afundou a mão dentro das roupas sujas no banheiro... nada.

Apareceu na porta com as mãos no bolso, olhando pra baixo, chateado. Recebeu um afago da avó sorridente e desceram o elevador.

- Onde vamos vó?

- É surpresa, lindo. Surpresa. – e a septuagenária de vestido florido piscou os olhos enrugados com ar de cumplicidade que calou o menino. Não deveria ser nada que ele não fosse gostar “Não lembro a última vez que a vovó saiu comigo...”

Chegando na portaria, cumprimentaram seu Manoel e o menino não se conteve: “Vou sair com a minha avó!”. Antes que o porteiro pudesse esboçar qualquer reação, a grande revelação: “É segredo!”, disse com um piscar de olhos confidente.

Entraram num táxi que já os esperava à porta. “Bom dia Miguel, vamos?”, a intimidade da avó com o taxista – aliás pareciam ter a mesma idade – causou estranhamento no pequeno rapaz. Passando pela cidade, com os olhos atentos à vó e ao motorista, simplesmente teve um “clic”: Vovó não disse pro taxista onde iríamos!

Cutucou a vó com suspeita, como se fosse fazer uma confissão:

- Vó... o moço sabe onde...

- Sabe! Já estamos quase lá, meu lindo.

Apertou as mãos com certa desconfiança entre as pernas e a irritante sensação de impotência infantil parecia presa entre seus dentes. Pensava se não deveria tentar abrir a porta do carro e pular com a senhora pra fora. Suas mãos suavam e se esfregavam nos joelhos. Não entendia o que estava acontecendo ali e começou a suar olhando para os lados, aflito.

Nesse instante aquela mão leve de pele fina e delicada fez um carinho nas mãos apertadas do menino. Fingindo não entender o que ele sentia, ela sorriu: - Tudo bem meu amor, tem banheiro lá.

- Não vó, é que...

- Chegamos. – disse em tom sério o taxista. Recebeu duas notas amassadas da mão da senhora e partiu.

Estavam em frente ao portão do cemitério da cidade. O garoto conhecia o lugar. Apertou forte a mão da avó, preso como uma âncora no chão, os joelhos totalmente extendidos, os ombros duros, suor pela nuca: - On-on-onde é que a gente vai, vó?

- Vamos arranjar um banheiro para você. – disse a senhora caminhando para dentro do cemitério.

- Ma-ma... eu não quero ir ao banheiro! – e soltou a mão da avó num puxão ficando parado no mesmo lugar. Tremia.

- Ótimo! Primeira coisa que você fez de certo hoje! Tomou uma decisão sua! Muito bem. Agora pode decidir se quer continuar essa conversa ou não lá dentro. – e caminhou a passos lentos e rígidos sem olhar para trás.

Ainda fincado como uma rocha na calçada, o menino balbuciou qualquer coisa que fosse uma boa desculpa para não ficar ali sozinho: - Vamos ver o vovô?

A voz já estava longe: - Talvez...

Correu como pôde atrás do vestido florido. Agarrou a mão da avó com força e só pensou em estar em qualquer lugar mais familiar: - Onde fica o banheiro, vó?

Depois de ir à repartição dentro do cemitério e pegar as chaves do banheiro com um senhor com as sobrancelhas grossas de taturana que faziam uma sombra enorme e horrível sobre seus olhos e alcançavam as bochechas moles e chupadas que “deveriam morar numa das tumbas”, ele saiu refeito, com ar sério e tomando sua decisão:

- Pronto vó, podemos ir embora agora!

A senhora riu do peito estufado do menino enquanto arrumava suas calças e soltou o desafio com um sorriso unilateral: - Achei que fosse mais corajoso!

- Mas eu sou! É que eu tenho dever pra fazer pra amanhã.

- Amanhã é sábado, meu anjo. – e pegou a mão do rapazote que ainda não acreditava que havia gasto a desculpa mais perfeita em seus onze anos justamente na pior hora.

Caminharam por uns três “quarteirões” – se é que se pode chamar assim as divisões internas de uma necrópole – e, para a grande surpresa, vovó sentou-se num dos túmulos que não era tão baixo, de forma que suas perninhas com sapatinhos de salto baixo ficaram pendendo no ar. Convidou com o olhar a que o neto fizesse o mesmo, mas não ao lado dela, e sim na lápide em frente a ela.

- Vovô está aí? – disse apontando para onde a avó estava sentada. Ela apontou para a frente à direita e disse: - O seu avô está pra lá!

Girou o pescoço com uma jovialidade muito estranha a alguém com aquela idade e disse:

- Essa daqui é do... da senhora Ingrid Lima dos Anjos, e a sua meu bem?

Ele olhou para trás com um medo gigantesco, sentia como se fosse voltar a cabeça e não encontrar a avó, como se o dono daquela tumba não fosse gostar dele estar sentado ali: - Mário... Medeiros, vó.

Aquele virar de cabeça, perdendo e reencontrando por míseros segundos o olhar carinhoso da avó deu ao menino toda a confiança de que necessitava para estar ali. Sua avó não fugira, ninguém havia “pulado” nele da tumba, nada. Vovó continuava ali. Sorrindo.

- Você já olhou seu cotovelo hoje?

- Como é?

- Seu cotovelo, já olhou?

Respondeu tentando olhar de perto, girando os braços: - Não, que tem ele?

- Não dá pra ver direito, amor. Estica seu braço e toca no seu cotovelo.

Ele o fez.

- Tá. Que tem ele?

- A pele é mais grossa? Estica mais que as outras?

- É, estica sim.

- Se eu te dissesse que essa pele que você tem no cotovelo é pele de dinossauro?

- Ah, vó, pára!

- Sério, dinossauro. – disse apontando para o braço do menino.

Em ar juvenil de autoridade: - Não tem como, vó.

- Claro que tem, meu amor. Já ouviu falar que, na natureza – disse a avó pegando uma semente no bolso do vestido e depois apontando para as flores próximas àquele túmulo -, nada de perde, nada se cria, tudo se transforma?

- Mas como pode a pele do dinossauro ter vindo parar no meu cotovelo?

- Ah, você está perdendo o sentido da conversa, amor... nada se perde, nada se cria, tudo se transforma! – e os olhinhos da senhora brilharam com uma luminosidade jovial que o menino nunca havia visto antes. Um arrepio lhe subiu pelas costelas até um tilintar frio na nuca. Não deveria ser nada, frio, um vento talvez.

- O que está escrito ali? Entre aquele anjo e a figura de Nossa Senhora?

- Pra lá?

- U-hum, ali.

- Re... reter.... revertere ad... locum tuum. – Não sei o que é vó.

- “Revertere ad locum tuum”, é latim, significa: “retorna ao teu lugar”. Mas não se preocupe, isso não é dito pra nos deixar pequenos diante do universo. Não. Significa que nossa jornada aqui é um fenômeno divino, do início ao fim. Que no fundo não sabemos pra onde vamos, nem mesmo de onde viemos, mas a idéia é que, seja de onde viermos, é para lá que vamos.

O garoto respirou fundo e pensou que se acelerasse aquela conversa iria embora logo dali. Esticou os braços para trás para se apoiar, começava a ficar mais à vontade naquele lugar:

- Por que a senhora está me falando isso?

- Não me pergunte coisas que você pode descobrir por si mesmo. Lembra da história que te contei, sobre os trabalhos de Hércules?

- Lembro, claro! – e olhou em volta esperançoso de ver naquelas esculturas, de outra cultura, qualquer uma das que via nos livros da avó.

- Então, o que aconteceu com o caranguejo que foi mandado para picar o pé de Hércules quando ele combatia a Hidra?

- Hércules esmagou ele e a Hera colocou o caranguejo nas estrelas. Daí ele virou o meu signo.

A senhora abriu um sorriso enternecido: - Isso. Ele virou uma constelação. Câncer. Nas histórias que eu te conto é comum que os heróis virem estrelas: o Leão de Neméia, Órion fugindo do Escorpião...

- Sei, os signos.

- Também, mas não é disso que estou falando. É comum que nas civilizações antigas se procurasse entender para onde ia a vida que animava aquele corpo que agora estava frio, pesado. Para onde tinha ido a alegria dos olhos daquele filho, as risadas do irmão, o calor do colo da mãe, as palavras da avó.

Nesse momento ele não se conteve, olhou fixamente nos olhos da senhora: - Vó, a senhora vai morrer?

- Vou!

Antes que ele pudesse descer do túmulo com seus abraços e afagos, a divertida vovó continuou: - Você também! Seus pais, seus filhos, seus netos, seus tataranetos, aquele senhor que te emprestou a chave do banheiro talvez vá antes de gente, mas morrer vamos todos meu amor.

Ainda assim ele desceu de onde se sentara, abriu os braços e abraçou os joelhos flutuantes por uns dois minutos sem falar nada.

- Senta aqui então, fica comigo. – Não resistiu a senhora.

- Sabe, teve uma época em que você só babava, chorava, fazia xixi e quase tentava escavar o ar. Suas mãozinhas eram do tamanho do seu mindinho agora, ou menores. Depois, teve uma época em que você só andava de quatro. Acha que isso aconteceu assim, de um dia pro outro?

- Ah, vó, não tem como lembrar.

- Não perguntei se você lembra, perguntei o que você acha, espertinho.

Baixou a cabeça pensativo.

- Não deve ter sido do nada. Não sei.

- Foi teu primeiro ponto de independência. Você deixou de apreender tudo pela voz e pelo corpo dos teus pais e começou a procurar o teu caminho. Foi quando eu percebi que você reconhecia a minha voz. Você era um menino esperto, mexia em tudo o que fosse colorido, quase tudo era comestível pra você naquela época. Tenho que te confessar que vi você com mais admiração naqueles dias. Era teu primeiro contato com a Morte. Não! Não estranhe! Evidente que você estava nascendo para a vida, para o mundo, recheado de expectativas, de desejos, de curiosidades, de celeridade... como você engatinhava rápido! Foi justamente isso que te apressou o contato com a morte. A partir daquele ponto nunca mais teus pais seriam o centro do universo, nunca mais seriam tudo aquilo que daria lógica, sentido e direcionamento aos teus passos. Eles podiam reclamar, brigar, te colocar de castigo, te orientar, mas nunca, nunca mais poderiam ser responsáveis por cada um de seus passos. Ali você matou seu “papai-Deus” e sua “mamãe-Deusa” onipotentes, oniscientes, onipresentes. Foi teu primeiro contato com a morte. O melhor de tudo, foi que não me lembro de você ter olhado para trás. Em nenhum momento. Talvez só bebês saibam realmente lidar com a morte.

A senhora, percebendo a receptividade conflituosa do menino à história, pegou mais uma vez em suas mãos. Mesmo que agora a vovó tivesse mãos um pouco mais frias, o menino não reclamou, apenas queria apressar tudo aquilo e ir embora:

- A grande sabedoria é estar em sintonia com o teu centro e vivenciar aquilo que está passando, não como mutilação, que é uma perda destrutiva e sem sentido, mas como sacrifício, que é a troca, é a perda em função do ganho em algo maior. Passamos a vida em fases, que morrem. Só podemos aprender algo com as fases se aprendermos algo com a morte. Passamos a primeira fase da vida nos nutrindo através da fertilidade alheia e do trabalho alheio que nos proporcionam subsistência e forças para nos formar. Temos uma memória fugaz, uma discriminação frágil entre as polaridades. Bom é o que sacia nosso desejo; Mau o que cerceia e dificulta. Essas fases não vêm com a idade. São apenas fases - tem quem viva a primeira fase até os noventa anos de idade, acredite! - e só precisam de um elemento para podermos viver além do universo delas: é preciso deixar que essas fases morram. Passamos a segunda fase da vida na organização e no dever, no status, na labuta – significa trabalho, meu amor -, compreendendo o sentido do sacrifício e do mérito. Estendemos nosso campo de ação para lidar com a vida, nossa consciência cria mil e uma estratégias, estereotipa – cria um modelo, amor – de conduta, padroniza normas. Normalmente recebemos a compreensão de que somos responsáveis por nossas vidas até o momento de nossa morte. Muitas vezes os traumas de deixar que a primeira fase de nossa vida realmente morra são tão grandes que acabamos nos impondo pela agressividade, competição e conquista. É uma fase intensa, mas ainda assim é preciso deixar que essa fase morra. Se deixarmos que ela realmente morra, poderemos desfrutar da terceira fase da vida, que gira em torno da criatividade e da compaixão, onde não é mais necessário provar nada, além da nossa capacidade, às vezes enferrujada pela segunda fase da vida, de perdoar a nós mesmos aqui e ali. Porque no fundo, só podemos perdoar a nós mesmos, mas está tudo bem, é tudo que realmente precisamos. Ainda agora é preciso deixar que essa fase morra. Sim, tem mais! Caso consigamos viver essa última morte, perdoado e rido muito de milhares de pequenas atitudes fúteis – que tiveram sua razão de ser, nem que fosse a gargalhada enorme que damos quando nos revemos em certas ocasiões, pensamos nossas palavras, gestos, fricotes, acessos... enfim, caso consigamos viver essa gargalhada de choro e perdão de ninguém mais que nós mesmos, aí sim poderemos viver a quarta parte da vida. Uma parte de desprendimento e talvez até de uma certa onipresença que antecipa o que viveremos daí em diante. Viver essa quarta fase é ter total controle sobre a morte. Sei que um dia você vai vivê-la, talvez antes do tempo que eu precisei para vivê-la, espero, e vai se lembrar dessa nossa conversa. Aliás, aqui está algo que eu preciso que você se lembre sempre: ou vivemos a morte sacrificando – tornando sagrado – e ultrapassando todas as fases de nossa vida ou deixaremos que a Morte se instale sobre nossos ombros como um gigantesco corvo negro do qual jamais poderemos suportar o peso ou as garras.

Abraçou o neto com carinho enorme. Deu-lhe dois beijos no topo da cabeça e abraçou o pequeno por muito tempo, tempo suficiente para que a respiração deles fosse a mesma, seus batimentos os mesmos, e o perfume familiar adormeceu aquele menino.

- Levanta garoto! Dia de aula!, disse seu avô cutucando os ombros moles do menino às seis horas da manhã. Foi até a parede, benzeu-se para o retrato de sua avó e correu o dia.

Receita e Conto: ®Ҝ

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ressaca


- Alô? Não, não, escutaí que é DDD e eu preciso te falar isso!

Essa é uma das noites em que, daqui, meu corpo translitera qualquer nota, qualquer som que se expande entre as batidas do coração e, sentado nessas pedras, se coordena com as ondas numa dança divina.

- Não, eu não bebi não. Tá eu bebi, mas não decorei isso. Escuta:

Não duvido de que essa noite irá passar, talvez carregue com ela esse sentimento, essa sintonia táctil entre meu corpo e as águas. Como fases da vida, essa noite irá passar. Meus sentimentos de hoje por você também vão passar. Serão marolas, tormentas; nunca o que são agora. Por isso tenho que te dizer isso hoje. Amanhã eu desdigo tudo, então escuta.

Temos instantes de yin e yang em nossa jornada. Íntimo, público. Às vezes estamos mais expostos, mais expansivos, mais falantes, às vezes mais centrados, mais sensíveis, precisando de um tempo nosso, de um espaço, sincronia fina entre nós e nós mesmos. Como as ondas do mar que puxam e empurram as batidas aqui dentro.

- É, é, eu to empolgado. Culpa tua.

Nesse tempo, nesse espaço, aqui, sou o mar. Talvez um símbolo qualquer da dinâmica dessas fases, útero e fim da vida. Sou nascimento e transformação em mim mesmo. Esse mar em movimento, esse estado transitório de potências germinantes e realidades configuradas. Sou essa qualquer situação de incerteza, dúvida e indecisão. Posso dar alimento por meses, transpor milhas em calmaria por anos, afogar em minutos, arrastar em segundos uma cidade inteira de pensamentos e sentimentos dentro de mim.

A sabedoria dos antigos oferecia cavalos e touros – símbolos de fertilidade e vida – como sacrifícios ao mar. Às vezes é preciso sacrificar um pouco do que poderia gerir-se em mim para aplacar um possível tsunami ou quaisquer monstros das profundezas, imagens, memórias, projeções. Às vezes é necessário tentar escapar pateticamente do naufrágio inevitável da vida.

- Pensei em você. É, você.

Percebi com carinho que você é minha lua. É a contagem do tempo, a regra, a doce certeza da inevitável renovação; transformação e crescimento. Tem suas fases, suas semanas, suas idas e vindas. Quando cresce, decresce e desaparece pontua a lei universal do meu vir a ser, meu nascimento e morte. Essa morte indefinida, pontual e não definitiva influencia minha água, minha chuva. É o instrumento da minha medida universal. Nenhum dos meus antepassados teriam dominado a agricultura, as caçadas, a pesca, a vida, não fosse observando tua variação periódica. Você é um símbolo de passagem, da vida em morte, da morte em vida. Ainda não percebi – mar que sou, vasto, intenso, indeciso, incerto – se estou vivo, e morro através de você, se estou morto, e vivo em você.

- Não, isso não é uma declaração. Ao menos eu não tenho a intenção que seja. Não, não! Só escuta:

Entre os astecas as divindades lunares – que eram uma família – são os deuses da embriaguez; porque o bêbado, que adormece e acorda sem nenhuma recordação, é uma expressão da renovação eterna. Estranho que o único fato dessa renovação é a tatuagem na minha memória com o teu sorriso luminescente. Aqui não há esquecimento. Por outro lado seria ridículo dizer que me embriago da lua, pois, como o mar, nunca te toquei.

Olhando seus olhos, seus lindos olhos lunares, vejo a fertilidade do coelho guatemalteca, a fidelidade do cachorro mexicano, a velocidade e a astúcia do jaguar e da raposa peruanos. Cada mundo me ensina um aspecto das tuas possibilidades: Héstia, Diana, Selene. Buda meditou vinte e oito dias sob a árvore “bo”, um mês lunar, um ciclo perfeito do universo sob seus olhos, antes de chegar ao conhecimento perfeito dos mistérios do mundo. Eu ainda estou mareado aqui...

Na verdade eu tô enrolando demais pra falar uma coisa simples. Só queria escrever uma frase, com toda essa minha viagem e te mandar numa garrafa: “Quando tua lua cheia, minha maré sobe.”

Conto e receita: ®Ҝ

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O homem


O homem vinha com pernas apressadas do seu almoço executivo em direção ao escritório. Apenas algumas quadras a mais para ter de reapertar a gravata, o elevador e quem sabe encontrar a estagiária do sexto andar. Passou acelerando os passos por entre jovens yupies passeando em grupo, rindo olhando o céu com a mão no bolso. Fazia anos que não andava daquele modo. Era adulto, tinha prazos, horários, compromissos. Mal pôde disfarçar uma irritação talvez angustiante e provavelmente invejosa ao abrir caminho aos solavancos por entre o grupo de jovens. Eles o receberam a ombradas, cotoveladas e empurrões. Tudo na mais civilizada reciprocidade competitiva impessoal e acelerada de centro da cidade. O homem perde seu equilíbrio.

Com o chão fugindo sob seus pés, o homem abriu os braços dançando no ar qualquer malabarismo que trouxesse um ponto fixo, alavanca, âncora. Nada. O ar estava vazio quando seu pé encontrou o chão, mas da posição em que estava não bastaria apenas esticar o joelho para levantar-se. Mesmo assim o fez. De um coice firmou o pé no chão e esticou o joelho, jogando-se para o que julgava ser "acima". Bateu forte o topo da cabeça numa caixa amarela dos correios que, pensou, definitivamente não deveria estar lá.

Abriu os olhos tateando os bolsos do paletó. Com certeza não tinha ficado ali por muito tempo. Celular, carteira, chaves, tudo no lugar. Ao seu redor o jornaleiro, duas secretárias gordas de repartição e um menino de feições familiares. Ainda lembrando sua queda eo ridículo que pudesse estar passando, olhou cansado e irritadiço para o menino, que respondeu com um olhar profundo, também cansado e saiu correndo, sumindo na multidão que voltava do seu almoço. Por instantes pareceu ao homem ver o garoto passar correndo pela frente de um ônibus em movimento, simultaneamente. O ônibus passou. Sem buzina, sem estrondo, sem multidão. Apenas um solavanco breve. Era o corpo? O homem se levantou intenso, como se fosse o único a ver o claro atropelamento daquele garoto familiar. Sentiu como se mais alguns fios se tornassem brancos enquanto esticava o pescoço em curva para tentar compreender a passividade citadina daquela cena. Nada.

Deu dois passos para frente, percebendo que duas mãos o seguravam pelo sovaco, ajudando-o a se levantar: uma pequena e gorda a outra áspera e pesada. Agradeceu ao jornaleiro e a uma das secretárias e perguntou sobre o menino, a corrida, o ônibus. Todos unânimes em atravesar sua pergunta com outras ou conselhos: "O senhor está bem?", "Quer um copo d´água?", "Respire devagar" - Até que o homem girou o braço por cima da mão da secretária e esticou a mão aberta como se demonstrasse o óbvio a duas quadras. Ele caíra, o menino, provavelmente morrera: "O menino é seu neto?", "Pra onde foi?", "Estava com o senhor?" e recomeçaram indagações até aos que estavam próximos.

Zonzo e irritado o homem caminhou ajudado pelo jornaleiro e recostou-se suando, em pé, na banca. Manteve os olhos baios enquanto se perguntava em que mundo estava que preocupavam-se com ele quando um menino acabava de ser praticamente tragado por um ônibus, por aquela espécie de prédio sobre rodas que deveria ter arrombado o corpo do garoto como um aríete no meio da cidade, em plena luz do dia.

Levantou lentamente os olhos para recompor-se antes de atravessar as ruas à procura dos vestígios - não era possível que ninguém tivesse visto nada! - e, percorrendo com a vista os passos que o garoto havia dado, desviando o olhar dos saltos, sapatos, pedras portuguesas, panfletos da ritmia incessante do centro, refez o trajeto à velocidade insana mais da mente que dos olhos e achou uma mancha negra no chão, onde o garoto foi atropelado. Seus órgãos se contraíram dolorosamente no fechar dos olhos refazendo a cena. Morreu. O garoto morreu.

Correu como pôde encontrando vários pontos no tornozelo torcido, na panturrilha e na cabeça onde a dor impedia que se esquecesse do ridículo do tombo. Correu entre os ternos, tailleurs e vestidos, para o ponto negro no chão. Um ponto estranhamente.... redondo?

Aproximou-se do bueiro aberto com o peito ardendo do ar quente da cidade, da corrida, da esperança. Ajoelhou-se no meio da rua, próximo à esquina e gritou, berrou para dentro do bueiro. Ele tinha que estar ali!, pensou. Gritou mais, sentiu as lágrimas rolando sem saber a razão e abriu os braços à esquerda, em direção à calçada agora de passos atônitos, procurando alguém que ajude, um policial, uma ajuda, alguém. Viu olhos vidrados para além dele, como se o homem ali, ajoelhado na via, fosse menos importante que qualquer coisa que passasse por trás dele. Foi o tempo de sentir no corpo a vibração orgânica da buzina do segundo ônibus.

Conto e Receita: Renato Kress.

Fotografia: Caroline Poirey

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Roda da Fortuna



“Que ódio! Era você! Fui com a Marina naquela degustação, comer, conhecer e dançar no final. Só isso. Queria dançar, provar, ver gente bonita. Quase não temos nada a fazer num domingo, ainda mais chuvoso. E você... Tem pouco tempo que nos víamos sempre, que nossa vida se encontrava todos os dias por alguns anos, que eu tomava café na tua cama, deixava meus sonhos nos teus olhos antes de dormir.

Não quero falar com você, não te passei mais e-mail, não te esperei na esquina da sua casa. Parei de visitar nossos amigos em comum, fui morar longe. Até minhas coisas que deixei na tua casa eu parei de te pedir. Não quero te ver, pensar em você me dói até. Não sou idiota a ponto de cutucar feridas o tempo todo, ainda estou cansada, cansada do que vivemos. Acho que é isso.

Então entrei lá feliz, eu e Marina, comemos bem, tomei um copo horrível de cachaça – aquilo parecia álcool Pring - e um outro delicioso, era até doce. Provei macarrão, bacalhau, sushi, paella, risoto, tudo em porção “single-serving” como comida de avião. Sentei e conversei, olhei de longe quando o show começou e me empurrei no meio do povo pra chegar mais perto.

As pessoas estavam olhando um casal dançando. Daqueles que a empolgação abre passagem na noite. Procurei desatenta o casal: Vi um cara alto, cabelos claros, pele bronzeada, sambando muito com uma menina magra. Tinha gente dançando, gente sambando, mas aquele cara chamava a atenção: Tava de camisa social vinho, calça preta, elegante. Ele sambava bem, chamava a atenção, brincava com a boca na orelha dela, rodava, puxava, avançava e fugia. Cheguei mais perto, mas ainda não tinha visto o rosto. Algum frio estranho me percorria a espinha porque quase antes de encarar de frente já sabia: era você! Impossível, mas era você! Era você moreno, era você bonito, você mais forte, meu Deus, era você sambando!!! Aquele nerd, branquelo e loiro que eu namorei, aquele cara legal e quieto que nunca dançava se não fosse junto, se não fosse pouco, se não fosse meio tenso. Era você ali com gente te olhando, com gente te apontando. Porra eu tava viajando! Só podia! Meu Deus, quanto tempo ficamos sem nos ver? Seis, sete meses? Que inferno! A magricela dançava mal, mas claramente você levava ela, e você ria. Não era a nova cor da tua pele bronzeada, tuas pernas mais grossas, teu cabelo mais queimado, era aquele teu sorriso infernalmente solto, tua boca sem rachaduras do frio, teu perfume que você teve o bom senso de não trocar. Sorriso dos infernos!

Tava te odiando e me odiando quando você me viu. Você me viu e veio, quase nem pensou, com aquele sorriso aberto, abrindo os braços, me apresentou a vassoura risonha que tava do seu lado, disse qualquer nome que não me lembro, deu dois beijos e disse que eu tava ótima – que porra de elogio é esse? – piscou o olho e arrastou a girafa pra dançar. Não tive tempo, não sei o que falei, se falei. Fiquei parada. Você não me olhou mais, girava, sambava, brincava com a maldita anoréxica. Você que dizia não gostar de magras, você que dizia que eu tava sempre bem. Me vi com as mãos na cintura, pensando se deveria mesmo ter começado a beber depois que terminamos. Não sei se você fez por vingança, não sei de nada. Me senti um lixo, descartada. Tentei lembrar quem tinha terminado. Até então eu sabia, tinha sido eu, óbvio – agora não tinha certeza de nada. Eu queria ver alguma emoção nos teus olhos, qualquer coisa, arrependimento, remorso, vergonha, incerteza, eu queria você sofrendo! Você tava sambando!

Virei pro lado, Marina tentou dizer qualquer coisa que não ouvi, puxou meu braço, me viu tropeçando nas palavras. Riu de mim e eu senti meu pulso fechar pra afundar a cara dela, porque não dava pra ir lá afundar a sua assim do nada. Ela me abraçou e chamou prum canto. Incrível como as amigas sabem o que a gente sente. Mas não vou me enganar, a Marina ficou te olhando também. Desgraçada que dizia que não tínhamos nada a ver que eu era muito mais bonita que você, que eu poderia conseguir coisa melhor. De longe eu me peguei fugindo o olhar e te procurando de boca aberta, puta da vida, torta, fudida. Não era você moreno, não era tua boca lisinha, não era teu cabelo com mecha, nem o absurdo de você sambando, era o soco no estômago absurdo de ver você sorrindo!”

Era isso o que você deveria ter escrito para mim, depois do domingo, Úrsula. Não era pra rir de longe e não me olhar mais, nem era pra ter estado lá com aquele morenão alto e ricaço, sambando a noite toda na minha frente. Era só isso.

Ass: Arthur.

Conto e Receita: Renato Kress

Foto: Caroline Poirey

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Cartas Abertas - Carta 2

Um terço de TERRA, dois terços de AR {+3/4 de FOGO x 27/18 de ÁGUA}

Ontem cortei as unhas. Falava ao telefone com ela. Uma gota rubra, de um pus viscoso e quente pingou sobre o chão de taco, muito próximo ao pé prateado da mesa. Essa pasta de vida, esse líquido de mim, imprimiu da minha história um ponto por sobre a casa. Água fria, coloquei o pé na privada e dei pitadas de sal – cicatrizando ou temperando? -. Tive sono. A gota permaneceu vermelha, tensa, de uma coagulação quase carnal, sobre o chão de taco, muito próximo ao pé prateado da mesa. Era uma gota, tinta do meu corpo, corpo da minha letra em literatura e vida, como um extrato de pensa-pele por sobre meu espaço.

Hoje, menos de doze horas da gota. Está preta, nenhuma formiga veio vampirizar minha tinta, nenhum inseto, nada. Quanto tempo durará qualquer obra se meu sangue, se meu corpo e minha tinta duram menos de doze horas? O que me restará além da queratina por sobre o cérebro? Hoje a carne tem sequer vestígio donde veio a gota, hoje nem minha mãe poderia saber de qual dedo pingou a marca tão preta, carnuda e morta de hemoglobina e plaquetas por sobre o chão de taco, muito próximo ao pé prateado da mesa. E tenho medo do que estou construindo, e tenho medo do poder avassalador do tempo. Essa gota, incerteza carnal se cristalizando por sobre os meus espaços, essa bibliografia das minhas veias por sobre minha biografia em espaço, em sala, em som, essa gota que ejetou sem dor lembra a agonia da ausência de raízes.


...


Puxo o pé prateado da mesa, muito próximo à gota, agora entre o taco e a prata. Vou pro trabalho.

“Sometimes i feel that i don´t have a partner,

sometimes i feel that my only friend is the city i live in

the city of angels, lonely as i am, together we cry”

– Red Hot Chilli Peppers, Under the Bridge.

Ass: Eduardo Grinder Amos Fonseca


Receita e Conto: Renato Kress

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Cartas Abertas - Carta 1

Um terço de terra, dois terços de ar.

‘Mihi pinnas inciderant’ – me cortaram as asas – e é preciso aprender a andar.Na literatura, como ‘homme de letres’, é preciso reaprender a nadar. E o que quero, como me vejo? Não creio no homem genótipo, na carne de raiz, prefiro o Augusto lego, a personalidade construto. Lidar com escolhas não me é necessariamente brincar com a liberdade, mas flertar com a responsabilidade; tanto assusta quanto excita.

Nas tentativas de organizar – mente, família, casa, estudo, projetos – ainda a esperança de que o hábito se torne a natureza. É questão então de escolher a natureza para construir o hábito. Que sempre me fascinou o ideal grego, o ‘mens sana in corpore sano’, fibras musculares apolíneas na mente dionisíaca. Que quando menor, o ideal fora o agente secreto: culto, inteligente, malicioso, poliglota, forte, rápido, sedutor. No estereótipo a melhor defesa era o ataque. A questão do agente secreto, do Augusto ideal, esbarra na construção do hábito. Todos os dias devo malhar, ao menos uma hora e quarenta, uma hora por dia estudar italiano, rever quando possível o alemão, terminar um dia o inglês, no mínimo dois livros por semana, todos os textos da faculdade – sublinhar, fichar – as leituras complementares, jogar tarô para treinar – estudar mitologia em casa, bater o caderno no computador e escrever um artigo por semana para um periódico qualquer para ser o que me agrade.

A questão é o cansaço, desapego das tarefas, trepidação do ânimo. O ideal está sempre adiante, como farol na Ilha de Utopia, o ideal, adiante, dois passos para cada passo meu. A força necessária para transladar o sonho em projeto, meus sonhos em etapas com um fim alcançável, essa eu talvez não tenha sozinho, essa eu talvez tenha de ter, sozinho. Não quero mergulhar no Mediterrâneo ou buscar a luz, nem mastigar oxigênio, adeus ao Augusto-Ícaro, preciso de terra! Emprego, rotina, projeto que acabe, idéia concreta, amor que dure, companheirismo que se estabeleça, forma física estável, segurança, estabilidade, equilíbrio.

Hoje a alma oscila, a mente cambaleia, emoções tropeçam, corpo desaba. Mas os dias avançam, a carne trespassa os cronológicos caminhos e já não mais corto ou quebro, a descida na trajetória do herói está feita, o distanciamento, o corte, o estranhamento, toda a desconstrução está. É preciso erguer algo – como Arquimedes, para que mova minha ‘Terra’, necessito de um ponto de apoio, referência, algo sólido -, meu castelo, meu espaço dentro de mim. ‘Estamos em obras para melhor servi-lo’ seria a placa mais propícia a encontrar numa autópsia do cérebro ou coração.

Um fim-de-semana é fenomenal para colocar as pendências em dia, livros vão com cópias acumuladas da faculdade e demais questões: a angústia se vai nas letras. Nestas que desenho sobre o caderno, nas que li e as que me lambem as sinapses durante o dia, as que se lambuzam na baía de mielina.

Este corpo, espaço e angústia são meus e estranhamente não mais sinto falta dela, dessa musa, dessa idéia. Aristófanes me perdoe mas não posso sentir falta do que nunca tive, ou do que não me lembro. A quem tenha óculos cor-de-rosa esse é o melhor momento, o lapso em que se está apto a aceitar o outro, a matar o leão. A quem hasteia ceticismo é o olho-do-furacão, instante de arrumar estantes, templo zen em duração fast-food. A alma de um instante ampliado à exaustão.

Entrando num ritmo, não o celerado das multifacetadas personas do eu Augusto-lego, mas um ritmo outro, que agrade. Não o ser a cada palpitação, mas o ser desarmônico e incompleto em dois, quatro dias ou uma semana. Esse ser em lastro, ser histórico; ‘Estrela da vida inteira’. Existem momentos de tanta leveza que se pensa ter tropeçado, pela manhã, no tal ‘Manual de Instruções da Vida’ e tudo ainda tem o seu peso, mas se fez o que pode e, além disso, um bom e velho ‘que se foda’, sim, encaixa.

O zen em mim é estado, não essência. Às vezes – as piores delas – preciso flechar a essência que traga um caminho na insana bifurcação da bifurcação do atalho daquele continuum hip-hop, trance, samba de roda mnemônico.

Tem dias que só observar a beleza – de longe – é a melhor forma de (re)viver aquela felicidade que eu sei que pode ser vivida, em terceira pessoa. Noutros resvalo na leveza de espírito e a tal completude parece mais tranqüilidade estanque de pós-madrugada. A mais das vezes – como Nietzsche – todo extremo me parece patológico e, lógico, me coloco no ‘phatos’ e me embebedo. Esse mergulho no extremo tem um quê de resistência ao ritual de passagem, a esse ‘ser adulto’; ou a toda uma imagem de ‘ser adulto’ como um ‘ser tolido’ um ser aquém do limite da adolescência, recheado de novos limites – e a novidade afronta, o novo desconstrói o que era certo, o claro e óbvio, cria o instante liminar, lugar em que se chupa a alma por cada poro da fortaleza das certezas.

Ainda tenho que admitir o medo, o limite, o humano em mim. Esse desprender dos cipós do pântano – caverna, útero – tem uma certa dor, uma carne que não se ejeta – numa passagem pós-modernamente ‘clean’ esterilizada – mas que se rasga, que fere, arranca tripa, ventre, eviscera e transmuta. Mas deixa a íris oca, nada é novo porque não há carne, o oco impermeabiliza, suprime a cicatriz. É preciso aceitar a morte e a bengala. O que em mim deixa de ser para que alguns algo-outros me deixem ser. Esse mesmo que é um outro, esse ‘lux feros’ – esse portador da luz – que é Lúcifer, o desconstrutor da ordem vigente. Ser Bhrama, Vishnu e Shiva ou aceitar a responsabilidade de retirar Excalibur da pedra, arcar com seu reino, relações e deveres.

Esse desfazer-se da pedra básica de Excalibur, do todo da ‘mãe-terra’, para construir Camelot, um espaço autônomo ‘para além da antiga terra’, teu novo reino, espaço da instituição das novas regras, é o rompimento psíquico e social do umbigo, a dor e a liberdade primordial. A senha de Eros e Thanatos, onde a permissão da vida exige a aceitação da morte.

É preciso aceitar que morri para que me permita viver. Engraçado como racionalizar acaba mais paralisando o processo do que me ajudando a sair da liminaridade, da margem entre o que já não mais pode ser e o que não tem permissão ou coragem para pertencer ao novo.

Esse assumir o fraco, o ‘trágico’ do homem grego de Vernant na sua trajetória rumo à Pólis, exige assumir o fraco sem qualquer vestígio do forte, implica em mergulhar sem escafandro no lodaçal primevo das ilusões, vergonhas e desejos e reconhecer o caráter decadente da estrutura anterior, sem vislumbre da ‘Pedra fundamental’ ou qualquer tato com a nova estrutura. A essência básica da anomia de Durkheim aplicada à psique.

Nessa ‘trajetória do herói’ de Campbell, a ‘Katábasis’ – ‘descida às trevas’ – me pede uma honestidade que talvez não tenha exercitado – o espaço entre a troca de máscaras, de personas, deixa minha face à mostra e não incomoda realmente ser visto pelo outro, incomoda não reconhecer a essência, ou ter de aceitar a impureza – essa aceitação da sujeira, da baixeza, do podre, foi, quem sabe, nas poesias. O livro que sempre vêm. O livro que, fosse suficiente, não restaria a angústia. Talvez falte lançar o livro, mais uma vez a questão da finalização, da completude.

A incompletude é eterna, isso entendo nos dias, é uma imagem midiática bem-vestida, sentada de braços abertos num sofá claro, ou uma liberdade de braços abertos e lábios rasgados num sorriso de jovem mulher ciclista – aliás, como são belas as coxas da liberdade. O problema é a latência de estar eternamente a ponto de finalizar o que em mim sempre se torna infinito. Essa fantástica capacidade de encerrar tudo o que seja cotidiano, pasta de dente, escova, louça, vassoura, roupa, perfume, banho, T.V., academia etc acaba me limitando terminar o extra, o novo, o fora de padrão. É a mente que avança e estupra o trabalho da idéia antiga com o nascimento da idéia nova, essa tempestade criativa que avança em idéias, projetos novos e não estrangula os quereres velhos, só cerra a ação, a resolução. É a lâmina líquida que corta a travessia da carne, a impossibilidade física – que de tão rocha seca a medula no osso do desejo – da passagem, no ritual.

Há semanas de foco, de estreito do pensamento no que fossem as vísceras do eu – desejo, carne, amor e mitos - , espaço de mentalizar o lugar – a casa, faculdade, espaços – caminho que se recheia de entusiasmo – desse en theos, do ‘haver deus dentro de si’ – e as horas passam em cor. Mas a construção do eu, que dá as lentes e constitui o horizonte dentro donde se quebra-cabeçam as tarefas, está por fazer, está longe, líquida. É preciso manter à parede do quarto algumas máscaras que se lhe deslizem ao rosto pela manhã, nunca estar líquido, sereno, sincero. Essa vastidão do eu que me extravasa e atropela, ser esse eterno homem morrendo no próprio trabalho de parto.

A falta de regularidade, essa minha ausência de ciclo e repetição, a total liberdade que excita e trava. Esse a cada dia reinventar o café-da-manhã, organização da casa, identidade visual, esse ser o demiurgo da própria vida a cada milímetro milimétrico infinitesimal do construto na personalidade, no ambiente, nas horas, é abraçar o caos onde só um elemento pode se deitar em berço esplêndido ou urrar ‘liberdade’ enquanto lhe cortam a cabeça: a vontade. O caos não é o que eu quero, esse é o problema. Como ter a vontade além da natureza, como escolher – ter a coragem de escolher – a nova natureza que vai legar o novo hábito inspirado no velho compromisso lido pelas novas lentes?

Sinceramente não sei nem espero que saiba a resposta – a maior parte das respostas rápidas para essas questões envolvem dogmas que não me atraem – para isso acima. Só estou compartilhando a angústia de ser, ainda que um pouco tardio, humano.

Ass: Augsuto Köhner Braunbaum

Receita e Conto: Renato Kress

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Tímida


Ela era tímida. Assim dizia Ivan, aquele circunspecto cigano acampado há três semanas atrás da casa de Isabela. A Magia de verdade era tímida. Nunca pôde, em toda a história da humanidade, ser demonstrada. Era intrinsecamente pessoal, intransferível. Era engraçado que ela quisesse aprendê-la nas noites entre uma história e outra, entrevendo vultos e sorrisos enigmáticos através das labaredas da fogueira de Ivan. Seus excessos em colares, em pedras, cordões, pulseiras, moedas, amuletos, por trás da cortina de chamas mesclavam-se com as estrelas no firmamento. Talvez sua pele escura, ela não sabia, de qualquer modo o fogo a enegrecia e se fazia perder num conjunto de pequenas fulgurâncias até que toda pele desnuda do cigano era uma com a noite e seu sorriso se tornasse uma meia lua sob dois eclipses. Essas eram as noites de Isabela atrás de sua casa, no final do quintal onde havia acampado Ivan, há três semanas.

Estava determinada a ver a tal Magia. De uma infância desencantada, não queria perder a cada dia mais e mais do pouco que tivera. Por isso escondia Ivan de seus pais, dissera à mãe, mais perceptiva e desconfiada, que havia adotado um cachorrinho: “Papai não gosta de bicho, a senhora sabe.”

A cada dia uma estratégia nova para as noites das histórias de Ivan. Mamãe não poderia saber, papai nem sonhar. Com toda alma nômade derramavam-se longas horas como um feixe multicor de símbolos e significados intrincados, de lições internas independentes das histórias, de figuras loucas e sábias.

Um dia, pais e irmão fora, um rato bateu na sua janela. Feio, cisudo. Olhando fixamente nos olhos castanhos de Isabela. Um arrepio familiar percorreu sua nuca nua, suas pernas ficaram leves e trêmulas enquanto o roedor marrom escuro com um rabo pelado girava a cabeça em direção ao canto do armazém, atrás da piscina, atrás da casa de hóspedes vazia, onde se escondia seu amigo noturno. Fez o mesmo movimento uma, duas vezes. Lembrou-se de que Ivan havia dito a algumas noites: “Ela é discreta, os sinais são dados apenas as vezes necessárias para que sejam compreendidos. A dúvida faz com que ela se retraia. Simples, querida, a Magia age como o amor”. A única forma de não se questionar sobre a estranheza, não deixar que a Magia se perdesse, era ir à janela. A repugnância pelo rato lhe atrapalhava, e o pequeno percebeu, ao jogar suas costas para frente a fim de sair da cadeira onde lia, viu o rato rir (rir?) e sumir pelo parapeito correndo.

Correu à janela e olhou afoita. Nenhum sinal de nada muito diferente. Olhou com atenção para diversos pontos, nada. Pensava se não havia duvidado, se Ela não havia se contraído, envergonhada. Desceu as escadas correndo, não havia ninguém na casa a não ser Benta, a senhora que fora sua babá e, de alguma forma, sabia e não comentava sobre suas escapadas, deixava a porta dos fundos encostada com uma tartaruga de areia impedindo que batesse. Correu por ela sem nenhuma palavra, atravessou a piscina, a hortinha de sua mãe, a criação de coelhos. Surpreendeu-se de Ivan, sentado como um índio, à frente de um estranho bastão. O cigano fez com os olhos para que ela sentasse e, ao esboçar o primeiro sorriso e palavra de Isabela, repreendeu-a com o olhar, cerrando pálpebras.

Sentada em frente a Ivan aquietou-se e esperou.
- Desfoque o olhar!
- Como?
- Da próxima vez que quiser ver algo, seja da sua janela, aqui ou em qualquer lugar, desfoque o olhar. Nuble sua vista.
Isabela riu desencontrada e timidamente. “Estava me vendo?”
- Nunca ouviu sobre a história de Perseu e da Medusa?
A irritante e estranha mania de parecer sempre mudar de assunto começara.
- Medusa, sim. O outro não sei.
- Perseu foi o que cortou a cabeça dela.
- Ahn, entendi.
O cigano levantou os olhos ao nível dos olhos dela, fixamente.
- Você acha mesmo?
Aquela pergunta soava como um desafio incômodo, peso desnecessário que se poderia passar à frente:
- Não sei, me diga você.
O olhar do cigano se desviou novamente, dessa vez para o estranho bastão no chão.
- Como cortar a cabeça de algo que não se pode ver, chegar perto, olhar diretamente? Como ter habilidade, ter mira, ter foco, desfocado?
Isabela olhou intensamente para o estranho bastão à procura de uma solução rápida e óbvia, como se a direção do olhar de Ivan trouxesse em si o cerne da resposta.
- Não sei.
As mãos de Ivan se contraíram irritadiças por alguns segundos. Pareciam querer algo. Seus olhos se fixaram nos da jovem.
- Pense.
- Pelo som? Pelo cheiro?
- Boa resposta. Agora esqueça seus sentidos. Tente de novo.
Franziu as laterais da boca numa clara irritação pré-adolescente de seus 13 anos e soltou:
- Impossível. Como vou fazer sentido do mundo sem eles? O que você quer dizer? Sem cheiro, sem som, sem poder ver...
Ivan fechou novamente os olhos, fixando-os em seguida sobre a janela de Isabela por alguns instantes.
- Você sabia que seus pais não estavam em casa quando desceu correndo atrás do rato?
Sem pensar exatamente sobre como ele sabia do rato, respondeu à pergunta.
- Não vim atrás do rato, vim atrás de você.
- Tem certeza? Bem, como sabia, com absoluta certeza que seus pais não estavam em casa? Seu pai foi apenas no vizinho, hoje é sábado, poderia ter voltado já, sua mãe saiu bem de manhã com seu irmão, poderia ter voltado já. Seu quarto e o de seu irmão ficam na parte de trás do terceiro andar da casa, você não teria ouvido a porta da sala abrir, ninguém chegar. Como sabia?
Isabela estranhou, mas tentou desanuviar seus pensamentos sobre como Ivan saberia tanto do dia a dia de seus pais, movimentação pela casa, enfim:
- Sei quando meus pais estão em casa.
Um sorriso paternal se esticou pelos lábios morenos e marcados daquela figura altiva.
- Sem ver, ouvir, cheirar?
Isabela fechou os olhos e respirou fundo. Ele tinha razão. Pensou sobre o que dizer em seguida, não encontrou as palavras certas e teve um profundo suspiro desolado cortado por outra pergunta.
- Porque o rato e não o coelho?
- Como?
- Porque você viu um rato e não um coelho? Existem vários aqui e às vezes alguns fogem. Apenas quis te enviar uma mensagem e a Magia escolheu o melhor meio de te chamar a atenção. O problema é que existem poucos ratos por aqui e muitos coelhos. Então, porque um rato e não um coelho?
Isabela fitou os olhos de Ivan na mesma busca por uma resposta. O cigano fechou novamente os olhos e o dia começava a escurecer, logo algum de seus pais chegaria. Sabia que se não respondesse à pergunta não ouviria mais nada de Ivan, não era a primeira vez que isso aconteceria. Fechou seus olhos também e começou a pensar na figura de um rato. Ratos são imundos, fedorentos, feios, trazem doenças, causam nojo. Ratos proliferam rápido – como coelhos! – são roedores e mamíferos. Darwin não iria ajudar... o que um rato significa? Esfomeado, noturno, bicho infernal. Destrói as plantações daqui de casa. Uma vez minha mãe me contou a história de um deus rato indiano que destruía, trazia e também curava as doenças, era uma divindade da vingança, da eliminação. Como sobrevive? De noite, roubando tudo o que precisasse para comer, para viver. Se apossava, roubava. De repente Isabela abriu os olhos, olhou afoita para Ivan e percebeu que abriram os olhos na mesma direção, na mesma velocidade. Seus olhos estavam estranhos, de um vermelho vivo, a noite já havia caído sobre a cidade e ele elevou a mão para o céu, fazendo movimentos circulares com as pontas dos dedos sem tirar os olhos vermelhos dos olhos afoitos de uma Isabela congelada de pavor. Deslizou sobre a face um sorriso diferente, malicioso, e abriu sua boca com presas e dentes pontiagudos enquanto suas orelhas criavam um aspecto triangular e corriam para cima e para trás na cabeça:
- É assim que você me vê? Como um rato?
Isabela tremia, sentia sua coluna presa ao solo num frio lancinante por sob a blusa, com os olhos frenéticos sobre os globos vermelhos de Ivan-Rato, não pôde dizer uma palavra.
- Desfoque o olhar, nunca olhe diretamente. – Disse Ivan-Rato fazendo sinal com os olhos para que Isabela olhasse para onde ele apontava com o braço estendido para o céu em movimentos ondulares.
A menina sentiu sua nuca se repuxar para trás, seu queixo se jogar para cima e ficou vesga, olhou para muito além do que poderia enxergar. Demorou. Alguns instantes em que ela se lembrava da face horrenda de Ivan, de suas presas, de algum estranho cheiro de esgoto aberto. Alguns minutos que pareciam horas, dias. Viu um movimento negro nas nuvens cinza no céu, antes que pudesse identificar, antes que pudesse olhar diretamente (não deveria olhar diretamente!) viu outro e outro e mais outro. Três morcegos enormes pareciam estar seguindo no céu os movimentos das mãos de Ivan. Como sombras rasgando a tela cinza das nuvens próximas, eram imagens de trevas sobre sua cabeça que lhe enlouqueciam os sentidos, não os via diretamente, mas estavam lá e às vezes mudavam de cores e tamanhos, eram roxos, ocres, marrons, negros novamente e vieram baixando, baixando até passarem como um único vulto gigantesco sobre os olhos pasmos de Isabela para desaparecerem no ar quando ela, por curiosidade, tentou olhá-los diretamente. Voltou-se para Ivan que já tinha o aspecto normal, embora seu coração sobressaltado ainda insistisse em recriar a imagem das presas e orelhas triangulares no alto da cabeça. Respirou como se pela primeira vez, inspirou uma tonelada de ar até sentir dor nas pálpebras e ouviu dos olhos fechados de Ivan:
- O rato é todo seu. Eu só te mandei uma mensagem. Quero te agradecer pelos dias aqui.
Passou a mão pela cabeça de Isabela e sorriu, novamente o sorriso paternal de um rosto moreno e marcado pela idade, mas humano. Profundamente humano. Desceu os dedos pela testa da menina e, sem esperar reação, deu um forte peteleco.

Sônia acorda assustada, seu terceiro sonho como Isabela esse mês. Catadora de papel e lata, vive e trabalha numa cooperativa onde procura esperar pacientemente sua vez no mutirão para a construção de sua primeira casa. Olha com carinho para a filha Marta, dormindo como uma pedra com sua neta Isabela no ventre. “Cedo demais”, ela pensa. Separa o ursinho e bolas de golfe que encontrou numa lixeira e deu de presente à filha e sai às pressas às quatro da manhã para iniciar sua jornada nos parques e jardins da cidade até que encontra Ivo, colega de profissão, amigo e, às vezes, mais. Estava calada a manhã toda, o sol já nascia e ela não pronunciara nada além de um sorriso quando avistou Ivo.
- Que você sonhou essa noite?
- Um futuro pra minha neta.

Receita e Conto: Renato Kress
fotografia: Caroline Poirey

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Obra do Destino


Eram já cinco horas. Ainda trinta e sete graus. Horário de verão. Finalmente, o dia estava esfriando. O sol ardia sobre os ombros nus de Érika num resfolegante pedalar de bicicleta e aquela subida íngreme da casa de seu avô parecia triplicar a gravidade. Tantas flores ladeando a ladeira, aquela armadilha gravitacional, pareciam uma hipocrisia da natureza, como um sorriso e um empurrão. As lágrimas ainda raspavam por entre as reentrâncias do pequeno nariz e salgavam seus lábios. Naquele dia, somente naquele dia, o céu podia se render, respeitá-la, e chorar também. Ao menos para acariciar seus ombros.

O falecimento havia sido bruto. Esperado, consciente, ainda assim bruto. Érika lembrava-se dos filmes, das novelas onde o moribundo dizia lindas palavras ou uma frase lapidar e sensacional antes de lentamente cerrar as pálpebras ao início de alguma sinfonia -inconscientemente ainda procurava ouvir o Concerto para violino nº5 em Lá, de Mozart, aquela “musiquinha borboleteante” segundo seu avô-, ou de quando o moribundo dizia as mesmas frases e falecia gentilmente após a saída da família do quarto, da entrada lenta e respeitosa da enfermeira na sala de espera, do choro comovido. Seu avô não lhe dera nada disso: Havia telefonado do hospital para um amigo e pedido um bote, um pequeno bote. O amigo, preocupado, ligara à família dizendo que não separaria bote algum, que Hans estava louco, que precisava se cuidar. Ao desligar o telefone imediatamente ligou para a marina e mandou armar o tal bote. Ligou de volta para Hans, pedindo perdão pela traição, e pegou o carro até o hospital – precisava chegar antes da Laura. Retirou o emaranhado de veias artificiais que recobriam o peito do amigo, deitou-o sobre o banco traseiro do Vectra e seguiram para a marina. Hans faleceu no caminho.

Érika, neta única, recebera do avô as chaves da casa de Petrópolis, um retiro onde um avô meio místico e recluso, um violinista chamado Hans Ekehardt, passava, só, seus dias desde o falecimento de Hannah, sua segunda esposa. Érika mal se lembrava da segunda avó. Como um vulto roxo, lilás, vermelho ou negro, somente seus vestidos exagerados marcaram uma trajetória impressionista de movimento em cor pela casa onde esteve apenas quatro vezes, antes do falecimento do vulto avó.

A ladeira deixava vislumbrar, entre o jardim ascendente que crescia sobre a montanha, a chaminé da torre central daquele estranho casarão. Lembrava-se das histórias da mãe sobre como o avô havia sedimentado, sozinho, cada tijolo daquele castelinho, de como sua primeira avó havia falecido caindo num poço no final do jardim, acima da casa. Dos meses que seu avô passara durante todas as manhãs, no poço, da proibição de subir o jardim. Lembrava-se principalmente da sacada da torre, onde imaginava jogar suas tranças para um príncipe, naquela sacada seu avô tocava, tocava como num transe, todas as manhãs, virado para o jardim, dizia sua mãe. As histórias de quando seu avô adoecia, deixava de tocar, as flores acinzentavam, desabrochavam pequenas e secavam em três dias, ainda flutuavam como num conto de fadas sobre sua cabeça quando suas pernas avisaram que a ladeira havia terminado. Saltou da bicicleta como se o abrir da porta fosse trazer o avô a seus braços, retroceder a hera por sobre as paredes até a altura do tornozelo e presenteá-la com um abraço daquele “avô ursinho”.

A porta era pesada. Madeira maciça talhada à mão com um pequeno demônio sobre uma peônia talhada em madeira clara. A casa era recheada de imagens e segredos que não interessavam a Érika naquele momento, ela queria saber por que a mãe não poderia subir além do jardim ascendente por trás da casa. Atravessando o piano negro até o divã e a cozinha, Érika chegou à área de serviço. Gradeada. Voltou à porta e pegou o molhe de chaves. “Uma delas tem que servir”, pensava. Umas, antigas, mais grossas, sequer entrariam no orifício do gradil recente, nenhuma abria a grade. Olhou para os lados e viu um porta-chaves acima do forno à lenha. Uma única chave: Tem que ser essa! – pensou. O girar da chave travava sua respiração, liberava seus batimentos. Os pés e as mãos ficaram insensíveis, leves. Clac.

O jardim era morto, ainda assim lindo. Estendia-se por sobre uma elevação quase tão alta quanto a casa de três andares e era composto de grandes vasos quadrangulares onde o avô plantava diversas flores, agora mortas. Olhando à sua esquerda, Érika viu uma parede branca que parecia fora do lugar, não combinava com aquela paisagem lívida, pálida e seca. Sobre a parede, acima de uma prímula e uma anêmona talhadas em gesso, estavam escritas as seguintes palavras:

Érika, meu amor,
À Primeira Nota ouvirá o Rugir das Feras interiores,
O que há de Justo nem sempre segue-se ao Juízo.
Com amor, Hans.

Seria para ela? Sua primeira avó também se chamava Érika. Essa parede parecia mais recente, comparada ao resto do jardim. Mas seu avô jamais havia se denominado “Hans” a ela, e sim assinado “Vovô ursinho” em todas as poucas e esparsas cartas recheadas de estórias estranhas, enigmas, desafios mentais. Érika morava no Rio Grande do Sul com a mãe e o pai. Mas o que mais chamava a atenção eram as palavras em caixa-alta: Por quê vovô teria escrito isso assim? Seria um enigma? Bem, pensou: A “primeira nota” da escala musical é o dó, se contarmos na escala moderna, o dó corresponde à consoante “C” e a vogal “A”, se essa for a primeira nota, é o “lá”... enfim: O “Rugir das Feras”... não sei; “Justo”, pode ser justiça, retidão, direito, direita... mão direita? “Juízo”, as mesmas coisas... não sei.

Deixando a mensagem de seu avô para decifrar em outro dia, com um dicionário ou perguntando para sua mãe, Érika seguiu para os degraus do jardim, à medida em que ia subindo percebia que aquele caminho não era retilíneo, que muitas vezes precisava rodear os enormes vasos retangulares e foi percebendo uma numeração romana anacrônica dos vasos. Sem muito refletir tirou da mochila um bloco, uma caneta e uma lanterna. Ensopada de suor jogou a mochila por baixo dos quatro patamares de jardim já subidos – não precisava de mais peso – e, percorrendo em círculos, para cima e para baixo, os diversos patamares do jardim foi anotando:

Um, Salgueiro; dois, Urtiga; três, Margaridas; quatro, Violetas; cinco, Papoulas; seis, Miosótis;

Érika e sua mãe tinham uma floricultura no Sul, não era difícil reconhecer as esculturas de gesso que ladeavam os números romanos. Mas o que significaria tudo aquilo? Ao verificar que o número seis era o último, pôde sair tranqüila do labirinto de flores de seu avô subindo sempre, em direção ao poço onde sua avó teria falecido. Os enigmas e brincadeiras simbólicas de seu avô poderiam ser resolvidos noutro dia. Ao chegar no cume do jardim deparou-se com um imenso muro de uns dois metros e meio com seis entradas. Parecia que seu avô realmente não queria intrusos naquele espaço. Seis entradas...

Como havia saído, pelo modo como subiu, seguindo o caminho da numeração nos grandes vasos, quase em frente a uma das entradas, resolveu tomar essa. Percorreu uma linha reta por mais ou menos vinte metros até que dobrou à esquerda, novamente à esquerda e, logo depois de dobrar uma direita, bifurcou-se em três caminhos. Érika começava a ficar confusa e tentou subir as paredes. Lisas demais. Ao cair, escorregou sobre restos de folhas, tentou equilibrar-se puxando um galho que crescia por fora do labirinto e imediatamente ouviu um barulho engraçado, como algo mole que se quebra e lambuza ao redor. Seguiu-se um zumbido ensurdecedor sobre sua cabeça. O enxame era uma nuvem negra avançando ferozmente e suas pernas, já habituadas à pedalada e escalada no jardim, imediatamente correram o mais rápido que puderam na esperança de que também as abelhas se perdessem nas curvas e reentrâncias irritantemente idênticas. O tropeço pareceu inevitável, mas não a batida da cabeça sobre uma pequena margarida de bronze no meio do chão de um muro que a deixou inconsciente.

Pós e pós. O nariz coçava e ardia. Abriu os olhos e lembrou: labirinto, abelhas... margarida de bronze no chão? Tateou sobre as folhas no chão, ainda com o nariz ardendo de ter respirado esse estranho pó lilás e amarelo que recobria todo o chão, limpou o rosto ardido e achou a margarida de bronze. Presa no chão. Não havia como tirá-la dali. Era um marco. Retirou do bolso o bloquinho: margarida, número... III! Agora só precisava achar uma violeta no chão, no meio de outro muro. Levantou-se rápido e caiu sentada, tonta. O tal pó? Também, mas sua perna ardia muito. Picadas, pelo menos umas três. Passou a mão sobre a testa suada e estranhamente enrugada. Outras picadas. Ao levantar lentamente viu que a luz do dia não penetrava nos muros que agora tinham mais de cinco metros de altura. Pegou a lanterna e foi arrastando os pés no chão para encontrar a tal violeta. As paredes pareciam avançar e fugir dos seus dedos esticados. Andando e não achando nenhuma violeta saiu mais uma vez de frente para o jardim descendente, que agora parecia estranhamente redivivo, e a sacada, agora muito mais colorida, da torre. O céu estava totalmente púrpura. Estava zonza, encostou sobre uma parede próxima, olhou para trás, para as entradas do labirinto, passou a mão delicadamente sobre o pus que escorria pelos pequenos montes que cresciam sobre sua testa e exclamou: Que merda! O quê que eu tô fazendo aqui? Não tem comida, não tem bebida, nada! Deve estar tudo fechado a essa hora, não tem nada para essas picadas e eu tô de bicicleta no meio do nada...

Olhando adiante respaldada sobre o muro do labirinto, vendo o jardim de cima para baixo, pareceu-lhe entrever, por instantes, no desenho irregular dos vasos de flores do jardim – agora estranhamente mais coloridos – as palavras: ÁGUA NA DOBRA. Era isso! Estava louca! Aos dezesseis anos, sozinha, numa casa maluca de um avô com o qual tivera pouquíssimo contato na vida... Érika respirou fundo e, sem pensar, virou-se para o labirinto. Sentiu o pé prender em algo. Teve de abaixar muito e limpar os olhos com a blusa antes de conseguir enxergar algo. Era uma papoula de bronze. Tirou o papel do bolso: Papoula, V. Procurou a entrada que tivesse... um... salgueiro! Ótimo. Não saio daqui sem atravessar essa bosta!

Quase como se amaldiçoando o finado avô por suas picadas, pela fome e pela sede, ainda que pensando se não estava louca por ficar com as palavras ÁGUA NA DOBRA na boca e na cabeça, seguiu procurando a tal “urtiga II”. Depois de três dobras no labirinto repetindo as palavras “urtiga II” e “água na dobra”, encostou sobre uma parede e riu. “Só falta a tal urtiga não ser de bronze, ser real, aí eu sento nela e acabo o dia!” Era um riso tenso, meio desesperado. Olhando para a mão esquerda, que segurava a lanterna, viu mais uma picada de abelha e um pequeno brilho na folhagem resvalou sob o facho da lanterna, que deslizou pouco acima do chão denunciando a tal “urtiga II”. Deu um sorriso e falou consigo mesma: pelo menos isso, valeu aí em cima, ursinho. Seguiu esperançosa, e, à medida em que ia encontrando, nem sempre no chão, nem sempre perto das paredes, todos os marcos floridos, ia se sentindo mais e mais zonza, as pálpebras pesavam, o braço estava dormente, inchado, e a perna esquerda era cãibra pura. Quando olhava para o céu, agora totalmente estrelado, sentia que ia cair e dormir até amanhã, mas estava chegando no final do labirinto... uma casa!

Quase como um pequenino templo grego, a pequena casa, com colunas jônicas, teto triangular e totalmente fechada a não ser pelo portal de entrada, tinha uma imagem acima da entrada, uma réplica da Ofélia, de John Everett Millais, 1852. Ao seu redor, no sentido horário, um salgueiro, urtigas, margaridas, violetas, papoulas, miosótis! Érika deixou seus lábios escorrerem por suas bochechas inchadas de picadas ardidas e disse: Érika! Vovó!

A entrada estava selada. As chaves haviam ficado na cozinha da casa. Era preciso voltar amanhã, com tempo e luz, para testar cada chave. Ao lado da porta do mausoléu ficavam uma pequena coluna de pedras semi-preciosas e uma inscrição:

O Manto-Real, não é Mentira, está adornado com uma bela Pedra Preciosa.

Érika estava cansada dos jogos do avô, mas não havia o que fazer a não ser seguir em frente, morria de sede e algo lhe dizia que a tal “dobra” com a esperada água estava dentro do mausoléu de sua avó. Sentou-se apoiada numa coluna do pequeno templo de sua avó e, descobrindo ou talvez relembrando mais uma picada nas costas do ombro esquerdo, puxava pela memória o que seu avô pudesse ter dito alguma vez, sobre mantos reais, mentiras... adormecendo, reviveu a missa de sétimo dia da segunda avó. Seu avô, ao seu lado, lhe perguntou: sabe qual o nome desse manto que o padre usa?
- Não, vô.
– É opa!
– Opa! disse rindo e segurando a blusa negra do avô...

Acordou num susto e mais uma vez experimentou a sensação de labirintite daquele estranho pó amarelo e lilás inalado há mais de uma hora. Parecia que agora é que o efeito se sentia, claramente. Disse consigo mesma, quase vomitando: Manto-real, “opa”, mentira, “pala”, pedra preciosa: “opala”. Voltou sua atenção para as pedras na coluna e, retirando a opala com as unhas, pegou uma pequena chave, sentindo-se mais e mais zonza imprensou a chave na parede para não soltá-la e, arrastando-a até a lateral do mausoléu, esticou o braço, afastou o corpo e vomitou. Uma, duas, quatro vezes. Estranhamente parecia-lhe que ia ficando mais escuro e... lilás?... a cada nova jorrada. Estava imunda no tênis e na perna, a boca com um gosto ácido horrível, o nariz irritadíssimo a fazia embrulhar o estômago já vazio. Sentia-se limpa. Aquilo lhe deu algum ar irracional de dignidade com o qual mergulhou a chave na porta e arqueou-a para dentro do espaço recoberto de mármore branco e, qual não foi sua surpresa ao ver, dentro do mausoléu, uma pequena e cristalina queda d´água sobre um poço antigo. Ao aproximar-se percebeu um movimento, como um vulto por trás da cachoeirinha e, procurando vê-lo novamente, enxergou, quase no teto rebaixado da pequena construção, uma inscrição que dizia:

DOBRA DO DESTINO

Imediatamente, como num surto de lucidez sua mão voltou ao bolso e ao bloco, havia um pequeno lampião e fósforos sobre um nicho na parede esquerda, a lanterna foi desligada:

À Primeira Nota ouvirá o Rugir das Feras interiores.
“Dó” “Bra”mido
O que há de Justo nem sempre segue-se ao Juízo.
“Dês”tro “Tino”

“Dobra do Destino...”

Chegando mais perto da pequena queda d´água, Érika percebeu pequenos quadradinhos na parede da esquerda. Ignorando por instantes – talvez por medo, talvez por pânico – aquele vulto que passava, vez por outra, por trás da fonte, esticou a mão até um dos quadradinhos e alcançou uma foto 3x4 de uma adolescente muito parecida com ela, não fosse pelas roupas, o cabelo, o olhar pacífico, a outra era uma de uma adolescente com os cabelos e sorriso de sua mãe! O terceiro quadradinho estava vazio. Foi quando, tomada por um súbito acréscimo de consciência, Érika teve medo do vulto por trás da cachoeira. Lentamente avançando, com o lampião à frente, em direção à cachoeira, Érika viu, por trás dela, um enorme espelho e, à medida que o encarava ele lhe fornecia milhares de reflexos intercambiáveis de Érika: neta, filha, mãe, advogada, publicitária, arqueóloga, matemática, psicóloga, dentista, irmã, feliz, triste, rodeada, sozinha, gritando, calada, sorrindo, amando, gemendo, gozando, se vestindo, dormindo, andando, estranhando, reconhecendo, viajando, argumentando, comendo, maliciosa, gentil, ingênua, carente, orgulhosa, ávida, ressequida, risonha, satisfeita, brega, velha, morta...

Érika fechou os olhos. O ar saía quente e áspero por sua garganta ácida, engoliu seco ainda o gosto do vômito e franziu a testa e o rosto antes de reabrir os olhos para a interminável avalanche de imagens da dobra do destino. Esperou...: neta, filha, mãe... esperou... advogada, publicitária, arqueóloga, matemática, psicóloga, dentista... esperou... irmã, feliz, triste, rodeada, sozinha... esperou... gritando, calada, sorrindo, amando, gemendo, gozando, se vestindo... tirou o tênis, as meias, esperou... dormindo, andando, estranhando... tirou a calça e a calcinha, esperou... reconhecendo, viajando, argumentando, comendo... tirou a blusa, e o sutiã, esperou... maliciosa, gentil, ingênua, carente, orgulhosa... soltou o cabelo, esperou... ávida, ressequida, risonha... splash!


Receita e Conto: Renato Kress
Fotografia: Caroline Poirey

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Adriana


Vou negar, vou mentir. Dizer que não é nada disso, que você não entende direito e por isso pensa desse jeito. Vou negar. Ignorar que pensa diferente e te explicar que é daquele outro jeito – que é o meu – porque vou mentir mesmo e é mesmo fácil – como sempre teve sido – aceitar que o que eu digo é a fórmula comum do bom-senso entre a gente. Não que essa vida possa ser algo de maravilhoso se de repente me der a louca e eu começar a achar que você fala coisa com coisa, nem é bem disso que to falando. Ás vezes eu só quero tapar esses teus estúpidos vácuos, de expressão, de vontade, de personalidade, e ir ao cinema. Só isso. Meu caso com meu corpo é problema meu e você sempre com aquela expressão, como se eu não fosse nada mais que uma extensão da sua coxa esquerda ou umbigo. Vou mentir. Não quero mais estar nem aí se você simplesmente desaparece e te encontro mal, te encontro pelos outros, te encontro com as outras. Não vou me desligar do que acontece não. Porque eu não acho que mereça essa atitude, nem o sorrisinho e o disse-me-disse dos teus parentes. É, sei. A essa hora já estamos todos putos brigando por alguma coisa que não sabemos qual é, mas que sempre foi o outro que começou. É mais fácil assim, não é? Sinceramente não sei muito bem o que ainda faço aqui. Deve ser bem costume mesmo, acordar, fazer café, te olhar de relance com ressentimento – põe aí até uma pitada de ódio, nem sei – e ir pensando pelo dia que já demos o que tínhamos de dar, ir me perguntando quando vou parar essa merda toda e assumir um outro rumo. Enfia o sorriso no cu e roda. Parece que você acha que me falta coragem, que não saberia me entregar a outro, não é bem isso, querido. Tem duas coisas que me prendem aqui e pode ter certeza de que nenhuma delas te agradaria ouvir. Pra início de conversa – porque esse teu sorriso ta me enchendo o saco – eu não sou tua, nunca fui e nunca serei. Sou minha. A decisão de entregar meu corpo para você é momentânea e foi feita em separado a cada momento daquela cama ali. Depois disso eu volto ao zero. As melhores noites aqui foram as que passei na varanda, quando você enchia a cara, quando dormia fora. Não que eu não pudesse ser sua, é que você nunca conseguiu me fazer sua, nem uma vez. Daí eu volto a mim e repenso, a cada trepada nossa, se quero fazer isso de novo, se essa novela mexicana vale a pena. Vamos encarar? Eu adoro a vista do teu apartamento, principalmente quando você vai embora, mas você é um merda na cama. Se conheci caras melhores? Pode ter certeza. Por que não fiquei com nenhum deles? Nem tudo na vida é sexo meu caro. E se fosse não seria com você que eu ia me prender. O outro motivo de não largar você? Talvez esteja falando dele agora justamente porque já não me incomoda mais. Eu tenho um pouco de pena. Olha bem pra você. Isso, se olha no espelho mesmo. Não acha que você ta pesado, carregado de certezas superficiais como a de que no fim dessa conversa eu vou deitar naquela cama ou te perguntar se quer café, de que no fim vou deixar isso tudo pra lá e ficar feliz se achar o canário que fugiu na quinta passada? Essas tuas certezas, no começo, me deixavam puta! Eu pensava: ‘Caralho, que arrogantezinho de merda. Burguesinho escroto.’ E depois sentava na tua varanda, porque, porra, a tua vista é incrível. Eu é que tô sendo babaca? Você me fez de mãe, seu corno! Olha bem na minha cara: eu não sou tua mãe, valeu? Hoje eu tenho pena, muita pena das tuas certezas. Teu mundo é tão clean, tão transparente, tão superficial que falta vida, cara! Sabe, acho que entrei na tua porque precisava de um tempo. Ficar sem estresse por uns meses, ficar sem pagar conta, ficar sem mergulhar em preocupação, descansar. Depois voltar pra vida que dessa tua vida sem sujeira, que dessa tua vida sem segredo, onde todas as chances de algo real, podre, imundo, escondido... eu ia encher o saco cedo demais. Tinha certeza. Entrei nessa casa há mais de um ano, já deixando as roupas perto da porta – queria fugir no meio da noite e te deixar um bilhete em braile só de sacanagem, dizendo: ‘Acorda cara.’ Fui entrando pela cozinha - você nem notou que me fez entrar pela primeira vez logo pela cozinha – e vendo por onde fazia pra sair. Até que eu vi a varanda. Não que não imaginasse, pela portaria, qual era a tua vista, mas nem podia mesmo acreditar que fosse assim. Aí eu fiquei. Não digo que tô arrependida de tudo, porque a tua vista é fenomenal e porque, convivendo com você, pude perceber o quanto a minha vida faz sentido. A gente aprende por contraste, comparação, sei lá. Deve ser por isso que ninguém consegue imaginar o infinito e é justamente por isso que eu vou ficar aqui, para dar sentido pra minha vida. Agora me faz um café. – Disse Adriana em frente ao espelho, 3 minutos antes de receber Marcos, sorridente.

Receita e Conto: Renato Kress


Fotografia: Caroline Poirey

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?