segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Obra do Destino


Eram já cinco horas. Ainda trinta e sete graus. Horário de verão. Finalmente, o dia estava esfriando. O sol ardia sobre os ombros nus de Érika num resfolegante pedalar de bicicleta e aquela subida íngreme da casa de seu avô parecia triplicar a gravidade. Tantas flores ladeando a ladeira, aquela armadilha gravitacional, pareciam uma hipocrisia da natureza, como um sorriso e um empurrão. As lágrimas ainda raspavam por entre as reentrâncias do pequeno nariz e salgavam seus lábios. Naquele dia, somente naquele dia, o céu podia se render, respeitá-la, e chorar também. Ao menos para acariciar seus ombros.

O falecimento havia sido bruto. Esperado, consciente, ainda assim bruto. Érika lembrava-se dos filmes, das novelas onde o moribundo dizia lindas palavras ou uma frase lapidar e sensacional antes de lentamente cerrar as pálpebras ao início de alguma sinfonia -inconscientemente ainda procurava ouvir o Concerto para violino nº5 em Lá, de Mozart, aquela “musiquinha borboleteante” segundo seu avô-, ou de quando o moribundo dizia as mesmas frases e falecia gentilmente após a saída da família do quarto, da entrada lenta e respeitosa da enfermeira na sala de espera, do choro comovido. Seu avô não lhe dera nada disso: Havia telefonado do hospital para um amigo e pedido um bote, um pequeno bote. O amigo, preocupado, ligara à família dizendo que não separaria bote algum, que Hans estava louco, que precisava se cuidar. Ao desligar o telefone imediatamente ligou para a marina e mandou armar o tal bote. Ligou de volta para Hans, pedindo perdão pela traição, e pegou o carro até o hospital – precisava chegar antes da Laura. Retirou o emaranhado de veias artificiais que recobriam o peito do amigo, deitou-o sobre o banco traseiro do Vectra e seguiram para a marina. Hans faleceu no caminho.

Érika, neta única, recebera do avô as chaves da casa de Petrópolis, um retiro onde um avô meio místico e recluso, um violinista chamado Hans Ekehardt, passava, só, seus dias desde o falecimento de Hannah, sua segunda esposa. Érika mal se lembrava da segunda avó. Como um vulto roxo, lilás, vermelho ou negro, somente seus vestidos exagerados marcaram uma trajetória impressionista de movimento em cor pela casa onde esteve apenas quatro vezes, antes do falecimento do vulto avó.

A ladeira deixava vislumbrar, entre o jardim ascendente que crescia sobre a montanha, a chaminé da torre central daquele estranho casarão. Lembrava-se das histórias da mãe sobre como o avô havia sedimentado, sozinho, cada tijolo daquele castelinho, de como sua primeira avó havia falecido caindo num poço no final do jardim, acima da casa. Dos meses que seu avô passara durante todas as manhãs, no poço, da proibição de subir o jardim. Lembrava-se principalmente da sacada da torre, onde imaginava jogar suas tranças para um príncipe, naquela sacada seu avô tocava, tocava como num transe, todas as manhãs, virado para o jardim, dizia sua mãe. As histórias de quando seu avô adoecia, deixava de tocar, as flores acinzentavam, desabrochavam pequenas e secavam em três dias, ainda flutuavam como num conto de fadas sobre sua cabeça quando suas pernas avisaram que a ladeira havia terminado. Saltou da bicicleta como se o abrir da porta fosse trazer o avô a seus braços, retroceder a hera por sobre as paredes até a altura do tornozelo e presenteá-la com um abraço daquele “avô ursinho”.

A porta era pesada. Madeira maciça talhada à mão com um pequeno demônio sobre uma peônia talhada em madeira clara. A casa era recheada de imagens e segredos que não interessavam a Érika naquele momento, ela queria saber por que a mãe não poderia subir além do jardim ascendente por trás da casa. Atravessando o piano negro até o divã e a cozinha, Érika chegou à área de serviço. Gradeada. Voltou à porta e pegou o molhe de chaves. “Uma delas tem que servir”, pensava. Umas, antigas, mais grossas, sequer entrariam no orifício do gradil recente, nenhuma abria a grade. Olhou para os lados e viu um porta-chaves acima do forno à lenha. Uma única chave: Tem que ser essa! – pensou. O girar da chave travava sua respiração, liberava seus batimentos. Os pés e as mãos ficaram insensíveis, leves. Clac.

O jardim era morto, ainda assim lindo. Estendia-se por sobre uma elevação quase tão alta quanto a casa de três andares e era composto de grandes vasos quadrangulares onde o avô plantava diversas flores, agora mortas. Olhando à sua esquerda, Érika viu uma parede branca que parecia fora do lugar, não combinava com aquela paisagem lívida, pálida e seca. Sobre a parede, acima de uma prímula e uma anêmona talhadas em gesso, estavam escritas as seguintes palavras:

Érika, meu amor,
À Primeira Nota ouvirá o Rugir das Feras interiores,
O que há de Justo nem sempre segue-se ao Juízo.
Com amor, Hans.

Seria para ela? Sua primeira avó também se chamava Érika. Essa parede parecia mais recente, comparada ao resto do jardim. Mas seu avô jamais havia se denominado “Hans” a ela, e sim assinado “Vovô ursinho” em todas as poucas e esparsas cartas recheadas de estórias estranhas, enigmas, desafios mentais. Érika morava no Rio Grande do Sul com a mãe e o pai. Mas o que mais chamava a atenção eram as palavras em caixa-alta: Por quê vovô teria escrito isso assim? Seria um enigma? Bem, pensou: A “primeira nota” da escala musical é o dó, se contarmos na escala moderna, o dó corresponde à consoante “C” e a vogal “A”, se essa for a primeira nota, é o “lá”... enfim: O “Rugir das Feras”... não sei; “Justo”, pode ser justiça, retidão, direito, direita... mão direita? “Juízo”, as mesmas coisas... não sei.

Deixando a mensagem de seu avô para decifrar em outro dia, com um dicionário ou perguntando para sua mãe, Érika seguiu para os degraus do jardim, à medida em que ia subindo percebia que aquele caminho não era retilíneo, que muitas vezes precisava rodear os enormes vasos retangulares e foi percebendo uma numeração romana anacrônica dos vasos. Sem muito refletir tirou da mochila um bloco, uma caneta e uma lanterna. Ensopada de suor jogou a mochila por baixo dos quatro patamares de jardim já subidos – não precisava de mais peso – e, percorrendo em círculos, para cima e para baixo, os diversos patamares do jardim foi anotando:

Um, Salgueiro; dois, Urtiga; três, Margaridas; quatro, Violetas; cinco, Papoulas; seis, Miosótis;

Érika e sua mãe tinham uma floricultura no Sul, não era difícil reconhecer as esculturas de gesso que ladeavam os números romanos. Mas o que significaria tudo aquilo? Ao verificar que o número seis era o último, pôde sair tranqüila do labirinto de flores de seu avô subindo sempre, em direção ao poço onde sua avó teria falecido. Os enigmas e brincadeiras simbólicas de seu avô poderiam ser resolvidos noutro dia. Ao chegar no cume do jardim deparou-se com um imenso muro de uns dois metros e meio com seis entradas. Parecia que seu avô realmente não queria intrusos naquele espaço. Seis entradas...

Como havia saído, pelo modo como subiu, seguindo o caminho da numeração nos grandes vasos, quase em frente a uma das entradas, resolveu tomar essa. Percorreu uma linha reta por mais ou menos vinte metros até que dobrou à esquerda, novamente à esquerda e, logo depois de dobrar uma direita, bifurcou-se em três caminhos. Érika começava a ficar confusa e tentou subir as paredes. Lisas demais. Ao cair, escorregou sobre restos de folhas, tentou equilibrar-se puxando um galho que crescia por fora do labirinto e imediatamente ouviu um barulho engraçado, como algo mole que se quebra e lambuza ao redor. Seguiu-se um zumbido ensurdecedor sobre sua cabeça. O enxame era uma nuvem negra avançando ferozmente e suas pernas, já habituadas à pedalada e escalada no jardim, imediatamente correram o mais rápido que puderam na esperança de que também as abelhas se perdessem nas curvas e reentrâncias irritantemente idênticas. O tropeço pareceu inevitável, mas não a batida da cabeça sobre uma pequena margarida de bronze no meio do chão de um muro que a deixou inconsciente.

Pós e pós. O nariz coçava e ardia. Abriu os olhos e lembrou: labirinto, abelhas... margarida de bronze no chão? Tateou sobre as folhas no chão, ainda com o nariz ardendo de ter respirado esse estranho pó lilás e amarelo que recobria todo o chão, limpou o rosto ardido e achou a margarida de bronze. Presa no chão. Não havia como tirá-la dali. Era um marco. Retirou do bolso o bloquinho: margarida, número... III! Agora só precisava achar uma violeta no chão, no meio de outro muro. Levantou-se rápido e caiu sentada, tonta. O tal pó? Também, mas sua perna ardia muito. Picadas, pelo menos umas três. Passou a mão sobre a testa suada e estranhamente enrugada. Outras picadas. Ao levantar lentamente viu que a luz do dia não penetrava nos muros que agora tinham mais de cinco metros de altura. Pegou a lanterna e foi arrastando os pés no chão para encontrar a tal violeta. As paredes pareciam avançar e fugir dos seus dedos esticados. Andando e não achando nenhuma violeta saiu mais uma vez de frente para o jardim descendente, que agora parecia estranhamente redivivo, e a sacada, agora muito mais colorida, da torre. O céu estava totalmente púrpura. Estava zonza, encostou sobre uma parede próxima, olhou para trás, para as entradas do labirinto, passou a mão delicadamente sobre o pus que escorria pelos pequenos montes que cresciam sobre sua testa e exclamou: Que merda! O quê que eu tô fazendo aqui? Não tem comida, não tem bebida, nada! Deve estar tudo fechado a essa hora, não tem nada para essas picadas e eu tô de bicicleta no meio do nada...

Olhando adiante respaldada sobre o muro do labirinto, vendo o jardim de cima para baixo, pareceu-lhe entrever, por instantes, no desenho irregular dos vasos de flores do jardim – agora estranhamente mais coloridos – as palavras: ÁGUA NA DOBRA. Era isso! Estava louca! Aos dezesseis anos, sozinha, numa casa maluca de um avô com o qual tivera pouquíssimo contato na vida... Érika respirou fundo e, sem pensar, virou-se para o labirinto. Sentiu o pé prender em algo. Teve de abaixar muito e limpar os olhos com a blusa antes de conseguir enxergar algo. Era uma papoula de bronze. Tirou o papel do bolso: Papoula, V. Procurou a entrada que tivesse... um... salgueiro! Ótimo. Não saio daqui sem atravessar essa bosta!

Quase como se amaldiçoando o finado avô por suas picadas, pela fome e pela sede, ainda que pensando se não estava louca por ficar com as palavras ÁGUA NA DOBRA na boca e na cabeça, seguiu procurando a tal “urtiga II”. Depois de três dobras no labirinto repetindo as palavras “urtiga II” e “água na dobra”, encostou sobre uma parede e riu. “Só falta a tal urtiga não ser de bronze, ser real, aí eu sento nela e acabo o dia!” Era um riso tenso, meio desesperado. Olhando para a mão esquerda, que segurava a lanterna, viu mais uma picada de abelha e um pequeno brilho na folhagem resvalou sob o facho da lanterna, que deslizou pouco acima do chão denunciando a tal “urtiga II”. Deu um sorriso e falou consigo mesma: pelo menos isso, valeu aí em cima, ursinho. Seguiu esperançosa, e, à medida em que ia encontrando, nem sempre no chão, nem sempre perto das paredes, todos os marcos floridos, ia se sentindo mais e mais zonza, as pálpebras pesavam, o braço estava dormente, inchado, e a perna esquerda era cãibra pura. Quando olhava para o céu, agora totalmente estrelado, sentia que ia cair e dormir até amanhã, mas estava chegando no final do labirinto... uma casa!

Quase como um pequenino templo grego, a pequena casa, com colunas jônicas, teto triangular e totalmente fechada a não ser pelo portal de entrada, tinha uma imagem acima da entrada, uma réplica da Ofélia, de John Everett Millais, 1852. Ao seu redor, no sentido horário, um salgueiro, urtigas, margaridas, violetas, papoulas, miosótis! Érika deixou seus lábios escorrerem por suas bochechas inchadas de picadas ardidas e disse: Érika! Vovó!

A entrada estava selada. As chaves haviam ficado na cozinha da casa. Era preciso voltar amanhã, com tempo e luz, para testar cada chave. Ao lado da porta do mausoléu ficavam uma pequena coluna de pedras semi-preciosas e uma inscrição:

O Manto-Real, não é Mentira, está adornado com uma bela Pedra Preciosa.

Érika estava cansada dos jogos do avô, mas não havia o que fazer a não ser seguir em frente, morria de sede e algo lhe dizia que a tal “dobra” com a esperada água estava dentro do mausoléu de sua avó. Sentou-se apoiada numa coluna do pequeno templo de sua avó e, descobrindo ou talvez relembrando mais uma picada nas costas do ombro esquerdo, puxava pela memória o que seu avô pudesse ter dito alguma vez, sobre mantos reais, mentiras... adormecendo, reviveu a missa de sétimo dia da segunda avó. Seu avô, ao seu lado, lhe perguntou: sabe qual o nome desse manto que o padre usa?
- Não, vô.
– É opa!
– Opa! disse rindo e segurando a blusa negra do avô...

Acordou num susto e mais uma vez experimentou a sensação de labirintite daquele estranho pó amarelo e lilás inalado há mais de uma hora. Parecia que agora é que o efeito se sentia, claramente. Disse consigo mesma, quase vomitando: Manto-real, “opa”, mentira, “pala”, pedra preciosa: “opala”. Voltou sua atenção para as pedras na coluna e, retirando a opala com as unhas, pegou uma pequena chave, sentindo-se mais e mais zonza imprensou a chave na parede para não soltá-la e, arrastando-a até a lateral do mausoléu, esticou o braço, afastou o corpo e vomitou. Uma, duas, quatro vezes. Estranhamente parecia-lhe que ia ficando mais escuro e... lilás?... a cada nova jorrada. Estava imunda no tênis e na perna, a boca com um gosto ácido horrível, o nariz irritadíssimo a fazia embrulhar o estômago já vazio. Sentia-se limpa. Aquilo lhe deu algum ar irracional de dignidade com o qual mergulhou a chave na porta e arqueou-a para dentro do espaço recoberto de mármore branco e, qual não foi sua surpresa ao ver, dentro do mausoléu, uma pequena e cristalina queda d´água sobre um poço antigo. Ao aproximar-se percebeu um movimento, como um vulto por trás da cachoeirinha e, procurando vê-lo novamente, enxergou, quase no teto rebaixado da pequena construção, uma inscrição que dizia:

DOBRA DO DESTINO

Imediatamente, como num surto de lucidez sua mão voltou ao bolso e ao bloco, havia um pequeno lampião e fósforos sobre um nicho na parede esquerda, a lanterna foi desligada:

À Primeira Nota ouvirá o Rugir das Feras interiores.
“Dó” “Bra”mido
O que há de Justo nem sempre segue-se ao Juízo.
“Dês”tro “Tino”

“Dobra do Destino...”

Chegando mais perto da pequena queda d´água, Érika percebeu pequenos quadradinhos na parede da esquerda. Ignorando por instantes – talvez por medo, talvez por pânico – aquele vulto que passava, vez por outra, por trás da fonte, esticou a mão até um dos quadradinhos e alcançou uma foto 3x4 de uma adolescente muito parecida com ela, não fosse pelas roupas, o cabelo, o olhar pacífico, a outra era uma de uma adolescente com os cabelos e sorriso de sua mãe! O terceiro quadradinho estava vazio. Foi quando, tomada por um súbito acréscimo de consciência, Érika teve medo do vulto por trás da cachoeira. Lentamente avançando, com o lampião à frente, em direção à cachoeira, Érika viu, por trás dela, um enorme espelho e, à medida que o encarava ele lhe fornecia milhares de reflexos intercambiáveis de Érika: neta, filha, mãe, advogada, publicitária, arqueóloga, matemática, psicóloga, dentista, irmã, feliz, triste, rodeada, sozinha, gritando, calada, sorrindo, amando, gemendo, gozando, se vestindo, dormindo, andando, estranhando, reconhecendo, viajando, argumentando, comendo, maliciosa, gentil, ingênua, carente, orgulhosa, ávida, ressequida, risonha, satisfeita, brega, velha, morta...

Érika fechou os olhos. O ar saía quente e áspero por sua garganta ácida, engoliu seco ainda o gosto do vômito e franziu a testa e o rosto antes de reabrir os olhos para a interminável avalanche de imagens da dobra do destino. Esperou...: neta, filha, mãe... esperou... advogada, publicitária, arqueóloga, matemática, psicóloga, dentista... esperou... irmã, feliz, triste, rodeada, sozinha... esperou... gritando, calada, sorrindo, amando, gemendo, gozando, se vestindo... tirou o tênis, as meias, esperou... dormindo, andando, estranhando... tirou a calça e a calcinha, esperou... reconhecendo, viajando, argumentando, comendo... tirou a blusa, e o sutiã, esperou... maliciosa, gentil, ingênua, carente, orgulhosa... soltou o cabelo, esperou... ávida, ressequida, risonha... splash!


Receita e Conto: Renato Kress
Fotografia: Caroline Poirey

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Adriana


Vou negar, vou mentir. Dizer que não é nada disso, que você não entende direito e por isso pensa desse jeito. Vou negar. Ignorar que pensa diferente e te explicar que é daquele outro jeito – que é o meu – porque vou mentir mesmo e é mesmo fácil – como sempre teve sido – aceitar que o que eu digo é a fórmula comum do bom-senso entre a gente. Não que essa vida possa ser algo de maravilhoso se de repente me der a louca e eu começar a achar que você fala coisa com coisa, nem é bem disso que to falando. Ás vezes eu só quero tapar esses teus estúpidos vácuos, de expressão, de vontade, de personalidade, e ir ao cinema. Só isso. Meu caso com meu corpo é problema meu e você sempre com aquela expressão, como se eu não fosse nada mais que uma extensão da sua coxa esquerda ou umbigo. Vou mentir. Não quero mais estar nem aí se você simplesmente desaparece e te encontro mal, te encontro pelos outros, te encontro com as outras. Não vou me desligar do que acontece não. Porque eu não acho que mereça essa atitude, nem o sorrisinho e o disse-me-disse dos teus parentes. É, sei. A essa hora já estamos todos putos brigando por alguma coisa que não sabemos qual é, mas que sempre foi o outro que começou. É mais fácil assim, não é? Sinceramente não sei muito bem o que ainda faço aqui. Deve ser bem costume mesmo, acordar, fazer café, te olhar de relance com ressentimento – põe aí até uma pitada de ódio, nem sei – e ir pensando pelo dia que já demos o que tínhamos de dar, ir me perguntando quando vou parar essa merda toda e assumir um outro rumo. Enfia o sorriso no cu e roda. Parece que você acha que me falta coragem, que não saberia me entregar a outro, não é bem isso, querido. Tem duas coisas que me prendem aqui e pode ter certeza de que nenhuma delas te agradaria ouvir. Pra início de conversa – porque esse teu sorriso ta me enchendo o saco – eu não sou tua, nunca fui e nunca serei. Sou minha. A decisão de entregar meu corpo para você é momentânea e foi feita em separado a cada momento daquela cama ali. Depois disso eu volto ao zero. As melhores noites aqui foram as que passei na varanda, quando você enchia a cara, quando dormia fora. Não que eu não pudesse ser sua, é que você nunca conseguiu me fazer sua, nem uma vez. Daí eu volto a mim e repenso, a cada trepada nossa, se quero fazer isso de novo, se essa novela mexicana vale a pena. Vamos encarar? Eu adoro a vista do teu apartamento, principalmente quando você vai embora, mas você é um merda na cama. Se conheci caras melhores? Pode ter certeza. Por que não fiquei com nenhum deles? Nem tudo na vida é sexo meu caro. E se fosse não seria com você que eu ia me prender. O outro motivo de não largar você? Talvez esteja falando dele agora justamente porque já não me incomoda mais. Eu tenho um pouco de pena. Olha bem pra você. Isso, se olha no espelho mesmo. Não acha que você ta pesado, carregado de certezas superficiais como a de que no fim dessa conversa eu vou deitar naquela cama ou te perguntar se quer café, de que no fim vou deixar isso tudo pra lá e ficar feliz se achar o canário que fugiu na quinta passada? Essas tuas certezas, no começo, me deixavam puta! Eu pensava: ‘Caralho, que arrogantezinho de merda. Burguesinho escroto.’ E depois sentava na tua varanda, porque, porra, a tua vista é incrível. Eu é que tô sendo babaca? Você me fez de mãe, seu corno! Olha bem na minha cara: eu não sou tua mãe, valeu? Hoje eu tenho pena, muita pena das tuas certezas. Teu mundo é tão clean, tão transparente, tão superficial que falta vida, cara! Sabe, acho que entrei na tua porque precisava de um tempo. Ficar sem estresse por uns meses, ficar sem pagar conta, ficar sem mergulhar em preocupação, descansar. Depois voltar pra vida que dessa tua vida sem sujeira, que dessa tua vida sem segredo, onde todas as chances de algo real, podre, imundo, escondido... eu ia encher o saco cedo demais. Tinha certeza. Entrei nessa casa há mais de um ano, já deixando as roupas perto da porta – queria fugir no meio da noite e te deixar um bilhete em braile só de sacanagem, dizendo: ‘Acorda cara.’ Fui entrando pela cozinha - você nem notou que me fez entrar pela primeira vez logo pela cozinha – e vendo por onde fazia pra sair. Até que eu vi a varanda. Não que não imaginasse, pela portaria, qual era a tua vista, mas nem podia mesmo acreditar que fosse assim. Aí eu fiquei. Não digo que tô arrependida de tudo, porque a tua vista é fenomenal e porque, convivendo com você, pude perceber o quanto a minha vida faz sentido. A gente aprende por contraste, comparação, sei lá. Deve ser por isso que ninguém consegue imaginar o infinito e é justamente por isso que eu vou ficar aqui, para dar sentido pra minha vida. Agora me faz um café. – Disse Adriana em frente ao espelho, 3 minutos antes de receber Marcos, sorridente.

Receita e Conto: Renato Kress


Fotografia: Caroline Poirey

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?