quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Em revista


Ridículos, ridículos os sonhos alheios. Era o que ele pensava. Sentado no metrô pela primeira vez em 30 anos voltando da Pavuna. Sentado de costas. Ao seu lado sentava uma mulata, com as feições finas, nariz pequeno, deveria ter algo de europeu em algum galho do caldeirão genético que desse aqueles olhos pequenos e castanho claros. Ela lia uma revista de moda que ele não pôde identificar, se deteve sobre uma página qualquer que falava de pechinchas no vestuário, como a bota que uma tal modelo da moda - Rachel Zimmermman, ele achou o nome engraçado e decorou porque conhecia um Thiago Zimmermman dos tempos de escola - havia encontrado num brechó em Paris. Sim, ótimo, mas quando aquela moça iria a Paris? Como são ridículos os sonhos alheios.

Ela degustava as roupas, o sorriso, o caimento, cortes e até a costura externa grossa e aparente da calça de couro da modelo. Tudo que ele achava completamente ridículo e, além de esteticamente decadente, mais um artifício imbecil de uma indústria que vive de cobrir a vacuidade alheia. Ela se deliciava com aquela revista. Era de se imaginar que tivesse mais de quarenta delas em casa, ensinando qual o batom vai com qual blusa, quais as tendências daquela estação, a cada três números falando sobre como o preto emagrece e tudo o mais. Porque ser magra não é moda, é lei.

Foi quando ele viu os muros que cercavam os trilhos do metrô. Em alguns pontos tão altos que ia sumindo o pouco que sobrava de um filete de céu azul, em outros mais baixo, mas quando baixo demais, encimados por arames farpados. Algo ali lhe lembrava as imagens de um campo de concentração, talvez fossem as faíscas da eletricidade que brilhavam como um flash - os "paparazzi" da mulata, ironizou - quando o metrô da linha 2 passava por uma curva acentuada.

De repente um senhor que deveria ter seus sessenta para setenta anos - e que ele lembrava de ter reclamado muito logo no início da viagem com dois passageiros e um menino que parecia ser seu neto, para não sentar, com qualquer ar meio arisco de orgulho ferido - começou a dobrar os joelhos e, se agarrando na barra vertical no centro do carro do metrô, fez um movimento em curva enquanto sua mão permanecia firme e seu corpo ganhava velocidade em direção ao chão. Foi uma cabeçada magistral, com direito a quique e tudo. Todos se levantaram, inclusive a mulata. Por alguns instantes o homem sentado perdeu-se nas curvas das coxas dela antes de se ver obrigado a levantar também, mesmo que pensasse que nessas situações a multidão mais atrapalhava que qualquer outra coisa, não suportava a pressão, a recriminação dos olhares alheios.

Todos se adiantaram em direção ao velho, cuja cabeça jazia no chão onde o neto ajoelhara e, se segurando no bolso da camisa do avô, começava a sacudir e chamar com um sotaque indiscernível pelo senhor desacordado. A mulata se adiantou em tom autoritário a todos que não tocassem no senhor, agachou com a mão por trás do pescoço meio torto e inclinou-o com a cabeça pra cima, escorando levemente por trás e procurando por ferimentos. Um pouco de sangue saiu por entre aqueles dedos delicados e ela simplesmente olhou para o menino com algo entre pena e seriedade.

- Seu avô só desmaiou. Está tudo bem. Na próxima estação vamos levá-lo para fora e...
- Non capisco. Cosa a sucesso? - Retrucou o menino com os olhos arregalados e a bochecha salpicada de sardas.
A mulher olhou para os lados, esperando que a próxima estação chegasse logo, respirou fundo e disse:
- Non hanno bisogno di essere preoccupati. Sono una dotoressa. Era solo una lieve commozione nella testa. Il suo nonno avevo perso pressione ed era crollato. Nient'altro.


À boca do homem que sentava ao lado dela adicionou-se uma gravidade tal que seu maxilar parecia pesar uma tonelada e seus olhos quase saltaram das órbitas enquanto ela virou-se para ele e disse: - O senhor vai ajudar ou só levantou pra terminar de ler a minha revista?

Conto e Receita: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?