segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A morte dos Magos (como nasce uma religião)

As histórias, em geral, são escritas pelos vencedores. Por um motivo simples: em geral são os que saem vivos dela.

O primeiro dos três grandes impérios a sentir a influência do Zoroastrismo - a religião de Zoroástro ou Zaratustra - foi o dos aquemêmidas, que governou a região do Irã no início do século VII a.C. até a conquista por Alexandre em 331 a.C., com um território que se estendia desde o Egito e a Turquia até o Paquistão. A terra natal dos aquemênidas era "Fars" (Pérsia), no Irã sul-ocidental, onde se encontravam Susa, capital administrativa, e Persépolis, a grande cidade-residência do soberano.

Grandes rivais dos gregos, que os derrotaram em Maratona (490 a.C.) e Salamina (480 a.C.), os aquemêmidas - ou Persas - adoravam tanto Ahura Mazda "que fez o céu, fez a terra, fez os mortais, fez a felicidade para os mortais e fez Dario rei" como dizia uma inscrição em Behistun, quanto outras divindades. Os textos do Avesta não podem ser datados, o que dificulta muita coisa na reconstrução dessa história, mas existe um episódio muito interessante, que fala sobre o nascimento das grandes religiões monoteístas, como o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Na sua ascensão, o culto zoroastriano teve de conviver com a antiga fé politeísta de matriz indo-iraniana, confiada a sacerdotes conhecidos como Magoi, ou magos.

Os Magoi eram sacerdotes politeístas que acreditavam que todas as divindades de seu panteão existiam dentro de si mesmos e de cada cidadão do império aquemênida. Dentro de sua crença essas divindades poderiam ser invocadas em momentos específicos para a cura de uma enfermidade mental, física ou espiritual, para conceder forças e coragem na guerra, para melhorar as relações entre os fiéis etc. Da mesma forma existiam magois especializados em determinada divindade e a exercer o culto a ela, como os Magoi de Mithra "deus ancião", de Angra Mainyiu "o espírito do Mal", ou Zurwan "deus do tempo". Os Magoi, como classe, operavam curas que respeitavam a uma lógica interna que poderíamos denominar de "equilíbrio dinâmico": o excesso de passividade era curado exercitando-se a divindade agressiva dentro de si, o oposto para o excesso de agressividade, a intempestividade da adolescência era curada exercitando a observação refletida do deus ancião etc. A noção de equilíbrio dinâmico permeava sua religião, como sua política, sua colheita, relações familiares e sociais.

Os zoroastrianos, embora não o reconhecessem, eram uma seita dentro dos magoi, que acreditavam que Ahura Mazda - uma dentre as várias divindades do panteão dos magoi - possuia um estatuto maior que os demais, era mais poderoso, mais digno de reverência e adoração. Em prol dessa crença e, submetidos aos ditames dos magoi, eles convenceram o imperador Ardashir a convocar uma assembléia onde os magói e os zoroastrianos discutiriam formas de mesclar suas crenças para que o povo não ficasse dividido, o que enfraqueceria a todo o império aquemênida. Temendo a rápida ascensão dos zoroastrianos, os sacerdotes magoi, a princípio, recusaram essa assembléia, mas, como os zoroastrianos ergueram estátuas de todas as demais divindades às portas de Persépolis - como sinal de amizade e confraternização - os magoi enfim cederam.

Tudo naquele "concílio" era simbólico. Os magói caminhavam à esquerda enquanto os zoroastrianos à direita em duas filas indianas que contornavam o trono de Ardashir. O imperador abençoou a união daquelas ordens religiosas e indicou a sala onde o concílio, marcado para durar um ciclo lunar inteiro, deveria ocorrer. A sala representava o território do imperador, toda a vasta região dominada por Ardashir. Cores diferentes em tapeçarias diferentes simbolizavam cada uma das importantes cidades, territórios, províncias e domínios. Os móveis e tapeçarias continham um forte aroma de Sândalo e especiarias, tão forte que chegou mesmo a enjoar muitos dos sacerdotes ali presentes. Como os Magoi foram os primeiros dentro do território, seus sacerdotes, com seus chapéus pentangulares, suas vestes lilases e púrpuras, suas sandálias trabalhadas em couro fino, também foram os primeiros a entrar na sala, em fila indiana, em silêncio. Sentiam-se honrados em entrar primeiro, era seu direito simbólico e santo ocupar primeiro aquela terra representada na sala. Em silêncio aguardaram até que o último magoi entrasse naquele enorme aposento perfumado. O cair da tarde se verificava pela abóbada aberta no alto, espaço livre para as divindades celestiais entrarem em contato com as terrenas.

À entrada do último e mais novo dos sacerdotes magoi, a sala foi trancada abruptamente e a estátua de bronze de Angra Mainyu usada como tranca. Do alto dos sete metros de altura da sala caíram, em sequência, uma a uma das cinquenta estátuas de mais de dois metros de altura de cada uma das divindades que haviam sido postas à entrada de Persépolis. Alguns sacerdotes correram para os cantos da sala hexagonal desesperados, gritando pelas paredes vazadas, trabalhadas em flores e motivos religiosos: foram mortos a golpes das lanças que atravessavam as frestas das paredes. Os poucos sacerdotes que tiveram forças e reflexos para não serem esmagados pela chuva de granito, mármore e ouro e se reuniram no centro da sala, única área onde as estátuas não podiam atingir, visto que eram arremessadas de uma grande área circular do teto abobadado, perceberam uma luz forte sobre suas cabeças - que chegaram, por segundos, a compreender como a resposta às suas preces - quando várias flechas incandescentes penetravam o salão embebido em álcool e éter disfarçado pelo cheiro das especiarias.

A nova religião monoteísta permitiu regras de conduta mais estreitas, onde o império de Ardashir pôde militarizar e dominar novas regiões. Reza a lenda que Irineu um dos principais teólogos da Igreja Católica, nascido em Esmirna (Turquia) viveu anos com essa lenda na mente e concebeu formas de adequá-la aos seus interesses no Concílio de Nicéia - primeiro concílio cristão.

Conto e Receita: Renato Kress

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Cartas de amor




Hoje eu escrevi mais uma carta na areia. Queria que chovesse. Deviam estar uns 40 graus. E talvez ela soubesse da carta. O que me deixou rubro. Não sei onde foram as sementes. Eu as trouxe para plantá-las aqui. Onde morram. Nada nasce da desolação desse deserto. Talvez seja onde eu consiga parir certas letras, nem tudo é tão doce como outrora. Há um monstro vil lá fora, tão minuciosamente sádico e umbralino que só pôde visitar-me após todos os seus filhos, desgraças do mundo, terem preenchido o vácuo de perfeição que assolara o planeta, o apocalipse no fim da caixa de Pandora, a esperança. Gota amarga de memória cauterizando eternamente a ferida, o membro decepado, a inexpressividade cáustica da sub-vida cotidiana. Lenta morte irônica e lânguida, fascinando auroras, rasgando pores de sol sob uma cortina de lágrimas. Lágrimas e sementes sobre um solo inútil, sobre uma carta de areia ao vento, à decomposição da memória, das histórias, do amor.

Conto e Receita: Renato Kress

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?