sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O Anel


Olá, boa noite. O Narrador de uma história pode ter o poder que quiser. Pode ser onisciente mas afastado, como um Úranos - aquele inerte Deus-avô que a mitologia católica nos manda ignorar -, pode ser um deus de destruição em massa, hiperativo, vingativo e excludente como um Yavé, pode ser uma senhora acolhedora e matriarcal com seus filhos-personagens e ter umas mudanças de humor dignas de TPM´s homéricas como uma Gaia, ou um grande brincalhão cósmico-universal como um Loki ou um Hermes, que não só jogam dados com o universo como fazem ele cair embaixo do sofá e inventam os resultados.

Na história de hoje nosso demiurgo está feliz. Cansado de ouvir críticas de sua divina esposa sobre o machismo imperando no planeta Terra, resolveu dar um dia inteiro (do acordar ao dormir, não 24hrs, ok?) perfeito para uma mulher e moveu uns pauzinhos. Carla é uma jovem de 31 anos, solteira, com uma filha mimada de 7, e que mora com a mãe, uma senhora levemente surda, em um apartamento na Tijuca. Cumpri minha obrigação da introdução, professoras de literatura do sistema solar? Então creio que podemos começar a história agora.

Nas Mil e Uma Noites, história da literatura fantástica árabe que reúne em coletânea todos os contos e lendas folclóricas de uma vasta área do Oriente Médio, temos a história de Aladim e sua lâmpada maravilhosa, mágica, transcedental, incrível etc etc. Quase todos conhecem a história: uma esfregadinha, um desejo e "puf" (fumacinha que facilita os três marmanjos que arrastam o elefante pintado de rosa até a frente das câmeras)! Basicamente isso. Mas quem não leu a história "oficial" não tem obrigação de saber que havia um outro elemento mágico além da Lâmpada: um anel. Pois é, o gênio do anel - sim, o anel também tinha um gênio! não era um duende, fada, nem um leprechaun... - era mais "fraco" que o da lâmpada, incapaz de fazer malabarismos mágicos de nível hollywoodiano - como deixar todos os abdômens de Esparta engomadinhos ou conseguir que Nick Nolte interprete bem bêbado - mas conseguia realizar seus pequenos absurdos pontuais.

Como demiurgo oficial vou poupar-me o trabalho de explicar como o anel, das mãos de um magnata do petróleo de férias em Mykonos, foi parar no Egito e, de lá, um marido ciumento que não compreendia os presentes que a mulher lhe dava, livrou-se do anel jogando-o no mar, onde um peixe o engoliu e foi engolido por outro que por sua vez.... entendeu?

Pois bem: Carla comia peixe da associação dos pescadores de Copacabana, alí, pertinho do forte naquele domingo. (Lembrem-se do que eu disse: o narrador pode tudo e, além do mais, o demiurgo em questão estava feliz e tal... facilitou as ondas, alegrou uns surfistas no caminho... e... sim! Carla comia uma baleia! Mas fiquem tranquilos, ela dividiu com a filha!)

Uma carinha enrugada de menina descontente com os cabelos secando na frente do rosto solta:
- Manhêêê, tem um osso no meu filé de baleia!
- Cospe filha. Que foi? Machucou o dente? Mordeu o osso?

A menina cuspiu fora um anel de ouro branco com um rubi de cinco pontos cravejado sobre ele. E era lindo, delicado.

Carla imediatamente, com grande e legítima preocupação que o calor do sol sobre o metal naquela mãozinha pequenina pudesse queimar sua querida filha, pegou o anel com a delicadeza de um mastodonte e a velocidade de um bote de uma naja.
- Dá isso aqui! Tira a mão, tira, ti...

Com a graça de um orangotango de cartola ela levantou a filha pelos braços puxando o anel até que a chatinha largasse o conjunto anel-mãe e ficasse com a bundinha à milanesa. A menininha correu dando piti até o mar e agachou nas ondas, somente para ouvir de um pescador que "Aí não pode, minha filha"!

Incrível como o anel coube perfeitamente no dedo de Carla, foi o que ela pensava enquanto olhava fixamente para as pedras cintilantes no seu dedo a caminho do metrô. Na segunda estação entrou um sujeito alto, gordo, suado, com uma camiseta regata e um shortinho ridiculamente pequeno. Parecia uma criança lambona que cresceu enquanto andava e ficou com as roupas de quarenta anos atrás. Com a graça de uma garça obesa ele começou a encoxar nossa protagonista, mesmo que o metrô não estivesse tão cheio a ponto de "justificar" a alegria do banhoso.

Carla, super-animada com a idéia, pensou que se estivesse com um cara legal, não teria esse problema. Pensou que ele poderia ser gostosão também. No momento em que nosso amigo chupeta de baleia estava chegando para mais uma esquiada traseira e Carla girava o corpo para se livrar e gritar qualquer coisa com aquele digno senhor inconveniente, viu um homem grande, moreno, bem saradão - pareceria demais com a imagem que Carla fez do "namorado" há alguns segundos, se ela tivesse se detido a acompanhar o rosto e não o corpo dele, enfim, tinha o corpo dos sonhos de Carla e um rosto... como dizer... indefinido - vindo na direção de ambos.

- Ô seu animal, a mulher está comigo! Sai daí!
O truculento fornecedor da Pirelli afobadinho virou-se com raiva, mas, como todo malandro "coca-cola", perdeu o gás assim que viu nosso amigo agigantado se aproxegando em nossa protagonista. Não falou nada, só caminhou até um banco vazio e já estava quase sentando quando o metrô parou e ele saiu, sem sequer ver qual a estação.

- Obrigada, disse Carla olhando seu salvador do pescoço pra baixo, imaginando os gominhos do abdômen dele.
Ato contínuo entre o pensamento de Carla e nosso amigo sacudindo a camisa dizendo que o sistema de ar-condicionado não estava legal naquele vagão. Ela olhou-o nos olhos, castanhos, e agradeceu.

- Você não tá com a minha mãe!
Carla, mal pôde esconder o desânimo por não estar só naquela situação. Respirou fundo e, enquanto se virava para falar com a delicadíssima filhinha, pensou que gostaria de...

- Filha, quero dar uma volta em Botafogo, quer ir com a avó, Nádia? - Disse a avó (sim, a avó estava lá desde o início. É que ela é uma velhinha discreta) virando-se para a neta.

Carla simplesmente abriu um rasgo labial de orelha a orelha e despediu-se da mãe e da filha carinhosamente e aos berros. Não sem antes pensar na vergonha dupla pela situação do sujeito encoxante e da mãe surda. Queria muito que todos tivessem mais o que fazer além de olhar pra ela. 

Foi quando quase todo mundo ficou paralisado de susto. Alguns acharam que era um defeito das companhias de telefonia celular, a maior parte só ficou atônita com a sinfonia de sonzinhos esdrúxulos simultâneos e celulares caindo no chão e vibrando. Depois de uns quarenta "Alô?" incertos, todos já tinham mais o que fazer e o assunto passou de Carla ao inusitado dos celulares. Só um senhor idoso que, sem celular, queria saber se havia alguma catástrofe "na superfície". Mas Carla pensou que ele bem podia ficar calado.

Chegando em casa - Carla desejou uma viagem rápida, não me culpem - arrastando aquele homen lindo cujo nome Carla sequer havia pensado em perguntar, caíram rindo no sofá e estranhamente o som começou a tocar: Simply Red. As roupas pelo chão e Carla e o moreno desconhecido dignos de uma filmagem do Animal Planet: na parede como largartixa, no sofá como hipopótamos, no chão como um ataque epilético, no chuveiro como vítimas de um taser. 

No silêncio sepulcral que imperou depois daquela tarde deliciosa de domingo, Carla pensou no inusitado de tudo aquilo. Tirando o filé de baleia, todo o resto simplesmente não se encaixava: sua mãe indo fazer compras sem pedir dinheiro, celulares mais que polifônicos, sinfônicos, um moreno lindo que obviamente não tinha dado conta de suas celulites, sexo animal na sala que permaneceu arrumada, um homem com o corpo perfeito cujo rosto ela não sabia discernir nem identificar... foi quando sentiu fome, muita fome, e, naqueles momentos em que o tesão se amaina e o sono ataca implacável... ela bem desejou que ele fosse uma pizza de peperoni. Light.

Receita e Conto: ®Ҝ

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Carta ao filho


Quando olhar os pássaros, se um dia você olhar pra cima, você possa entender como funciona o teu pensamento. Leve, rápido, insano, livre. Que possa entender que é da natureza dele voar, não se fixar, não manter velocidade, altura, contar que a direção do vento e a sua força farão com que quase nunca uma linha reta seja o caminho mais curto entre você e seu desejo.

Quando olhar pro mar, se um dia você olhar pra baixo, você possa sentir o que acontece dentro do teu peito. Denso, lânguido, puro, imundo, reserva de vida. Que possa entender que, de alguma forma, por algum milagre, ele se refaz, reestrutura, busca o equilíbrio. Que ele tem o tempo dele, o tempo de uma batida no peito, o tempo daquela sensação de peso na alma, que precede a leveza.

Quando olhar nas fotos, se um dia você olhar pra parede, você possa ver o quanto tua natureza é humana. Que você é plástico, que muda, mudou e vai mudar. Que você teria sido um aborígene se tivesse nascido na Austrália, um pigmeu, um holandês, um vietcongue, que você seria enorme de gordo, ou muito magro, maior ou menor, mas ainda assim você, e, exatamente por isso, plástico, humano.

Quando olhar pelas ruas, se um dia você olhar ao redor, você possa ter compaixão pelas pessoas que confundem auto-preservação com agressividade e competição e colocam os dois sob o rótulo de "instinto". Que consiga entender que a liberdade não é uma entidade isolada emanando energia desordenada pelo universo, mas que só pode existir abraçada com a responsabilidade pelo tempo.

Quando olhar pra você, se um dia você olhar pra dentro, você possa saber exatamente como se ver: como um agricultor, um caçador ou coletor e esteja em paz com o que vir. Que possa compreender que existem fases para coletar do ambiente ao redor, fases para plantar nossos projetos, sonhos e desejos ou para caçar livremente e que essas fases devem ser vividas ao extremo.

Quando olhar para o mundo, se um dia você olhar por sobre os teus ombros como se saísse do corpo e, da estratosfera, olhasse para baixo, você possa compreender que tudo o que há é sagrado e existe por uma necessidade dinâmica natural ao ser humano. Que precisamos aprender sobre a harmonia que há entre a faixa de Gaza e um monastério nepalês, entre um tapa na cara e um pedido de desculpas, entre um assassino serial e um mártir. Que a vida se processa nessa espécie de equilíbrio dinâmico que é imprescindível para dar forma à plasticidade da natureza humana.

Quando você olhar para mim, se um dia você olhar pro lado (ou para trás...), você possa compreender que fiz o meu melhor, que a minha matéria está se cristalizando e vai quebrar, como a sua e a de seus filhos e netos, e você possa ter a grata certeza de que não me ama ou considera mais por isso, mas porque eu tive o prazer de te amar desde o dia em que te fiz. 

Conto e receita: ®Ҝ

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Ars Amatoria




Os amigos em comum sempre falavam de um para o outro, mas Pedro estava namorando nas últimas férias e Bárbara, no carnaval, tinha resolvido fazer um mochilão pela América do Sul.

Todos diziam que precisavam se conhecer, os dois grandes “pegadores” da turma nunca tinham se visto pessoalmente, mas a fama os precedia e já haviam se adicionado no Orkut, trocado MSN e tudo o mais. Ocorre que Pedro conhecia a fama de Bárbara e ela à dele, de modo que se estabeleceu ali um desafio implícito. Os papos virtuais eram propositalmente vagos e ela sempre lançava um ar de “desafio” durante e no final das conversas. Pedro parecia um pouco mais distante, desligado diriam alguns.

Era março e nenhum dos dois tinha programado nada para uma quinta-feira baldia que, como todas as quintas-feiras, tem aquela noite recheada de um ar malicioso de despretensão calculada. Zé e Cláudia, o “casal grude” da turma, haviam ligado, respectivamente, para Pedro e Bárbara, chamando para irem ao cinema. Nenhum dos dois sabia que o outro iria. Era uma quinta-feira, despretenciosa.

Calça jeans e camisa cinza, tênis qualquer, saiu Pedro do curso noturno de francês e pegou o metrô para Botafogo. Revista de lado, vestido verde musgo e sandália grega preta, desceu Bárbara rápido até a garagem.

Zé esperava Pedro com ar um tanto cômico. Cláudia cutucava visivelmente o namorado eterno por baixo do braço.

- Que que cês tão aprontando, hein?
- Ih, cara, relaxa. A Cláudia hoje tá boba demais. Comprei teu ingresso porque eram cadeiras marcadas, senão já viu. Depois cê me paga.
- Tá, mas que vocês tão estranhos, tão. Que horas é o filme? – Disse pegando o bilhete e confirmando a resposta que esperava ouvir.
- Às dez e meia.
- Tem tempo. Bora na livraria?

Dentro da livraria Cláudia, uma moreninha de um metro e sessenta que vivia com os cabelos lisos e negros soltos não parava de passar a mão da testa à nuca, soltar os cabelos e rir. Pedro não se conteve:

- Na boa. Sério. Pára. Zé, eu sei que você é o maior cínico e não ia dar com a língua nos dentes nem a pau, mas a Claudinha tá denunciando legal. Qual é a parada?

Zé pensava em responder qualquer coisa quando virou para Pedro e, através da vitrine da livraria, viu Bárbara entrar no cinema, e ela estava linda. Fez qualquer menção que Pedro olhasse para trás e desviou os olhos para uma prateleira à frente, esticando a mão para pegar qualquer livro que nem havia visto.

Pedro olhou curioso para trás e viu Bárbara. Reconheceu de imediato. Estremeceu, porque através do vidro não só via Bárbara como via como estava vestido, ao mesmo tempo em que eles ficavam quase como que um casal, lado a lado, pelo reflexo causado pela luz interna da livraria. Talvez ela visse a mesma imagem do lado de fora, o fato é que Bárbara sorriu.

Ela entrou dominando o ambiente, era linda. Olhos verdes (ou azuis?) cabelo castanho claro preso meio alto como as bailarinas e umas sobrancelhas desenhadas, dando uma moldura entre o angelical e o luciférico. Pedro respirou fundo e enquanto pensava se falava qualquer coisa para Zé, se arrumava o cabelo, se andava em direção a ela, se a camisa estava amarrotada, a mulher do vestido verde musgo já estava parada de frente para ele, sorrindo.

- Pedro?
- Bárbara!
Ela riu. E que sorriso!
- Que divertido!
- Que armação dos dois ali atrás, isso sim!
- Com certeza!

Riram o tanto que a surpresa e o desejo de não parecerem ridículos um ao outro lhes permitiu. Bárbara cumprimentou o casal e conversaram os quatro por alguns minutos. Até que ela virou-se para Pedro com olhar malicioso e disse:

- Teu irmão me disse que você nunca deixou de conseguir a mulher que quis.
- Exagero dele.
- Bem, o Zé e a Claudinha confirmaram. A Aninha, o Paulo, a Carla, a Natasha... aliás – disse aumentando o tom da voz - me disseram até que você e a Natasha...
- Quer sentar lá fora? – Disse Pedro na clara noção de que deveria não só comandar o papo como afastar os dois amigos que depois fariam milhares de brincadeirinhas e repetiriam palavra por palavra o papo dos dois “sedutores” por meses.
- Claro, tô com sede. Você bebe o quê?

Andaram até uma mesa e Pedro deixou que Bárbara andasse ao seu lado, mas sempre um passo à frente, só passando à sua frente quando chegaram às cadeiras, onde fez questão de puxar a cadeira para ela.

- Obrigado. Muito cavalheiro você.
- Obrigado.
Pedro fez o possível para que ela não notasse que ele havia respirado fundo antes de sentar e resolveu soltar o ar lentamente depois de sentado. Sentou-se como se dominasse o ambiente. Parecera ter rompido completamente a atmosfera de surpresa e o mal-estar pela diferença que julgava não só entre as roupas, mas entre a beleza de ambos.
- Agora confesso que fico na dúvida. Não sei se agradeço aos dois ali por terem trazido você – confesso que os papinhos de todos já estavam me deixando curioso – ou se agradeço a você o fato de não ter se tornado uma miragem, daquelas que nunca poderão nos desencantar porque sempre serão miragens.
- Nossa, você fala bonito. – Disse rindo e arqueando as costas para trás como para desafiar ou simplesmente para olhar melhor os olhos castanho claros e os cabelos negros, lisos e meio jogados que emolduravam aquele rosto estranhamente inocente, dos lábios lisos e levemente mais grossos do que parecia pelas fotos no Orkut dele.
- Tem uma coisa que eu quero te perguntar.
- Claro!
- Não sei se devo agradecer aos dois por terem trazido você até aqui e acabarmos com o disse-me-disse do pessoal ou... se você deve agradecer a eles, e talvez a mim, por terem me trazido aqui para confirmar os elogios que você vive ganhando. Afinal, é o teu ego que cresce no processo. E agora? Agradeço eu ou você? Afinal de contas, se eu sou considerado um “sedutor” e se eu vou elogiar tua beleza, quem sabe até o teu vestido, porque ele realmente te cai muito bem, teu jeito de andar, tua voz... esses elogios podem ser úteis a você. É inevitável que eu te elogie para os outros. Não só porque você realmente é linda, mas principalmente porque, se eu não o fizer, corro o óbvio risco de parecer falsamente arrogante, infantil, talvez até invejoso. Sou obrigado a te fazer elogios públicos até para manter a minha imagem de cara maduro. E agora? Quem agradece a quem?

Bárbara franziu a testa. Parecia não ter alcançado de primeira as palavras de Pedro. E como o infeliz falava rápido, de improviso, e bem!
- Você me pegou. Obrigado por ter vindo. Obrigado antes da hora, pelos elogios que vai fazer sobre mim.
Ela ria e ficava desconcertada, até que pareceu jogar um anzol para o garçom que, ao primeiro relance daqueles olhos verdes (ou azuis?) apareceu na mesa e anotou um chá gelado para ela, um refrigerante para ele.

- Além dos elogios que você já ganhou, quero saber qual era o teu interesse em me conhecer. Fazer um duelo de sedução? Brincar daqueles jogos “te quero-te chuto” que os adolescentes fazem?
- Claro que não. Acho que a gente ficaria anos nisso e, por causa de nossos egos, como você mesmo disse, não íamos nunca nos render um ao outro.
- É, talvez. Interessante, você está se saindo mais inteligente do que eu esperava.
O garçom chegou com os pedidos de ambos. Serviu mais lentamente o de Bárbara que o de Pedro.
- Obrigado.
Brindaram.

- Meu interesse em te conhecer está no que teu irmão falou de você. Que nunca deixou de estar com a mulher que quis.
- Já te falei que é exagero de irmão mais novo. Vocês estudaram juntos na faculdade, sabe que o Thiago é meio exagerado por natureza.
- É, eu diria “empolgado”.
- Pois é. Então.
- O fato é que outras pessoas confirmaram e você também não nega.
- Acho que não faz sentido confirmar ou desmentir. Talvez seja mesmo verdade.
- É isso que eu quero! Aprender com você como faz isso. Não fica achando que por eu ser bonita todo mundo que eu quero cai aos meus pés.
- Eu não acho. Na verdade não faz sentido você achar que “todo mundo” que eu queira – porque que geralmente eu só quero uma pessoa de cada vez, riu – caia aos meus pés. A gente vai conquistando.
- Pois é. Você é um cara charmoso, alto, com um rosto bonito, mas não faz o estilo de todas as pessoas.
- Até porque isso é impossível, não acha? Pensa assim: existe uma arte para isso. Um artifício, uma artimanha, um truque, como você quiser. Não digo que seja uma teoria, porque é prático demais, não digo que seja uma prática, porque exige alguma reflexão e não seguir um modelo.
- Então me conta, como é que eu faço?
- Bem, primeiro você tem que rastrear sua “presa”. Não ri, é sério. Você que quer que eu transforme isso em teoria, tô tentando colocar em tópicos aqui. Acho que nunca fiz isso antes. O fato é que o melhor é que seja outra pessoa a entrar em contato com a “presa” antes de você. Que faça uns comerciais, como o pessoal fez entre a gente.
- Foi você que armou isso?
- Não. Eu teria feito diferente. Você vai ver. Enfim, depois disso o que você precisa é deixar-se ser quem é, afinal é da tua natureza o andar sedutor, o olhar enfeitiçado, a fluidez das palavras, tudo o que você normalmente faz. E fez hoje.
- Sério que não faço nada disso de propósito. Mas entendo que os caras vejam assim.
- Então, de qualquer forma você entende que não é pela força que se consegue ou mantém qualquer coração: benevolência e prazer são o que retém nossas “presas”. Procura não pedir mais do que o cara possa te dar, paga sempre na mesma moeda; o que uns chamam vingança nós podemos chamar de reciprocidade; assim os caras vão te querer mais, acho eu. Na hora de agradar, concede só o que eles querem ardentemente, nunca fora desse tempo. Às vezes é uma questão de “timming” mesmo. Percebe uma coisa: gosta de sushi?
- Adoro!
- Gosta de churrasco?
- Também!
- Se uma amiga sua te levar para um rodízio de sushi e passarem a tarde e a noite toda comendo e conversando e, às dez horas da noite, eu te ligasse chamando para um rodízio de churrasco, como você reagiria?
- Acho que eu iria... mas não ia querer comer. Se tivesse comido a tarde e noite toda, acho que nem iria. Marcaria com você outro dia, talvez.
- Servido a quem não tem apetite, qualquer coisa, mesmo um rodízio, que você disse que adora, não desperta nada. Talvez cansaço, talvez até nojo. Entende? Quando você está morrendo de fome, depois de uma noitada por exemplo, até o podrão da esquina, aquele cachorro quente que você vai levar uma semana pra digerir, é delicioso.
- Falar é fácil. Como é que eu faço pra deixar o cara com essa “fome” toda?
- Não oferecendo mais nada quando eles estiverem saciados. Nunca chamando uma segunda vez antes que eles terminem a “digestão” e a necessidade – porque é inevitável – tenha aparecido de novo. Depois, dá uma indiretas e some, deixa claro que é você quem comanda teus desejos, mas não se faça de “dona” mais que desentendida ou fugidia. De vez em quando dá uma evitada para a vontade deles chegar ao extremo.
- Legal, então porque você não me ajuda a tentar essa tua “técnica” pra chegar num cara do meu mestrado?
- Claro! Com todo o prazer, se eu tiver tempo.
- Está muito ocupado ultimamente?
- Se precisar de mim, me dá um toque. Toma meu telefone.
Puxou o guardanapo, tirou uma caneta do bolso e anotou. Entregou na mão dela, com os olhos fixos nos dela.
Bárbara empolgada, não resistiu:
- Por que a gente não sai amanhã? É sexta, tenho mais tempo livre.
- Pois é, não vai ser fácil assim de uma hora pra outra. Marquei de sair com uma amiga depois do curso, vamos na Lapa. Sábado talvez a gente saia de novo, não sei ainda. Mas domingo marquei de fazer uma trilha na Pedra bonita bem pela manhã e depois tenho que estudar porque tenho prova segunda logo de manhã.

Antes que Bárbara pudesse dizer qualquer coisa, Pedro se levantou com um polido e levemente distante “com licença”, pegou o celular no bolso e se afastou da mesa.

Não conseguiu ouvir nenhuma das palavras que Pedro trocou no telefone, mas sua postura dizia que tinha se esquecido de alguma coisa. Voltou correndo com o telefone ainda na orelha e, sem sentar na mesa, tapou o telefone com uma pressa estranha a um cara que tinha sido tão cordial até então e disse:
- Linda, tenho que ir, depois a gente se fala!
- Eu te ligo!
- Beijo!


Pedro passa rapidamente pelo corredor do cinema e despede-se com um sinal para Zé. Começa a rir no telefone depois de sair.
- Te falei, Thiago! Ela vai me ligar! Tá me devendo cinquentinha cara! Hahahahaha

Conto e Receita: ®Ҝ

sábado, 10 de janeiro de 2009

O Caçador



Úrsula caminhava tensa pela sala de estar. Ao desligar o telefone uma inquietação qualquer lhe percorria os ombros até a ponta dos dedos. O que poderia querer Vânia - aquela senhora enigmática amiga de sua mãe há anos - lhe ligando às onze e quarenta da noite de um sábado para marcar um encontro com um homem desconhecido na sua casa para dali a alguns minutos? Por que quis confirmar logo de saída se Wagner estava viajando nesse final de semana?

Passeando pela sala viu seu reflexo num espelho estalando os dedos e percebeu que ficara o dia inteiro em casa arrumando papéis de Wagner, separando anotações e papeladas de notificações de condomínio, planejando ingredientes para um escondidinho de camarão no domingo caso ele voltasse a tempo pro jantar... seu cabelo secou preso, seu rosto não tinha qualquer maquiagem, correu ao banheiro antes que pudesse calcular a real dimensão emocional das linhas acinzentadas sob seus olhos.

Um banho rápido, um vestido prático sobre o corpo cansado, batom e um perfume leve. Decidiu deixar o cabelo secar solto dessa vez. Decidiu e, sem qualquer consciência, automaticamente arrumou o rabo-de-cavalo antes de atender à porta.

Vânia vinha como sempre, sorridente e esquiva. Escorregava o olhar dos olhos de Úrsula enquanto trazia ao seu lado um sexagenário de quase dois metros com um blazer grafite já fora de moda sobre uma camisa verde musgo.

- Oi Úrsula, esse é o Dr. Ramiro Ruyz, veio de Granada especialmente para ver o seu caso.
A mulher fitou a senhora com algo entre uma inquietação pela intromissão em sua vida e a curiosidade avassaladora diante daquela situação bizarra. Por alguns segundos pareceu ao Dr. e à senhora virem a batalha interna de Úrsula ser ganha, momentaneamente, pela curiosidade:
- Como assim "meu caso"? Acho que eu deveria saber de qualquer "caso", certo? Acho que estou bem de saúde e admito que só recebia a senhora por consideração à amizade que sempre teve com minha mãe, mas dado o adiantado da hora gostaria que vocês fossem um pouco mais claros, se possível.
Estranhou que o Dr. ficasse parado ao pé da porta como se uma parede invisível o impedisse de entrar. Talvez alguma inquietação em estar na casa de uma mulher casada na ausência do marido, algumas impressões ligeiras e simpatizantes passaram pela cabeça atabalhoada de Úrsula até que ela quase sem querer dissesse:

- Entre, por favor. Fique à vontade.


Vânia assentiu com a cabeça, afundou as costas no sofá da sala e em alguns segundos o dividia com o estranho doutor.
- Deixa essa polidez e distância pra depois, menina. Não temos muito tempo. Pompa e circunstância são luxos desnecessários. Gostaria que ouvisse com atenção ao Dr. Ramiro, sei que a situação pode lhe parecer estranha e... depois, se achar que deve, sairemos rápido pela mesma porta ali à direita e nunca mais te incomodarei com essas idéias. Pode ser?

Úrsula se recostou na poltrona expulsando o ar do peito em tom de consentimento.
- Querem água, chá, biscoitos?

A voz pedregosa e grave do Dr. Ramiro quase explodiu ocupando cada milímetro da sala:
- Creo que el tiempo para una taza de té es el tiempo necesario, gracias.
Úrsula se levantou e foi até a cozinha. Deixou a água aquecendo no bule, pegou uma tigela, abriu um pacote de biscoitos que só comprava mesmo para o caso de visitas e voltou ansiosa para a sala. Sentou com pressa e encarou com curiosidade aquele senhor alto de voz grave e modos que só lembrava de haver visto antes em seu avô.

- E, na opinião do Sr...

- Doutor, minha filha. Doutor. - Interrompe a “Tia” Vânia com as mãos esfregando os joelhos.

- Sim, “Dr” Ramirez, certo?

- No, Ramiro. – Disse o distinto senhor sem tirar os olhos da tigela de onde havia tirado já o segundo biscoito recheado. – Nossos idiomas são parecidos, mas como gostaria que se reportasse a mim no meu, caso eu estivesse no seu país, falarei com você no seu, uma vez que cá estou. Perdoe qualquer sotaque português, estudei em Coimbra. Vícios de linguagem são os piores.

- Sem problemas, o senhor é doutor em quê, exatamente?

Dr. Ramiro encarou pela primeira vez nossa protagonista, seus olhos inspiraram uma espécie de vivacidade que superava sua idade e aspecto geral: - Psicoquiroptologia prática.

- Como?

- Psicoquiroptologia. Psico vem de psiqué, termo grego para....

- Desculpe, essa parte eu compreendi, mas o outro termo...

- Quiroptologia?

- Isso. Quiroprático é uma espécie de massagista ou um especialista que cuida da coluna sem ser estritamente um médico, isso é o mais próximo que chego do termo que o Dr. disse.

- Se essa é sua preocupação, posso lhe assegurar que sou médico e formado. Mas minha área mesmo é essa cujo nome estranhastes. Quiróptero é o nome científico dos morcegos. Lembra-te dos pterodáctilos, cujas falanges dos dedos tinham membranas formando juntas que supunha-se que usavam como asas? Bem, os morcegos tem o mesmo fundamento em suas asas e “quiro” é o sufixo para “mãos”. Quiróptero seria “mãos com asas” ou algo do tipo. Enfim, vim aqui saber do seu marido.

Úrsula agarrou o encosto da cadeira com a mão direita e tentou disfarçar chamando atenção com movimentos aleatórios com a esquerda enquanto tomava fôlego. Por algum motivo aquilo que obviamente não fazia sentido perfurava seu estômago, incomodava demais. Decidiu manter aquela “tia” maluca e seu amigo “Dr.” até descobrir porque tudo aquilo a incomodava tanto e logo na boca do estômago.

- Desculpe, como?

Dr. Ramiro se encostou no sofá cruzando os dedos nas mãos sobre as pernas e fixando o olhar de maneira cordial embora levemente inquisidora para Úrsula. Passou a língua pelos lábios e depois de observar mais uma vez os biscoitos (algo dizia a Úrsula que ele observava através dos biscoitos, do prato, da mesinha de centro, talvez até do chão) disse:

- Gostaria de tomar a liberdade de fazer-lhe três perguntas depois das quais a senhora me dirá se há razão para eu estar aqui ou não. Caso não haja obviamente irei embora imediatamente.

- O senhor já conseguiu isso antes.

- Sim, mas quero primeiro ter o seu consentimento para perguntar e quero que saiba que são apenas três perguntas.

- Tudo bem. O senhor já tem minha atenção, minha curiosidade... até meus biscoitos e o chá que daqui a pouco vou pegar.

- Ótimo. Foi a senhora que convidou seu marido a vir morar em sua casa quando se conheceram?

- Sim, mas...

O olhar do Dr. Ramiro se fixou no pescoço e depois na boca de Úrsula. Ela sentiu um impulso imediato de parar de falar e respondeu ao olhar do espanhol com um desafio levantando as pálpebras inferiores.

- Certo – disse o Dr. com as mãos no biscoito e os olhos nos olhos de Úrsula – Certo. A senhora pensa em ter filhos?

A anfitriã cruzou os braços como se um calafrio percorresse seu corpo ao ouvir aquela pergunta. Levantou-se e foi pegar o bule que já assobiava a algum tempo na cozinha.

- Não estou entendendo onde suas perguntas querem chegar. – disse de costas para as visitas.

- Sra. Úrsula, por favor. São apenas três perguntas. Não vamos parar na segunda.

- Estou recebendo o senhor – e a voz veio chegando em passos densos sobre o assoalho de taco envernizado com o bule cheio de água fervente e umas xícaras quase dançantes sobre a bandeja de fórmica imitando madeira – por consideração à senhora do seu lado. Que tipo de pergunta é essa?

- O tipo de pergunta que me parece correta dada a irritação com que a senhora a recebeu. – Por alguns instantes um clima de apreensão rondou a sala e um adolescente irônico poderia ouvir os grilos na janela, mas não existiam adolescentes nessa cena, ou ironias.

- Qual a razão para essa pergunta? – Disse Úrsula sem deixar a bandeja ou o bule sobre a mesa de centro.

Dr. Ramiro levantou-se do sofá rapidamente como se desse um bote sobre a mão da anfitriã e com olhos melífluos e nublados, tomou a bandeja e o bule e de um único movimento os colocou na mesa, dizendo:

- Dessa forma queimará os dedos.

Tudo aquilo pareceu, à aterrorizada Úrsula - que só agora tomava consciência da altura e largura dos ombros daquele senhor – rápido, energético e limpo demais, como um movimento marcial treinado à exaustão e perfeição, algo totalmente surreal a um senhor daquela idade.

Ainda em pé, Dr. Ramiro permaneceu fitando a mão direita de Úrsula.

- Melhor colocar em água fria. Corrente.

Mais um constrangedor silêncio invadiu a sala e “tia” Vânia levantou em direção à cozinha para em seguida voltar com um pano de prato envolto em pedras de gelo.

- Você estava se queimando, minha filha. Não percebeu?

Úrsula desprendeu os olhos dos do Dr. Ramiro, que já estava servindo os três chás de maçã com pitadas de canela, e olhou sua mão direita. Vermelha.

- Vejo que minha presença talvez lhe cause repulsa ou desagrado, mas vim a fazer três perguntas e me vejo forçado a fazer a terceira antes de ir-me embora. Ah, fique tranqüila, não sou eu quem cuida da resolução dos casos. Sou responsável pelo que a senhora chamaria de “medicina diagnóstica”. Bem, a senhora tem 27 anos, é casada há 5 e conhece seu marido há 7, tenho certeza de que conhece a família dele, cuja mãe quase não fala, provavelmente tem uma expressão facial inócua, vacilando, a maior parte do tempo entre parecer desmaiar ou chorar, coisas que os que estão ao redor já não se espantam de que não aconteçam, como se uma força qualquer a mantivesse erguida, eterna, para servir. Seu sogro é um homem falastrão, bonachão, sedutor e bom ouvinte, como seu marido. A irmã de seu marido, como suponho que exista, é uma moça quieta, soturna e de aparência decadente, aparenta ter dez anos a mais que ele, quando na verdade é o oposto que se verifica na certidão de nascimento. Desde que convidou seu marido a entrar nessa casa, há sete anos, cada vez menos seus projetos e sonhos foram comentados à mesa, na cama, pela manhã, antes ou depois do trabalho. Pelas teias de aranha próximas ao teto da entrada de sua casa posso imaginar que seu interesse pelo comportamento dos insetos aumentou na mesma medida em que desaparecia seu asco por eles até o ponto em que hoje é capaz de olhar fixamente para uma barata, aranha ou ratazana por alguns minutos e até mesmo tentar descobrir como esses seres sobrevivem e se reproduzem. Está projetando a ausência de sentido atual da sua vida na possibilidade de que haja algum sentido ou mesmo algum sentido infantil de harmonia na vida entomórfica. Vejo poeira uniforme na frente dos livros na estante, sinal de que não há manuseio dos livros. Seus estudos pararam, qualquer produção secou, seus devaneios noturnos, planos de carreira, tudo foi desfalecendo semana após semana, mês a mês, ano a ano até chegarmos ao dia de hoje em que provavelmente seu olhar tenso e crispado sobre mim diga que sei mais do que aparento, mas principalmente que sei mais do que deveria saber e, acima de tudo, que eu não deveria ter comentado o fato de que está pensando em desistir até mesmo de ser mãe. Certo?

Dr. Ramiro deu um último gole no chá e colocou dois biscoitos no bolso do paletó ao se levantar e caminhar, lentamente, em direção à porta.

- Não há duvida. Seu marido é um grande quiróptero, um vampiro emocional, psíquico e físico. Acredito que esteja a poucas semanas, talvez alguns dias, de acabar com a sua vida. Não pense em assumir a posição de vítima; de tudo o que é dito sobre o folclore dessas criaturas, uma coisa é certa: Só entram quando convidados.

Deixou um cartão de visitas negro sobre a mesa ao lado da porta:

- Como disse antes, não sou eu quem cuida da resolução, eu faço apenas o diagnóstico. Sinta-se livre para decidir nos ligar.

“Tia” Vânia estava atônita. Com o afastamento do Dr. Ramiro em direção à porta foi-se aproximando aquela confusa sensação de que pouquíssimo sabia do tal “Dr.” além do fato de que se conheceram naquela tarde, num café literário, ou numa estufa de flores? Pelo menos tinha a certeza de que fora em Copacabana... ou seria Botafogo, talvez Jardim Botânico?

Em estado de choque, olhando através da xícara, através da bandeja, da mesa, do taco, do chão, penetrando o âmago escaldante da terra em busca de si mesma, Úrsula explodiu aquelas palavras embaçadas de lágrimas:

- Como? Como você pode saber isso?

Antes que a porta se fechasse sobre as duas figuras atônitas, as palavras nítidas e distantes:

- Ora, minha querida, os semelhantes se reconhecem...

Conto e Receita: ®Ҝ

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?