sábado, 10 de outubro de 2009

Rosas




Sandra achava ele lindo. Seus olhos castanhos eram levemente puxados, não como orientais, mas como dos esquimós, como da Björk, quase Richard Gere. Alto, cabelos pretos lisos e com um olhar entre a indiferença entre aquela tarefa e a curiosidade sobre as reações dela. Já era a terceira vez que ele vinha à sala de Sandra entregar uma carta linda, mas dessa vez trouxe flores. Sempre de calça jeans e uma camisa social, ele se aproximou e as meninas do escritório todas fizeram piadas e gracejos, o Almeida levantou e foi ao banheiro, claramente irritado com o ibope do rapaz.

Sorriu muito timidamente para Sandra e entregou-lhe as rosas colombianas, gigantes, com um cartão preso no arranjo por um clipe de papel verde de tamanho descomunal. Os olhos de Sandra passaram completamente através das rosas e se encaixaram fixos sobre aqueles olhos castanhos repuxados. Ela quase conseguiu ver um sorriso naquele olhar, mas mesmo que ele existisse, ela não veria, tal era a proximidade que estava daqueles olhos. Entre eles, as rosas colombianas.

O rapaz deixou as rosas nas mãos de Sandra e virou-se rápido para a porta da sala. Em quatro passos já estava virando à esquerda e saindo da vista de todos, deixando a pergunta sobre o nome dele na boca entreaberta de uma Sandra que segurava o buquê com o interesse que seguraria um papel qualquer do escritório.

Ignorando olhares e comentários, sentou-se atrás de sua mesa e ficou olhando fixa para a porta, como se aquele lindo entregador viesse aparecer a qualquer momento para trazer qualquer outra carta, flor ou bom-bom que seria prontamente ignorado. Percebeu que o buquê era enorme e que ela estava abraçada a ele, pensando nos olhos castanhos. Colocou de qualquer forma o buquê em cima da lata de lixo – era o que mais se aproximava de um vaso por ali -, tirou a carta do clipe e colocou em cima da mesa. Voltou ao trabalho com a cabeça recheadas de imagens do dia em que aquele entregador trouxesse flores dele próprio, mesmo que fosse apenas uma rosa, e das pequenas.

Às seis horas arrastou tudo o que havia dentro da mesa para dentro da bolsa e saiu apressada para nada. Mentira, apressada para uma aula de spinning, outra de boxe e uma noite de quinta-feira com sorvete de macadâmia e filme na TV a cabo. As flores ficaram no lixo e foram pegas pelo seu Antenor, da manutenção,cuja esposa teve uma quinta-feira inesquecível.

Em casa, depois de levar dois cruzados na aula de boxe por baixar a guarda para ver no espelho se seu cabelo estaria bonito, abriu a bolsa de cabeça para baixo em cima da cama para fazer seu ritual de troca de bolsa de trabalho para o dia seguinte.

Entre cadernos, agenda, celular, contas e revistas de moda e comportamento viu o envelope verde claro da carta que veio junto com as flores. Respirou fundo afetando uma careta de indiferença, quase como se imaginasse que estaria mostrando ao rapaz de olhos castanhos que não dava a mínima para quem quer que fosse o tal admirador secreto, se recostou na cama com a carta na mão e o controle remoto na outra.

Ainda faltavam cinco minutos para o filme. Abriu o envelope, que começava com uma citação:

“São João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma e o buquê que as reúne é o símbolo da perfeição espiritual” – Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, dicionário dos símbolos.

“A flor é idêntica ao elixir da vida e a floração é o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. A rosa, particularmente, traduz a alma, o coração, o amor. Quando nos aproximamos para sentir seu aroma, delicado, aproximamos o nariz do centro da rosa e, se olharmos para ela assim, é possível contemplá-la como uma mandala perfeita e considerá-la como um centro místico. A rosa vermelha, por sua relação com o sangue derramado, converte-se na imagem de um renascimento místico.

Quero renascer em você.

Sei onde você trabalha, mas só isso. Quero que você me diga, quando quiser, as demais informações. Por favor, deixa seu telefone com o entregador amanhã às onze.”

Sandra jogou a carta de lado e ficou pensando em como o Eric Bana estava lindo e gostoso como Heitor em Tróia. Por quase uma hora e meia, até desmaiar.

Acordou atrasada e com as roupas de ontem, tomou um banho corrido e um iogurte, colocou comida para a gata, uma maçã e um cacho de uvas num saco plástico dentro da bolsa e saiu.

Às dez e cinqüenta e cinco um marca-passo imaginário prenunciaria um ataque cardíaco em Sandra. Era a primeira vez que sabia quando o entregador viria. O dia e a hora. Onze em ponto e os olhos fixos de Sandra deixavam sua boca seca, não fosse o batom e o entregador – que ainda não tinha aparecido – veria seus lábios esbranquiçados, todo o fluxo de sangue parecia estar indo para a boca do estômago, seus dedos, imóveis sobre o teclado, pareciam não ter peso algum e também não ter força nenhuma.

Às onze e três ele chegou, acompanhado de uma inspiração profunda que elevou os seios de Sandra e travou-lhe as costas. A língua, livre, percorreu os lábios e o interior da boca, umedecendo, receptiva. Quando deu por si o rapaz, alto, já estava de frente para a mesa de Sandra, parado, esperando.

- É... oi. – levantou-se às pressas e tropeçou na lata de lixo, foi quando percebeu que as rosas não estavam mais lá – você está esperando um cartão ou um papel, certo?

- Isso. – disse o rapaz, com os olhos cravados nos olhos dela.

Sem tirar os olhos daqueles olhos incríveis do entregador, Sandra respirou e disse:
- Eu decidi que não posso entregar esse papel para o seu chefe.

O rapaz deixou que seus lábios e olhos se abrissem de leve denunciando um ar de espanto, olhou para o chão por alguns milésimos de segundos, piscou e voltou a encarar Sandra quando percebeu que ela procurava o olhar dele com o dela:
- Não posso entregar esse papel porque estou interessada em outra pessoa. Uma pessoa que eu tenho visto bastante ultimamente e que tem me feito ignorar rosas, cartas, declarações esperando o momento de ela atravessar aquela porta ali, dia sim, dia não, com alguma carta linda, mas que não me move a nada, porque tem um cara muito mais interessante, que traz essas cartas.

O entregador, com uma expressão indecifrável, como se buscasse algo na memória, diz:
- Bem, meu... patrão disse que esperava que seus gestos de carinho e afeto pudessem ser valorizados com uma chance, um passo, um movimento, um telefone.

Um sorriso complacente, como o que damos a crianças, passou pelo rosto de Sandra, enquanto sua cabeça negava o pedido e seus olhos permaneciam fixos nos do entregador.

Ele mordeu os lábios, expirou rapidamente como se perdesse todo o ar até então rígido e sério com que se portava e assumisse repentinamente uma expressão corporal e facial de quem pode facilmente dominar o ambiente e diz:
- Quer dizer que nenhuma das ações dele, nenhum gesto de carinho, interesse, dedicação serviram de nada? Não importam suas ações?

Ela mordeu os lábios achando toda aquela mudança de postura muito, mas muito sexy mesmo. Estava se derretendo na frente de seus colegas de trabalho.

- Não.

- Que pena... Quando sentei do seu lado no restaurante aqui da esquina, a duas semanas, e ouvi você conversando pelo telefone com sua mãe, acreditei realmente que você fosse valorizar determinados atos. Você disse a ela: “Não mãe, não existe esse tal cara que entrega flores, que escreve bonito, é carinhoso e sensível. Se existir é gay, tá casado ou não vai querer nada comigo.”. Te achei uma mulher linda, mas além disso, principalmente, uma mulher que fosse valorizar os atos de um cara carinhoso e sensível.

A boca aberta entre o espanto e um esboço raso de sorriso de Sandra gaguejou sons indistintos enquanto a mão do “entregador” pegava na dela e ele sorria.
Ela olhou pro chão, piscou os olhos e olhou para ele pela primeira vez como um homem. Apertou suas mãos nas dele.
- Desculpe.

Ele sorriu e piscou o olho esquerdo.
- Que isso não se repita!

Conto e Receita: Renato Kress

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Quatro Ossos



Às onze horas os pés de Durval escorregavam meias sociais negras pela sala. A porta do quarto ficou entreaberta, o som da fechadura poderia acordar Ana Luísa. Pensou em sentar e escrever um bilhete, mas a cadeira pesada, o chão de taco, melhor não. Pegou um papel amarelo de uma caixinha ao lado do telefone e rabiscou com pressa sobre a mesa de vidro. Grudou na geladeira com um ímã-foto do batizado do sobrinho que agora já tinha seis anos.

Pegou as chaves do carro, colocou um tênis velho e desceu pela entrada de serviço. Encontrou Neuza, a diarista octogenária que trabalhou para seus pais e agora era babá de Ricardinho, seu pequeno de dois anos.

- E aí, Neuza? Pegou a galinha?

Neuza abriu a mochila da “nyke” comprada na Central do Brasil, remexeu um saco preto e, antes que abrisse, Durval já ouvia claro os cacarejares da ave.

-Não abre não, Neuza. Deixa. Lá a gente vê como vai fazer com isso.

Seguiram pela saída de serviço e Clodoaldo, porteiro da noite, estranhou ter que abrir a porta para “seu” Durval de boné, tênis e camisa de malha saindo de noite com Neuza.

Desceram a ladeira da rua, pegaram um táxi até Caxias. Depois de três instruções de Neuza – passando por uma área de mato alto onde a luz da cidade vazava longe e as estrelas perdiam a timidez metropolitana – chegaram a um muro cinza, chapiscado de cimento e encimado por cacos de vidro verde escuros. O portão era um só, para carros, e passava por cima de um trilho que corria da direita para a esquerda. Durval pagou a corrida, pediu que o taxista esperasse e saiu com a mochila de Neuza na mão.

Ao aproximar-se do portão, ouviu o som metálico de uma grossa corrente de ferro sendo remexida até cair elo a elo no chão. O portão deslizou suave. Quase nenhum barulho. Lá dentro sorria uma senhora cercada de dois cachorros de grande porte, um branco, um preto.

Durval deu um passo para dentro do terreno, passando o pé pela linha divisória por onde correu o portão. O cachorro branco chegou mais perto, olhou fixo para a mochila nas mãos de Durval e rosnou.

- Calma, Apolo! – Disse a senhora. A voz era a mesma que havia conversado com Durval no início daquela semana, no telefone, mas o tom, severo, seguro, era bem diferente.

O cão parou, como uma estátua, olhando fixamente para a mochila e, coisa de segundos que para o amedrontado Durval pareceram anos, sentou na grama baixa. Os olhos de Durval procuraram afoitos aos da pequena idosa que havia parado quase magicamente aquele cão enorme. Procurava o consentimento para entrar. Ela assentiu com os olhos e um sorriso nebuloso.

- Boa noite, senhor Durval! Vejo que trouxe o que lhe pedi. Se Apolo teve essa reação a galinha é bem gorducha e nova, certo?

- Na verdade não sei. Neuza foi quem me trouxe ela. – Disse o nome e lembrou-se de olhar em volta para procurar sua velha empregada, quase como uma segunda mãe. Encontrou Neuza recostada no muro da casa, do lado de dentro, sentada sobre um banquinho de madeira. Olhava fixamente para o cachorro preto, que não havia se mexido e, não fosse a cor viva de seus olhos, Durval pensaria que era uma estátua de mau gosto ao lado da velha.

- Neuza, pode vir.

- Aqui tá bom “Dudu”. Tô te vendo.

Durval virou-se para frente e estranhou que, sem ouvir nenhum som na grama, a senhora já estava de frente para ele – coisa de uns sete passos de onde estava antes – e o cachorro preto estava, de novo, ao lado da senhora, sentado. O único que permanecia parado, onde estava antes, era Apolo, o cachorro branco.

- Bem, o que eu devo fazer agora?

- Primeiro o senhor se acalme. As batidas do seu coração eu posso ouvir, imagine os cachorros. O senhor está segurando essa mochila com as duas mãos, em frente ao joelhos... por que não aproveita a posição e coloca sua mão direita pra sentir a pulsação do punho esquerdo? Conte vinte pulsações. Os cães ficarão onde e como estão.

Durval sentiu seu punho gelado e levou um tempo para encontrar o pulso. Foi contando então até vinte. Antes que pudesse finalizar a contagem a senhora virou de costas e fez sinal que a acompanhasse:

- Já está bem melhor meu filho. Apolo, junto.

Seguiram dando a volta por trás da casa e Durval podia sentir os olhos de Neuza se perdendo da imagem dele. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, mas seguiu cada vez mais confiante pelo menos de que os cachorros eram muito bem treinados e bem obedientes. Afinal, ele era o estranho naquele ambiente e era natural que o cachorro ficasse nervoso.

Atrás da casa de madeira da senhora havia uma pequena elevação, uma espécie de morrinho ladeado por uma parede quase vertical de terra e pedra. A senhora levou Durval até essa parede e o fez virar de costas para ela, de frente para a casa. Durval se assustou com a proximidade que os dois cães estavam dele. A um salto estariam em cima dele. A distância que a senhora estava dos cães era a que os cães estavam das coxas e cintura de Durval.

Olhando rapidamente através daquelas duas manchas, negra e branca, divisou os olhos da velha.

- E agora?

- Agora você precisa que essa galinha morra, porque você vai precisar de quatro ossos dela daqui a pouco. Mas se você tirar uma vida vou ter que limpar tua aura ruim e isso leva dias. Acho que o senhor não quer voltar aqui amanhã e depois...

- E o que eu faço?

- Você pensa.

Durval abriu a mochila instintivamente. Mesmo sem saber ainda o que aconteceria, o que deveria fazer. A galinha era marrom, parecia nova e era mesmo bem gorducha. Se mexeu demais enquanto Durval abria o saco preto dentro da mochila e, sem querer, Durval pegou ela pelo pescoço. A fragilidade daquele pescoço, ainda mais com aquele bicho barulhento se debatendo e soltando penas, fez com que Durval se lembrasse: Eu não quero vir aqui de novo.

Foi quando através da bruma desfocada do seu ângulo de visão, ele percebeu a ausência das manchas negra e branca. Olhou rapidamente para frente e para os lados. Apolo à sua direita, o cão preto à sua esquerda. Os dois rosnavam e se aproximavam da linha da cintura de um Durval agora desesperado.

Não se sabe se foi sorte, o pensamento rápido de Durval, a galinha se debatendo ou o quê, o fato é que a galinha soltou-se e se destrambelhou pelo chão à frente de um Durval atônito e ansioso. Em menos de cinco minutos os cães haviam limpado a carne dos ossos da galinha. Durval ainda não sabia se havia “matado” ou não. Olhou para a senhora, que, por algum motivo, parecia estar achando muita graça naquilo tudo e, sem pestanejar, esticou o fino indicador em direção ao meio dos dois cachorros e, no entender de Durval, despejou uma gota de veneno:

- Você precisa dos ossos. Quatro.

Durval olhou para os cães. Entretidos com a carne. Os ossos pareciam ter sido deixados de lado. Se aproximou lentamente por perto do cachorro preto – ele ficava mais quieto que o cão branco, o tempo todo – se agachou ao lado do cachorro e mirou a mão num pedaço de costela quebrada que estava ao lado da pata esquerda do animal. Com grande agilidade Durval pegou o osso, na verdade dois ossos vieram juntos e, no momento em que voltava seu cotovelo para trás, retraindo o braço, a mandíbula do cão negro se agigantou por sobre o antebraço de Durval e, não fosse a intervenção – a estranhíssima intervenção – de Apolo, provavelmente a noite de Durval terminaria numa anti-rábica num hospital público mais próximo. O mais estranho de tudo: o salto de Apolo para cima do cão preto jogou dois ossinhos em cima do pé direito de Durval.

A mão leve e magra da senhora tocou o ombro esquerdo de um Durval ainda atônito.

- Alguém está com sorte hoje. Vamos?

Pegou os dois ossinhos ao lado de seu pé direito e seguiu a velha por alguns passos em direção ao muro que prenunciava o pequeno morro atrás da propriedade. Só uma vez olhou para trás e a cabeça de Apolo estava levantada, olhos fixos nele.

Ao aproximarem-se do muro de pedras, a senhora pediu-lhe que retirasse uma das pedras. Indicou qual. Não era grande, nem diferente das demais. Durval encaixou o pé na pedra, prendeu o quadríceps como apoio e usou os músculos das costas para puxar... e com que facilidade ela veio!

Uma fenda negra se abriu, uma fenda vertical e profunda. A boca da senhora estava perto demais da orelha esquerda de Durval quando ele ouviu:

- Uma batida, sim, duas, não, três, talvez. Use os ossos. Uma pergunta por vez. Juntando as perguntas, você junta as respostas e pode não fazer sentido. Vou ver os cachorros.

Se aproximou da fenda, ladeada por gramíneas e arbustos, enquanto enfiava bem no fundo do bolso da calça os quatro ossos. Avançou a direita e tocou na lateral, molhada de orvalho, enquanto uma brisa quente e leve chegava por dentro da fenda.

Sem tirar a mão direita da fenda, separou com os dedos da esquerda um dos ossos no bolso, levantou e tentou entrever o fundo daquela reentrância na pedra. Nada. Escuro total.

Respirou fundo e se compenetrou na pergunta:

- Aqueles telefonemas noturnos, depois da viagem de trabalho de Luisa a Fortaleza, eram de algum homem?

Jogou o osso com força, quase com raiva de si mesmo por chegar até ali, por não conseguir confiar plenamente na esposa. Por achar tanto que ela mentia que amaldiçoava o ar que saía de sua graganta.

- Tic, tlak, tec, tik.

Quatro vezes. O que são quatro batidas? “Sim, não, talvez... sim de novo?”

Respirou fundo e pensou na outra pergunta.

- Ela ainda me ama?

Jogou o ossinho com menos força e mordeu os lábios e encolheu os dedos dos pés dentro do tênis enquanto ouvia as batidas do ossinho dentro da fenda.

- Tlac, pec, tik.

Talvez? Que merda de resposta era “talvez” para uma pergunta dessas? Pra Durval ou ama ou não ama. Por algum tempo tudo ali parecia ridiculamente infantil e sem sentido e ele pareceu a si mesmo uma criança grande de short, meia social e tênis jogando ossos de galinha num buraco no muro no meio do nada. Pressionou as laterais da boca uma contra a outra como quando não queria dar atenção a alguma infantilidade de algum colega no trabalho, ou quando algum sobrinho lhe falava sobre desenhos animados etc. Se sentiu ridículo ali... “talvez”? Lembrou do táxi esperando do lado de fora.

Quando deu por si, sua mão já estava dentro do bolso, acariciando suas duas outras respostas. Tirou o terceiro osso do bolso. Pergunta direta, sem rodeios.

- Ela está me traindo?

Respirou fundo e jogou o osso, prendendo a respiração num aspirar profundo e congelado que estufou-lhe o peito como se criasse uma barreira à notícia.

- tlec, plac, tik... tik...

Quatro batidas? “Sim? Eu vou matar aquela filha da puta!” Durval andava em círculos, repentinamente enérgico e cheio de si, socou o muro de pedras e talvez tivesse quebrado o pulso, mas não sentia nada além de ódio e o mundo girando. Agachou na grama e de seus olhos vermelhos descia a lágrima quente enquanto ele esmurrava o chão rangendo os dentes. Olhou para trás na esperança de encontrar o cachorro preto e aceitar seu desafio. Queria matar alguma coisa, precisava sentir sangue nas mãos.

“Alergia a camarão! Aquela vadia tem alergia a camarão! Eu vou mandar a Neuza fazer um bolo de batata batido com um quilo de camarão e rechear com sardinha, ela come e eu espero quarenta minutos pra chamar a emergência. Vou ver a piranha agonizando! Em vinte ela pára de respirar. Melhor: vou me descabelar, pegar ela no colo e descer o elevador gritando, só não posso chamar a ambulância. Tenho que meter ela no carro e ficar dando volta até o hospital.”

Não ocorreu a Durval pensar em como a alergia a camarão e a idéia do bolo de batata haviam aparecido tão subitamente, como uma solução mágica, para um problema tão grave. Como se determinadas idéias, com requintes e detalhes, se formassem assim, do nada.

“Importante é servir ela quando o Ricardinho estiver na casa da Gabriela... meu Deus, o Ricardinho! Eu não posso tirar a mãe do meu filho! Mulher infeliz, filha-da-puta desgraçada!”

Mordeu as paredes internas da boca até sentir o gosto ferruginoso do sangue. Ajoelhado, arrastou a cara na grama negando com a cabeça. Socou, com sua mão direita o solo e jogou as costas para trás com o impacto do soco. A mão esquerda, ainda com o último do ossinhos da galinha, abriu o braço para trás, dando um soco no vazio: “Que ela morra!!!”. O ossinho se desprendeu da mão de Durval e voou em direção à fenda...

...tik.

Latidos. Fortes latidos no portão da casa. Barulho de mulheres gritando... Luísa!

Correu para circundar a casa de madeira quando viu Apolo vindo em sua direção. Ele latiu. Barrou seu caminho. Mas diante da fúria de Durval, que não desacelerou nada frente ao enorme cão branco, Apolo simplesmente baixou o focinho e fechou os olhos.

Na frente da casa Durval passou correndo por Neuza, que gagejava aos prantos, apontando para o portão do terreno:

- Do-dona Lu-Luísa veio a-atrás da da gente! ... o ca...chorro preto!

Durval seguiu em direção ao portão, desacelerou o passo. Uma trilha vinho de sangue seguia até atrás do poste de luz mais próximo do muro. Ao acostumar-se à escuridão por trás do facho de luz do poste, ajoelhou, riu e chorou. “Na goela, desgraçada, na goela.” Viu que o cão negro tinha tetas, e terminava de mastigar a jugular de Luísa.

Conto e Receita: Renato Kress

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Hannah




- Oi!
- … oi.

Atravessaram a faixa em botafogo e seguiram em direção a uma rua entre a Cobal e a Real Grandeza. Ele mergulhava o queixo no peito, mordia os lábios, apreensivo. Ela olhava os prédios ao redor, parecia pensar por imagens que se formavam à sua frente. Na outra calçada deu um soco no ombro dele.

- Muito doido isso, não acha?
- Muito...
- Cara, você é muito maluco. Me cutuca no Orkut, me faz ir atrás de fotos de vinte anos atrás pra lembrar de você, fica semanas conversando comigo marcando de gente vir aqui até a curiosidade juntar com a falta de saco de dizer “não” de novo, aí eu venho e você fica paradão, viajando.

Olhou para ela com carinho, mas com um olhar confuso, como se não reconhecesse ali, a coisa de trinta centímetros de seu rosto, Hannah, sua namoradinha de jardim de infância.

- Você sempre teve olhos verdes?
- Não, mandei pintar antes de vir - É veludo acetinado semi-brilho! – claro que eu sempre tive olhos verdes, doido.
- Não. Pra mim você tinha olhos castanhos e cabelos pretos... e o penteado da Lois Lane, mas cabelo a gente muda e até ficou melhor assim, mas cor dos olhos... sempre foi castanho, e escuro, pra mim.
- Volta lá no teu HD e passa o Photoshop então...

Deram mais alguns passos para dentro daquela perpendicular entre a São Clemente e a Voluntários. Ele olhava para os pés dela. Ela para os olhos dele.

- Quer dizer que meus cabelos ficam melhores mais longos, mas meus olhos ficariam melhores castanhos?
- Não é isso. É que na minha cabeça você era uma Penélope Cruz, ou uma Catherine Zeta-Jones, não Liv Tyler. Faz parte da imagem.
- Uhu! Liv Tyler, tô bem hein! Boa cultura hollywoodiana, doido. Por isso eu não queria te encontrar. Não íamos nos conhecer, quer dizer, eu ia, ou eu vou. Já nem sei. Mas você quer resgatar uma imagem de Hannah que não existe. Talvez nunca tenha existido.

Parou. Segurou pelo braço o rapaz e olhou firme em seus olhos. Ainda havia alguma sorte de repugnância no olhar dele. Repugnância não porque achasse os olhos verdes feios, simplesmente eles estavam errados. Talvez não tivessem consciência de seu erro e por isso insistissem nele. Fechou e abriu lentamente os olhos, disposto a vê-los assumir a cor da infância, a cor da memória, ou aceitar o que viesse: ...verdes!

- Cara, relaxa, eu saí com você, não saí? Não estamos indo passar onde era a nossa escolinha? Pelo menos admito que você me intriga, que fico curiosa, que adorava como gargalhava das tuas bobagens na internet, que algum interesse tá acontecendo aqui. Meus olhos são verdes e eu não posso competir com uma imagem. É surreal... e injusto.
- Desculpa. Foi... tá sendo... estranho. Você tem razão, é que algo do teu charme tava na aura da beleza pela atmosfera que te envolve, mais que na beleza bruta.
- Minha beleza é bruta?
- Duas pedras nos teus olhos.
Franziu a testa de uma forma que duas mechas castanho escuras lhe caíram pela face, enquanto contraía os lábios:
- Pedras?
- Esmeraldas.
As laterais de seus lábios se elevaram carinhosamente enquanto a área entre suas sobrancelhas se alisava e a cabeça pendia levemente para a esquerda:
- Elogio grosseiro mais bonitinho que já recebi.
- Desculpa.
- Nem tem do quê. Continue assim e estaremos bem. Vamos sentar ali? Naquele café?
- Mas o Colégio é bem ali, na outra curva.

Enquanto entrava no café e puxava uma cadeira, disse, de costas:
- Planeja morrer hoje?
Ele sequer puxou a cadeira que já havia alcançado, à frente dela. Pousou a mão sobre o encosto de madeira e olhou atônito enquanto ela sinalizava que sentasse.
- Como é?
Hannah respirou fundo e desceu os olhos dos dele até o cardápio lentamente enquanto ia falando:
- Planeja morrer hoje? Tem planos de deixar esse mundo material nas próximas horas? Pretende resgatar algum sonho de pureza transcendental, infantil e assexuado num relacionamento doentio com uma pessoa que provavelmente você preferiria não conhecer porque ela não tem mais 6 anos de idade e seus olhos não-castanhos e sua altura de mais de um metro e meio poderiam te assustar? Então: você não vai resgatar isso, essa imagem, essa criança. Nem a sua nem a da Hannah. E se você pretendesse que o resgate que você está procurando fosse dar algum sentido para a sua vida... e sabendo agora – porque eu estou te falando – que ele não vai acontecer, porque diante de você existe outra Hannah como diante de mim existe um outro cara que não meu namoradinho de seis anos de idade, isso podia mudar a direção de tudo. Talvez tudo perdesse o sentido. Você não vai resgatar a “Hanninha” depois daquela esquina, daqui a meia hora. Agora que já ficou bem claro: você planeja morrer hoje por causa disso? – disse quase sem expressão enquanto lia o cardápio.
- Não...
- Então podemos ir lá daqui a meia hora. Gosta de cappuccino?

Conto e Receita: Renato Kress

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?