quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Eu e Ela


- Vem, hoje vamos passear.

- Só nós dois, vó?

- Só nós dois, amor.

Procurou como um louco o gravador que havia ganho semana passada de seu pai. Levava ele sempre no bolso. Pensava que tudo deveria ser gravado, repensado, escutado várias e várias vezes. No fundo amava aquele poder incrível de viver a vida várias vezes, escutar sempre com outros ouvidos a mesma e a mesma conversa. Era divertido.... Nada. Embaixo da cama, nas estantes, gavetas, mochila do colégio, afundou a mão dentro das roupas sujas no banheiro... nada.

Apareceu na porta com as mãos no bolso, olhando pra baixo, chateado. Recebeu um afago da avó sorridente e desceram o elevador.

- Onde vamos vó?

- É surpresa, lindo. Surpresa. – e a septuagenária de vestido florido piscou os olhos enrugados com ar de cumplicidade que calou o menino. Não deveria ser nada que ele não fosse gostar “Não lembro a última vez que a vovó saiu comigo...”

Chegando na portaria, cumprimentaram seu Manoel e o menino não se conteve: “Vou sair com a minha avó!”. Antes que o porteiro pudesse esboçar qualquer reação, a grande revelação: “É segredo!”, disse com um piscar de olhos confidente.

Entraram num táxi que já os esperava à porta. “Bom dia Miguel, vamos?”, a intimidade da avó com o taxista – aliás pareciam ter a mesma idade – causou estranhamento no pequeno rapaz. Passando pela cidade, com os olhos atentos à vó e ao motorista, simplesmente teve um “clic”: Vovó não disse pro taxista onde iríamos!

Cutucou a vó com suspeita, como se fosse fazer uma confissão:

- Vó... o moço sabe onde...

- Sabe! Já estamos quase lá, meu lindo.

Apertou as mãos com certa desconfiança entre as pernas e a irritante sensação de impotência infantil parecia presa entre seus dentes. Pensava se não deveria tentar abrir a porta do carro e pular com a senhora pra fora. Suas mãos suavam e se esfregavam nos joelhos. Não entendia o que estava acontecendo ali e começou a suar olhando para os lados, aflito.

Nesse instante aquela mão leve de pele fina e delicada fez um carinho nas mãos apertadas do menino. Fingindo não entender o que ele sentia, ela sorriu: - Tudo bem meu amor, tem banheiro lá.

- Não vó, é que...

- Chegamos. – disse em tom sério o taxista. Recebeu duas notas amassadas da mão da senhora e partiu.

Estavam em frente ao portão do cemitério da cidade. O garoto conhecia o lugar. Apertou forte a mão da avó, preso como uma âncora no chão, os joelhos totalmente extendidos, os ombros duros, suor pela nuca: - On-on-onde é que a gente vai, vó?

- Vamos arranjar um banheiro para você. – disse a senhora caminhando para dentro do cemitério.

- Ma-ma... eu não quero ir ao banheiro! – e soltou a mão da avó num puxão ficando parado no mesmo lugar. Tremia.

- Ótimo! Primeira coisa que você fez de certo hoje! Tomou uma decisão sua! Muito bem. Agora pode decidir se quer continuar essa conversa ou não lá dentro. – e caminhou a passos lentos e rígidos sem olhar para trás.

Ainda fincado como uma rocha na calçada, o menino balbuciou qualquer coisa que fosse uma boa desculpa para não ficar ali sozinho: - Vamos ver o vovô?

A voz já estava longe: - Talvez...

Correu como pôde atrás do vestido florido. Agarrou a mão da avó com força e só pensou em estar em qualquer lugar mais familiar: - Onde fica o banheiro, vó?

Depois de ir à repartição dentro do cemitério e pegar as chaves do banheiro com um senhor com as sobrancelhas grossas de taturana que faziam uma sombra enorme e horrível sobre seus olhos e alcançavam as bochechas moles e chupadas que “deveriam morar numa das tumbas”, ele saiu refeito, com ar sério e tomando sua decisão:

- Pronto vó, podemos ir embora agora!

A senhora riu do peito estufado do menino enquanto arrumava suas calças e soltou o desafio com um sorriso unilateral: - Achei que fosse mais corajoso!

- Mas eu sou! É que eu tenho dever pra fazer pra amanhã.

- Amanhã é sábado, meu anjo. – e pegou a mão do rapazote que ainda não acreditava que havia gasto a desculpa mais perfeita em seus onze anos justamente na pior hora.

Caminharam por uns três “quarteirões” – se é que se pode chamar assim as divisões internas de uma necrópole – e, para a grande surpresa, vovó sentou-se num dos túmulos que não era tão baixo, de forma que suas perninhas com sapatinhos de salto baixo ficaram pendendo no ar. Convidou com o olhar a que o neto fizesse o mesmo, mas não ao lado dela, e sim na lápide em frente a ela.

- Vovô está aí? – disse apontando para onde a avó estava sentada. Ela apontou para a frente à direita e disse: - O seu avô está pra lá!

Girou o pescoço com uma jovialidade muito estranha a alguém com aquela idade e disse:

- Essa daqui é do... da senhora Ingrid Lima dos Anjos, e a sua meu bem?

Ele olhou para trás com um medo gigantesco, sentia como se fosse voltar a cabeça e não encontrar a avó, como se o dono daquela tumba não fosse gostar dele estar sentado ali: - Mário... Medeiros, vó.

Aquele virar de cabeça, perdendo e reencontrando por míseros segundos o olhar carinhoso da avó deu ao menino toda a confiança de que necessitava para estar ali. Sua avó não fugira, ninguém havia “pulado” nele da tumba, nada. Vovó continuava ali. Sorrindo.

- Você já olhou seu cotovelo hoje?

- Como é?

- Seu cotovelo, já olhou?

Respondeu tentando olhar de perto, girando os braços: - Não, que tem ele?

- Não dá pra ver direito, amor. Estica seu braço e toca no seu cotovelo.

Ele o fez.

- Tá. Que tem ele?

- A pele é mais grossa? Estica mais que as outras?

- É, estica sim.

- Se eu te dissesse que essa pele que você tem no cotovelo é pele de dinossauro?

- Ah, vó, pára!

- Sério, dinossauro. – disse apontando para o braço do menino.

Em ar juvenil de autoridade: - Não tem como, vó.

- Claro que tem, meu amor. Já ouviu falar que, na natureza – disse a avó pegando uma semente no bolso do vestido e depois apontando para as flores próximas àquele túmulo -, nada de perde, nada se cria, tudo se transforma?

- Mas como pode a pele do dinossauro ter vindo parar no meu cotovelo?

- Ah, você está perdendo o sentido da conversa, amor... nada se perde, nada se cria, tudo se transforma! – e os olhinhos da senhora brilharam com uma luminosidade jovial que o menino nunca havia visto antes. Um arrepio lhe subiu pelas costelas até um tilintar frio na nuca. Não deveria ser nada, frio, um vento talvez.

- O que está escrito ali? Entre aquele anjo e a figura de Nossa Senhora?

- Pra lá?

- U-hum, ali.

- Re... reter.... revertere ad... locum tuum. – Não sei o que é vó.

- “Revertere ad locum tuum”, é latim, significa: “retorna ao teu lugar”. Mas não se preocupe, isso não é dito pra nos deixar pequenos diante do universo. Não. Significa que nossa jornada aqui é um fenômeno divino, do início ao fim. Que no fundo não sabemos pra onde vamos, nem mesmo de onde viemos, mas a idéia é que, seja de onde viermos, é para lá que vamos.

O garoto respirou fundo e pensou que se acelerasse aquela conversa iria embora logo dali. Esticou os braços para trás para se apoiar, começava a ficar mais à vontade naquele lugar:

- Por que a senhora está me falando isso?

- Não me pergunte coisas que você pode descobrir por si mesmo. Lembra da história que te contei, sobre os trabalhos de Hércules?

- Lembro, claro! – e olhou em volta esperançoso de ver naquelas esculturas, de outra cultura, qualquer uma das que via nos livros da avó.

- Então, o que aconteceu com o caranguejo que foi mandado para picar o pé de Hércules quando ele combatia a Hidra?

- Hércules esmagou ele e a Hera colocou o caranguejo nas estrelas. Daí ele virou o meu signo.

A senhora abriu um sorriso enternecido: - Isso. Ele virou uma constelação. Câncer. Nas histórias que eu te conto é comum que os heróis virem estrelas: o Leão de Neméia, Órion fugindo do Escorpião...

- Sei, os signos.

- Também, mas não é disso que estou falando. É comum que nas civilizações antigas se procurasse entender para onde ia a vida que animava aquele corpo que agora estava frio, pesado. Para onde tinha ido a alegria dos olhos daquele filho, as risadas do irmão, o calor do colo da mãe, as palavras da avó.

Nesse momento ele não se conteve, olhou fixamente nos olhos da senhora: - Vó, a senhora vai morrer?

- Vou!

Antes que ele pudesse descer do túmulo com seus abraços e afagos, a divertida vovó continuou: - Você também! Seus pais, seus filhos, seus netos, seus tataranetos, aquele senhor que te emprestou a chave do banheiro talvez vá antes de gente, mas morrer vamos todos meu amor.

Ainda assim ele desceu de onde se sentara, abriu os braços e abraçou os joelhos flutuantes por uns dois minutos sem falar nada.

- Senta aqui então, fica comigo. – Não resistiu a senhora.

- Sabe, teve uma época em que você só babava, chorava, fazia xixi e quase tentava escavar o ar. Suas mãozinhas eram do tamanho do seu mindinho agora, ou menores. Depois, teve uma época em que você só andava de quatro. Acha que isso aconteceu assim, de um dia pro outro?

- Ah, vó, não tem como lembrar.

- Não perguntei se você lembra, perguntei o que você acha, espertinho.

Baixou a cabeça pensativo.

- Não deve ter sido do nada. Não sei.

- Foi teu primeiro ponto de independência. Você deixou de apreender tudo pela voz e pelo corpo dos teus pais e começou a procurar o teu caminho. Foi quando eu percebi que você reconhecia a minha voz. Você era um menino esperto, mexia em tudo o que fosse colorido, quase tudo era comestível pra você naquela época. Tenho que te confessar que vi você com mais admiração naqueles dias. Era teu primeiro contato com a Morte. Não! Não estranhe! Evidente que você estava nascendo para a vida, para o mundo, recheado de expectativas, de desejos, de curiosidades, de celeridade... como você engatinhava rápido! Foi justamente isso que te apressou o contato com a morte. A partir daquele ponto nunca mais teus pais seriam o centro do universo, nunca mais seriam tudo aquilo que daria lógica, sentido e direcionamento aos teus passos. Eles podiam reclamar, brigar, te colocar de castigo, te orientar, mas nunca, nunca mais poderiam ser responsáveis por cada um de seus passos. Ali você matou seu “papai-Deus” e sua “mamãe-Deusa” onipotentes, oniscientes, onipresentes. Foi teu primeiro contato com a morte. O melhor de tudo, foi que não me lembro de você ter olhado para trás. Em nenhum momento. Talvez só bebês saibam realmente lidar com a morte.

A senhora, percebendo a receptividade conflituosa do menino à história, pegou mais uma vez em suas mãos. Mesmo que agora a vovó tivesse mãos um pouco mais frias, o menino não reclamou, apenas queria apressar tudo aquilo e ir embora:

- A grande sabedoria é estar em sintonia com o teu centro e vivenciar aquilo que está passando, não como mutilação, que é uma perda destrutiva e sem sentido, mas como sacrifício, que é a troca, é a perda em função do ganho em algo maior. Passamos a vida em fases, que morrem. Só podemos aprender algo com as fases se aprendermos algo com a morte. Passamos a primeira fase da vida nos nutrindo através da fertilidade alheia e do trabalho alheio que nos proporcionam subsistência e forças para nos formar. Temos uma memória fugaz, uma discriminação frágil entre as polaridades. Bom é o que sacia nosso desejo; Mau o que cerceia e dificulta. Essas fases não vêm com a idade. São apenas fases - tem quem viva a primeira fase até os noventa anos de idade, acredite! - e só precisam de um elemento para podermos viver além do universo delas: é preciso deixar que essas fases morram. Passamos a segunda fase da vida na organização e no dever, no status, na labuta – significa trabalho, meu amor -, compreendendo o sentido do sacrifício e do mérito. Estendemos nosso campo de ação para lidar com a vida, nossa consciência cria mil e uma estratégias, estereotipa – cria um modelo, amor – de conduta, padroniza normas. Normalmente recebemos a compreensão de que somos responsáveis por nossas vidas até o momento de nossa morte. Muitas vezes os traumas de deixar que a primeira fase de nossa vida realmente morra são tão grandes que acabamos nos impondo pela agressividade, competição e conquista. É uma fase intensa, mas ainda assim é preciso deixar que essa fase morra. Se deixarmos que ela realmente morra, poderemos desfrutar da terceira fase da vida, que gira em torno da criatividade e da compaixão, onde não é mais necessário provar nada, além da nossa capacidade, às vezes enferrujada pela segunda fase da vida, de perdoar a nós mesmos aqui e ali. Porque no fundo, só podemos perdoar a nós mesmos, mas está tudo bem, é tudo que realmente precisamos. Ainda agora é preciso deixar que essa fase morra. Sim, tem mais! Caso consigamos viver essa última morte, perdoado e rido muito de milhares de pequenas atitudes fúteis – que tiveram sua razão de ser, nem que fosse a gargalhada enorme que damos quando nos revemos em certas ocasiões, pensamos nossas palavras, gestos, fricotes, acessos... enfim, caso consigamos viver essa gargalhada de choro e perdão de ninguém mais que nós mesmos, aí sim poderemos viver a quarta parte da vida. Uma parte de desprendimento e talvez até de uma certa onipresença que antecipa o que viveremos daí em diante. Viver essa quarta fase é ter total controle sobre a morte. Sei que um dia você vai vivê-la, talvez antes do tempo que eu precisei para vivê-la, espero, e vai se lembrar dessa nossa conversa. Aliás, aqui está algo que eu preciso que você se lembre sempre: ou vivemos a morte sacrificando – tornando sagrado – e ultrapassando todas as fases de nossa vida ou deixaremos que a Morte se instale sobre nossos ombros como um gigantesco corvo negro do qual jamais poderemos suportar o peso ou as garras.

Abraçou o neto com carinho enorme. Deu-lhe dois beijos no topo da cabeça e abraçou o pequeno por muito tempo, tempo suficiente para que a respiração deles fosse a mesma, seus batimentos os mesmos, e o perfume familiar adormeceu aquele menino.

- Levanta garoto! Dia de aula!, disse seu avô cutucando os ombros moles do menino às seis horas da manhã. Foi até a parede, benzeu-se para o retrato de sua avó e correu o dia.

Receita e Conto: ®Ҝ

7 comentários:

Nath disse...

É fato que vivemos fases em nossas vidas, fases que vêm e vão passando e o importante é que nós deixemos que as nossas fases nos transformem em pessoas melhores, mais evoluídas... Viver bem é uma questão de escolha... temos que tomar cuidado com as nossas escolhas, porque sempre, sempre temos a opção e só cabe a cada um de nós decidir qual é o melhor caminho...

Adorei seu texto primus, você manda bem demais!!!! beijos com carinho!!

Nath

Anônimo disse...

engracado essa parte do gravador... jah gravei minha vozinha algumas vezes, exatamente querendo eternizar a voz dela... muito bom!!! bjo no primo

Anônimo disse...

Adorei o texto !! é verdade q a vida e feita de fases , é importante q a vivemos com intensidade e saibamos evoluir para chegar a maturidade ..o mistério da vida !!!

Adorei o seu blog super bonito e de bom gosto Renato uma surpresa agradavel !!! Bjos

Ana Rachel disse...

muuuuito bom, mesmo! O ponto alto do conto sao as descricoes! Detalhadas e bem escritas a tal ponto que vc imediatamente se transpõe para a história. Só acho q nessa parte aqui "Depois de ir à repartição..." até o fim do parágrafo, vc poderia pôr ou vírgula ou ponto. Pq fica muita descricao e metáfora entre e e e e "ques" que dificultam um pouco a "leitura à primeira vista" desse parágrafo. Mas está realmente excelenteris ;)

bjs

Ana Carolina disse...

Hey Simba,

Gostei, para variar, mas às vezes é legal escrever algo sem sentido,p/ seu ego ficar confuso, meio sem saber se fora elogio ou não. :P

Bjs,

Ps: q história foi aquela da hora?

Celia Marli disse...

A mudança é universal, e o desenvolvimento é incessante. Nada é estático. Mesmo quando decidimos não agir, tudo à nossa volta se transforma, porque a realidade é movimento. Cabe-nos participar dele e descobrir nossa função dentro desse movimento, meditando sobre a nossa participação ( 2), de tal maneira que possamos obter a síntese necessária ( 3) para agirmos (4) inteiramente inseridos no contexto coletivo ( 21). Ter consciência das transformações e também produzi-las, possibilitando adiante alcançar (17) o pleno desenvolvimento do Ser ( 19), que nascerá em outro nível de consciência (20).
Parabéns, gato, pela profundidade do texto mas lembre-se que não basta ter conhecimento ... o importante é usá-lo no dia à dia ... assim agiremos sempre com sabedoria. Um beijo carinhoso.

Anônimo disse...

Adorei! É possivél compartilhar a curiosidade do menino e as descrições nos transportam para dentro do texto.. O conto acaba por nos levar a fazer uma reflexão sobre a nossa própria vida e forma como a encaremos... Simplesmente adorável! Beijo!

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?