terça-feira, 28 de outubro de 2008

Ressaca


- Alô? Não, não, escutaí que é DDD e eu preciso te falar isso!

Essa é uma das noites em que, daqui, meu corpo translitera qualquer nota, qualquer som que se expande entre as batidas do coração e, sentado nessas pedras, se coordena com as ondas numa dança divina.

- Não, eu não bebi não. Tá eu bebi, mas não decorei isso. Escuta:

Não duvido de que essa noite irá passar, talvez carregue com ela esse sentimento, essa sintonia táctil entre meu corpo e as águas. Como fases da vida, essa noite irá passar. Meus sentimentos de hoje por você também vão passar. Serão marolas, tormentas; nunca o que são agora. Por isso tenho que te dizer isso hoje. Amanhã eu desdigo tudo, então escuta.

Temos instantes de yin e yang em nossa jornada. Íntimo, público. Às vezes estamos mais expostos, mais expansivos, mais falantes, às vezes mais centrados, mais sensíveis, precisando de um tempo nosso, de um espaço, sincronia fina entre nós e nós mesmos. Como as ondas do mar que puxam e empurram as batidas aqui dentro.

- É, é, eu to empolgado. Culpa tua.

Nesse tempo, nesse espaço, aqui, sou o mar. Talvez um símbolo qualquer da dinâmica dessas fases, útero e fim da vida. Sou nascimento e transformação em mim mesmo. Esse mar em movimento, esse estado transitório de potências germinantes e realidades configuradas. Sou essa qualquer situação de incerteza, dúvida e indecisão. Posso dar alimento por meses, transpor milhas em calmaria por anos, afogar em minutos, arrastar em segundos uma cidade inteira de pensamentos e sentimentos dentro de mim.

A sabedoria dos antigos oferecia cavalos e touros – símbolos de fertilidade e vida – como sacrifícios ao mar. Às vezes é preciso sacrificar um pouco do que poderia gerir-se em mim para aplacar um possível tsunami ou quaisquer monstros das profundezas, imagens, memórias, projeções. Às vezes é necessário tentar escapar pateticamente do naufrágio inevitável da vida.

- Pensei em você. É, você.

Percebi com carinho que você é minha lua. É a contagem do tempo, a regra, a doce certeza da inevitável renovação; transformação e crescimento. Tem suas fases, suas semanas, suas idas e vindas. Quando cresce, decresce e desaparece pontua a lei universal do meu vir a ser, meu nascimento e morte. Essa morte indefinida, pontual e não definitiva influencia minha água, minha chuva. É o instrumento da minha medida universal. Nenhum dos meus antepassados teriam dominado a agricultura, as caçadas, a pesca, a vida, não fosse observando tua variação periódica. Você é um símbolo de passagem, da vida em morte, da morte em vida. Ainda não percebi – mar que sou, vasto, intenso, indeciso, incerto – se estou vivo, e morro através de você, se estou morto, e vivo em você.

- Não, isso não é uma declaração. Ao menos eu não tenho a intenção que seja. Não, não! Só escuta:

Entre os astecas as divindades lunares – que eram uma família – são os deuses da embriaguez; porque o bêbado, que adormece e acorda sem nenhuma recordação, é uma expressão da renovação eterna. Estranho que o único fato dessa renovação é a tatuagem na minha memória com o teu sorriso luminescente. Aqui não há esquecimento. Por outro lado seria ridículo dizer que me embriago da lua, pois, como o mar, nunca te toquei.

Olhando seus olhos, seus lindos olhos lunares, vejo a fertilidade do coelho guatemalteca, a fidelidade do cachorro mexicano, a velocidade e a astúcia do jaguar e da raposa peruanos. Cada mundo me ensina um aspecto das tuas possibilidades: Héstia, Diana, Selene. Buda meditou vinte e oito dias sob a árvore “bo”, um mês lunar, um ciclo perfeito do universo sob seus olhos, antes de chegar ao conhecimento perfeito dos mistérios do mundo. Eu ainda estou mareado aqui...

Na verdade eu tô enrolando demais pra falar uma coisa simples. Só queria escrever uma frase, com toda essa minha viagem e te mandar numa garrafa: “Quando tua lua cheia, minha maré sobe.”

Conto e receita: ®Ҝ

7 comentários:

Nath disse...

Quanta magia nas suas palavras!! Tanto sentimento e tanta intensidade!! Adorei o texto primo!! Conheço seu sentimento por vivenciá-lo todas as vezes que agente se encontra no RJ!!! Beijos com carinho e muito obrigada!!!!!

Unknown disse...

Sensibilidade a flôr da pele, romantismo acentuado ... mas estar nos domínios da Lua é dançar na corda bamba ... já dizia hemingway
"De dia é muito fácil enxergar as coisas de uma maneira sensata e não sentimental. À noite, isso é uma outra história." Bjs

Unknown disse...

Sensibilidade à flor da pele, romantismo acentuado; mas estar nos domínios da Lua, é dançar na corda bamba ... já dizia Hemingway " De dia é muito fácil enxergar as coisas de uma maneira sensata e não sentimental. À noite, isso é uma outra história." Eu recomendaria cautela e prudencia ao personagem. Bjs. Celia

Ana Carolina disse...

... algumas pessoas são assim, outras...assado. :P
Odeio você ! ohh, quero dizer, rs, o contrário? Das profundezas de um pires, vc amanhã!... ou melhor vc de saias...:P

F.S. disse...

Por que eu fui ler esse conto agora, à noite? Essa lua, esse conhaque, fico comovida como o diabo... rsrs Cara, ler você tá me dando um vontade de escrever de novo, mas uma vontade! Adorei.
beijos

Alba disse...

Lua...luar...Vivo nos "domínios da Lua, dançando na corda bamba"...
Não, o correto seria dizer: vivo dançando sob a Lua e para a Lua,rsrs..Esse conto encanta,os "lunáticos" de plantão agradecem por toda essa tua sensibilidade..Lindo!

Janara Morenna disse...

Para você, mar serei o abraço que enlaça e comporta dois corpos que repousam aninhados e em sono vital. Espero que em suas noites, quando solitário, eu seja a lembrança que aquece e traz o porvir de um futuro traçado pelo trançado dos nossos corpos.
Obs: Minha luz-luar se aquece com o reflexo do sol que vejo no seu mar.
Com afeto,
Janara Morenna

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