sábado, 9 de maio de 2009

O saco


O cheiro é de carne estragada, quem não conhece não diferencia do cheiro de merda. Insuportável. Arde a carne da narina. Depois de quarenta minutos descendo por um desfiladeiro numa embrenhada lateral quase esquecida no morro dos Cabritos, Joca e seu sobrinho encontram o saco preto embrulhado em fita isolante. Geralmente não tem cheiro. Essa semana foi aniversário de Carlinhos e eles atrasaram dois dias no "arremate", como chamam.

- Algum cachorro deve ter rasgado a porra do saco. Que merda! Agora jaé, Carlinho, jaé! Aceleraê!
O garoto desviou da galhada, pulou por cima do saco, se agachou por trás e já subiu levantando aquela massa mole e pesada que escorria e dobrava no meio.
- Vira pra cima porra! Assim vai cair! Deixa que eu pego essa ponta, pega alí ó. Isso, isso!

O fedor era tão intenso que assim que posicionaram o saco nos seus braços correram desengonçados de qualquer maneira morro acima. Carlinhos desviou do galho retorcido sob seu pé esquerdo, mas se apoiou com tudo numa pedra solta que escorregou seu corpo de cara naquele saco inflado de lixo. Seu nariz entrou com tudo num rasgo longo daquele saco. Seus pêlos todos se eriçaram imediatamente, as mãos, hipersensíveis, empurraram seu corpo para longe, a ardência na parede do nariz, na boca, na alma era forte demais. Puxou o vômito amarelado de arroz, cenoura e galinha por cima do saco empapando a camisa.

- Porra Carlinho, levanta daí, maluco! Pensa não, depois tu limpa. Vem, vem cara!
A tontura enfraqueceu os joelhos de Carlinhos, seus olhos estavam embaçados e por alguns instantes estranhou um frio no lado esquerdo da barriga.

Sobre o morro estava estacionado o caminhão de lixo de 1976 que seu tio usava para recolher as sobras do trabalho dos que comandassem o morro naquele momento. Era um serviço de "despacho", como tio Joca dizia. "Com o lixo do morro vai embora o lixo do morro" e outras ditados que animavam aquela jornada. O mais famoso? "Sempre traga saco extra". O preço não se negociava, era fixo. Duplicava com dois, triplicava com três, matemática elementar. Tinha um percentual pro "Bira", que era o lance de cremar e tudo, de noite, o resto era conqüenta-cinqüenta pro Joca e pro Carlinhos. "Pro futuro do moleque", ele dizia a Alzira, sua irmã.

O caminhão já estava a caminho e o Carlinhos estava quieto demais. Cabeça pra fora da janela, corpo virado pro lado, braço mole.
- Tá legal, Carlinho? Carlinho? Carlinho!!
Puxando pelo braço do sobrinho como que para acordá-lo, Joca viu o corpo mole escorrer para cima do seu, enfiou o pé no freio e botou a mão pra fora mandando as buzinas todas tomarem no cú. Colocou a cabeça de Carlinhos em cima de sua coxa e vasculhou sua roupa imunda de vômito. Passando a mão com pressa pela camisa Joca sente Carlinhos contrair ainda mais as pálpebras em dor e nota que o molhado do lado esquerdo do abdômen estava quente. Um caco de vidro tinha penetrado fundo, talvez até o rim. O sangue escorria quente e sem parar. "Como é que a porra do moleque não me fala nada?"

Não podia deixar o caminhão, pegar um táxi, que fosse rápido ao hospital. "O reboque vai fudê tudo", pensou. Não podia deixar o caminhão, não podia deixar o sobrinho. Meteu o pé pro Miguel Couto, acelerou, rosnou atrás de todos os carros, buzinou, gritou que era emergência. Ouviu gracejo de playboy, policial gesticulando, madame gritando assustada. Estava no posto ao lado do Jóckey.

- Porra de sinal filho-da-puta! Güenta, Carlinho, güenta porra! Tú é forte moleque, segura!
Foi quando viu um policial se aproximando, gesticulando para que ele aguardasse. Joca ouviu o barulho surdo do corpo de Carlinhos escorregando sem vida para frente do banco, olhou o policial, o Miguel Couto a cinqüenta metros. Carlinho caído. Policial. Miguel Couto.

O sinal abriu. Joca acelerou o que pôde, passou pelo Miguel Couto, seguiu em frente, Lagoa-Barra.

Emprego fixo tá foda. Carlinho era moleque safo. Sempre tenha saco extra.

Conto e receita: ®Ҝ

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá Renato, passei pra conhecer
seu blog, e vejo que suas crônicas/contos são bem interessantes, gostei ...

Abraços
Marco

Vivian Chen disse...

Oi Mocinho! Ai que desespero esse conto.. Achei interessante essa mudança de valores, que é real pra muita gente, embora eu ache absurdo.. Um conto que surpreende. Parábens! Beijo!

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?