quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Hannah




- Oi!
- … oi.

Atravessaram a faixa em botafogo e seguiram em direção a uma rua entre a Cobal e a Real Grandeza. Ele mergulhava o queixo no peito, mordia os lábios, apreensivo. Ela olhava os prédios ao redor, parecia pensar por imagens que se formavam à sua frente. Na outra calçada deu um soco no ombro dele.

- Muito doido isso, não acha?
- Muito...
- Cara, você é muito maluco. Me cutuca no Orkut, me faz ir atrás de fotos de vinte anos atrás pra lembrar de você, fica semanas conversando comigo marcando de gente vir aqui até a curiosidade juntar com a falta de saco de dizer “não” de novo, aí eu venho e você fica paradão, viajando.

Olhou para ela com carinho, mas com um olhar confuso, como se não reconhecesse ali, a coisa de trinta centímetros de seu rosto, Hannah, sua namoradinha de jardim de infância.

- Você sempre teve olhos verdes?
- Não, mandei pintar antes de vir - É veludo acetinado semi-brilho! – claro que eu sempre tive olhos verdes, doido.
- Não. Pra mim você tinha olhos castanhos e cabelos pretos... e o penteado da Lois Lane, mas cabelo a gente muda e até ficou melhor assim, mas cor dos olhos... sempre foi castanho, e escuro, pra mim.
- Volta lá no teu HD e passa o Photoshop então...

Deram mais alguns passos para dentro daquela perpendicular entre a São Clemente e a Voluntários. Ele olhava para os pés dela. Ela para os olhos dele.

- Quer dizer que meus cabelos ficam melhores mais longos, mas meus olhos ficariam melhores castanhos?
- Não é isso. É que na minha cabeça você era uma Penélope Cruz, ou uma Catherine Zeta-Jones, não Liv Tyler. Faz parte da imagem.
- Uhu! Liv Tyler, tô bem hein! Boa cultura hollywoodiana, doido. Por isso eu não queria te encontrar. Não íamos nos conhecer, quer dizer, eu ia, ou eu vou. Já nem sei. Mas você quer resgatar uma imagem de Hannah que não existe. Talvez nunca tenha existido.

Parou. Segurou pelo braço o rapaz e olhou firme em seus olhos. Ainda havia alguma sorte de repugnância no olhar dele. Repugnância não porque achasse os olhos verdes feios, simplesmente eles estavam errados. Talvez não tivessem consciência de seu erro e por isso insistissem nele. Fechou e abriu lentamente os olhos, disposto a vê-los assumir a cor da infância, a cor da memória, ou aceitar o que viesse: ...verdes!

- Cara, relaxa, eu saí com você, não saí? Não estamos indo passar onde era a nossa escolinha? Pelo menos admito que você me intriga, que fico curiosa, que adorava como gargalhava das tuas bobagens na internet, que algum interesse tá acontecendo aqui. Meus olhos são verdes e eu não posso competir com uma imagem. É surreal... e injusto.
- Desculpa. Foi... tá sendo... estranho. Você tem razão, é que algo do teu charme tava na aura da beleza pela atmosfera que te envolve, mais que na beleza bruta.
- Minha beleza é bruta?
- Duas pedras nos teus olhos.
Franziu a testa de uma forma que duas mechas castanho escuras lhe caíram pela face, enquanto contraía os lábios:
- Pedras?
- Esmeraldas.
As laterais de seus lábios se elevaram carinhosamente enquanto a área entre suas sobrancelhas se alisava e a cabeça pendia levemente para a esquerda:
- Elogio grosseiro mais bonitinho que já recebi.
- Desculpa.
- Nem tem do quê. Continue assim e estaremos bem. Vamos sentar ali? Naquele café?
- Mas o Colégio é bem ali, na outra curva.

Enquanto entrava no café e puxava uma cadeira, disse, de costas:
- Planeja morrer hoje?
Ele sequer puxou a cadeira que já havia alcançado, à frente dela. Pousou a mão sobre o encosto de madeira e olhou atônito enquanto ela sinalizava que sentasse.
- Como é?
Hannah respirou fundo e desceu os olhos dos dele até o cardápio lentamente enquanto ia falando:
- Planeja morrer hoje? Tem planos de deixar esse mundo material nas próximas horas? Pretende resgatar algum sonho de pureza transcendental, infantil e assexuado num relacionamento doentio com uma pessoa que provavelmente você preferiria não conhecer porque ela não tem mais 6 anos de idade e seus olhos não-castanhos e sua altura de mais de um metro e meio poderiam te assustar? Então: você não vai resgatar isso, essa imagem, essa criança. Nem a sua nem a da Hannah. E se você pretendesse que o resgate que você está procurando fosse dar algum sentido para a sua vida... e sabendo agora – porque eu estou te falando – que ele não vai acontecer, porque diante de você existe outra Hannah como diante de mim existe um outro cara que não meu namoradinho de seis anos de idade, isso podia mudar a direção de tudo. Talvez tudo perdesse o sentido. Você não vai resgatar a “Hanninha” depois daquela esquina, daqui a meia hora. Agora que já ficou bem claro: você planeja morrer hoje por causa disso? – disse quase sem expressão enquanto lia o cardápio.
- Não...
- Então podemos ir lá daqui a meia hora. Gosta de cappuccino?

Conto e Receita: Renato Kress

Um comentário:

Anônimo disse...

Realmente interessante o texto, bem apresentado, palavras bem colocadas. Parecia que eu lia minha "história".

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?