sábado, 10 de outubro de 2009

Rosas




Sandra achava ele lindo. Seus olhos castanhos eram levemente puxados, não como orientais, mas como dos esquimós, como da Björk, quase Richard Gere. Alto, cabelos pretos lisos e com um olhar entre a indiferença entre aquela tarefa e a curiosidade sobre as reações dela. Já era a terceira vez que ele vinha à sala de Sandra entregar uma carta linda, mas dessa vez trouxe flores. Sempre de calça jeans e uma camisa social, ele se aproximou e as meninas do escritório todas fizeram piadas e gracejos, o Almeida levantou e foi ao banheiro, claramente irritado com o ibope do rapaz.

Sorriu muito timidamente para Sandra e entregou-lhe as rosas colombianas, gigantes, com um cartão preso no arranjo por um clipe de papel verde de tamanho descomunal. Os olhos de Sandra passaram completamente através das rosas e se encaixaram fixos sobre aqueles olhos castanhos repuxados. Ela quase conseguiu ver um sorriso naquele olhar, mas mesmo que ele existisse, ela não veria, tal era a proximidade que estava daqueles olhos. Entre eles, as rosas colombianas.

O rapaz deixou as rosas nas mãos de Sandra e virou-se rápido para a porta da sala. Em quatro passos já estava virando à esquerda e saindo da vista de todos, deixando a pergunta sobre o nome dele na boca entreaberta de uma Sandra que segurava o buquê com o interesse que seguraria um papel qualquer do escritório.

Ignorando olhares e comentários, sentou-se atrás de sua mesa e ficou olhando fixa para a porta, como se aquele lindo entregador viesse aparecer a qualquer momento para trazer qualquer outra carta, flor ou bom-bom que seria prontamente ignorado. Percebeu que o buquê era enorme e que ela estava abraçada a ele, pensando nos olhos castanhos. Colocou de qualquer forma o buquê em cima da lata de lixo – era o que mais se aproximava de um vaso por ali -, tirou a carta do clipe e colocou em cima da mesa. Voltou ao trabalho com a cabeça recheadas de imagens do dia em que aquele entregador trouxesse flores dele próprio, mesmo que fosse apenas uma rosa, e das pequenas.

Às seis horas arrastou tudo o que havia dentro da mesa para dentro da bolsa e saiu apressada para nada. Mentira, apressada para uma aula de spinning, outra de boxe e uma noite de quinta-feira com sorvete de macadâmia e filme na TV a cabo. As flores ficaram no lixo e foram pegas pelo seu Antenor, da manutenção,cuja esposa teve uma quinta-feira inesquecível.

Em casa, depois de levar dois cruzados na aula de boxe por baixar a guarda para ver no espelho se seu cabelo estaria bonito, abriu a bolsa de cabeça para baixo em cima da cama para fazer seu ritual de troca de bolsa de trabalho para o dia seguinte.

Entre cadernos, agenda, celular, contas e revistas de moda e comportamento viu o envelope verde claro da carta que veio junto com as flores. Respirou fundo afetando uma careta de indiferença, quase como se imaginasse que estaria mostrando ao rapaz de olhos castanhos que não dava a mínima para quem quer que fosse o tal admirador secreto, se recostou na cama com a carta na mão e o controle remoto na outra.

Ainda faltavam cinco minutos para o filme. Abriu o envelope, que começava com uma citação:

“São João da Cruz faz da flor a imagem das virtudes da alma e o buquê que as reúne é o símbolo da perfeição espiritual” – Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, dicionário dos símbolos.

“A flor é idêntica ao elixir da vida e a floração é o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. A rosa, particularmente, traduz a alma, o coração, o amor. Quando nos aproximamos para sentir seu aroma, delicado, aproximamos o nariz do centro da rosa e, se olharmos para ela assim, é possível contemplá-la como uma mandala perfeita e considerá-la como um centro místico. A rosa vermelha, por sua relação com o sangue derramado, converte-se na imagem de um renascimento místico.

Quero renascer em você.

Sei onde você trabalha, mas só isso. Quero que você me diga, quando quiser, as demais informações. Por favor, deixa seu telefone com o entregador amanhã às onze.”

Sandra jogou a carta de lado e ficou pensando em como o Eric Bana estava lindo e gostoso como Heitor em Tróia. Por quase uma hora e meia, até desmaiar.

Acordou atrasada e com as roupas de ontem, tomou um banho corrido e um iogurte, colocou comida para a gata, uma maçã e um cacho de uvas num saco plástico dentro da bolsa e saiu.

Às dez e cinqüenta e cinco um marca-passo imaginário prenunciaria um ataque cardíaco em Sandra. Era a primeira vez que sabia quando o entregador viria. O dia e a hora. Onze em ponto e os olhos fixos de Sandra deixavam sua boca seca, não fosse o batom e o entregador – que ainda não tinha aparecido – veria seus lábios esbranquiçados, todo o fluxo de sangue parecia estar indo para a boca do estômago, seus dedos, imóveis sobre o teclado, pareciam não ter peso algum e também não ter força nenhuma.

Às onze e três ele chegou, acompanhado de uma inspiração profunda que elevou os seios de Sandra e travou-lhe as costas. A língua, livre, percorreu os lábios e o interior da boca, umedecendo, receptiva. Quando deu por si o rapaz, alto, já estava de frente para a mesa de Sandra, parado, esperando.

- É... oi. – levantou-se às pressas e tropeçou na lata de lixo, foi quando percebeu que as rosas não estavam mais lá – você está esperando um cartão ou um papel, certo?

- Isso. – disse o rapaz, com os olhos cravados nos olhos dela.

Sem tirar os olhos daqueles olhos incríveis do entregador, Sandra respirou e disse:
- Eu decidi que não posso entregar esse papel para o seu chefe.

O rapaz deixou que seus lábios e olhos se abrissem de leve denunciando um ar de espanto, olhou para o chão por alguns milésimos de segundos, piscou e voltou a encarar Sandra quando percebeu que ela procurava o olhar dele com o dela:
- Não posso entregar esse papel porque estou interessada em outra pessoa. Uma pessoa que eu tenho visto bastante ultimamente e que tem me feito ignorar rosas, cartas, declarações esperando o momento de ela atravessar aquela porta ali, dia sim, dia não, com alguma carta linda, mas que não me move a nada, porque tem um cara muito mais interessante, que traz essas cartas.

O entregador, com uma expressão indecifrável, como se buscasse algo na memória, diz:
- Bem, meu... patrão disse que esperava que seus gestos de carinho e afeto pudessem ser valorizados com uma chance, um passo, um movimento, um telefone.

Um sorriso complacente, como o que damos a crianças, passou pelo rosto de Sandra, enquanto sua cabeça negava o pedido e seus olhos permaneciam fixos nos do entregador.

Ele mordeu os lábios, expirou rapidamente como se perdesse todo o ar até então rígido e sério com que se portava e assumisse repentinamente uma expressão corporal e facial de quem pode facilmente dominar o ambiente e diz:
- Quer dizer que nenhuma das ações dele, nenhum gesto de carinho, interesse, dedicação serviram de nada? Não importam suas ações?

Ela mordeu os lábios achando toda aquela mudança de postura muito, mas muito sexy mesmo. Estava se derretendo na frente de seus colegas de trabalho.

- Não.

- Que pena... Quando sentei do seu lado no restaurante aqui da esquina, a duas semanas, e ouvi você conversando pelo telefone com sua mãe, acreditei realmente que você fosse valorizar determinados atos. Você disse a ela: “Não mãe, não existe esse tal cara que entrega flores, que escreve bonito, é carinhoso e sensível. Se existir é gay, tá casado ou não vai querer nada comigo.”. Te achei uma mulher linda, mas além disso, principalmente, uma mulher que fosse valorizar os atos de um cara carinhoso e sensível.

A boca aberta entre o espanto e um esboço raso de sorriso de Sandra gaguejou sons indistintos enquanto a mão do “entregador” pegava na dela e ele sorria.
Ela olhou pro chão, piscou os olhos e olhou para ele pela primeira vez como um homem. Apertou suas mãos nas dele.
- Desculpe.

Ele sorriu e piscou o olho esquerdo.
- Que isso não se repita!

Conto e Receita: Renato Kress

6 comentários:

Aamanda M Gomes disse...

Não queria estar na situação da moça. Parece que ela cometeu uma garfe terrível por ter somente se atraído pela aparência dele.Talvez até por inocência ela não teria notado que os gestos, os olhares e forma de se pôr do rapaz era porque ele era o tal interessado nela e não um simples mensageiro. O conto é interessante pq parece mostrar q as pessoas desacreditam no q realmente querem e Sandra achava que um homem assim só aconteceria nos sonhos dela. Parabéns Renato!

Unknown disse...

Parabéns Re, mais um conto belíssimo!

"... Te achei uma mulher linda, mas além disso, principalmente, uma mulher que fosse valorizar os atos de um cara carinhoso e sensível..."

É esse o cara que todas nós mulheres desejamos ter! Mas como nós nunca estamos satisteitas com o que temos, acabamos por agir igual a mulher do seu conto e nao damos valor ao cara "carinhoso e sensível" que está bem diante dos nossos olhos. Hoje em dia, porém, essa atitude vem tanto das mulheres quanto dos homens.
Infelizmente...

Beijo,
tati

ânja disse...

A-D-O-R-E-I!
adoro cafés... toda hora, todo o tipo...
só não os tomo mais depois das 17 horas... exceto...

abraços... de uma linguagem esquecida...a dos anjos...

ânja disse...

Fico distraída com tantos cafés a mão...
e tua imagem fazendo café... não termino os textos...
me distrai...
te voglio tanto bene...

Anônimo disse...

Queria esse entregador para mim. E acho que encontrei.
Cuidado com o que deseja...
Lindo o conto.
PS.

Inês Alves disse...

Nossa!!Muito lindo esse conto!Que sensibilidade a sua!Me arrepiei do início ao fim!

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?