quarta-feira, 14 de julho de 2010

O bem mais valioso?



"Tenho que controlar minha respiração. Não falta muito. Depois de atravessar os muros desse palacete pelas paredes laterais, próximas às montanhas irmãs e ao Floresta das Folhas de Ouro, falta cada vez menos...", era o que pensava Ieresmieth, o mais novo candidato à Guilda dos Ladrões de Angabar.

Seis horas atrás, numa clareira na Floresta das Folhas de Ouro, Ieresmieth se encontrava com seus superiores, a Guilda dos Ladrões de Angabar. De olhos vendados, sentado sobre a relva amarela daquela floresta outonal, ele teve de indicar, fincando um alfinete com uma fita laranja no chão, a chegada de doze outros ladrões. A direção do alfinete deveria ser uma linha reta entre ele e quem chegasse. O momento de fincar o alfinete? Quando tivesse certeza de que alguém se aproximava. A certeza de que nenhum dos outros estaria roubando? Ele só deixaria de passar nessa prova se alguém se aproximasse o suficiente para lhe tocar a cabeça. Ao abrir os olhos, depois de fincar o último alfinete na relva, viu Salthimankar, um dos mais talentosos da Guilda, suspenso de ponta-cabeça por uma corda atada a um galho de árvore, com os dedos esticados, a menos de cinco centímetros de sua testa.

Foram-lhe dadas instruções muito precisas sobre o que fazer, embora nenhuma sobre como fazer. Era necessário entrar no palacete cinza, próximo à saída para as Montanhas Irmãs, e voltar de lá com a posse do bem mais valioso.

Os muros do palacete, não especificamente altos, mostravam pouco mais de dois metros e eram encimados por grades simples, de cobre vagabundo. O silêncio, característico da falta de guardas, talvez indicasse algo a mais. Ele deveria até o nascer do sol cumprir a tarefa e, naquele momento, percebeu que teria de se apressar no futuro, porque agora era hora de se concentrar, esperar. Tirou de dentro de um dos vários bolsos de seu casaco uma serpente vermelha e a jogou ao chão, próximo à luz de uma tocha, a meio caminho entre o muro e o palacete. A luz da tocha era essencial, caso quisesse colocar a descoberto a armadilha daquele silêncio todo.

Não teve de esperar muito. Em menos de dez segundos, o chão ao redor da cobra foi revolvido, formando três pequenos montes dos quais vieram à luz três grandes karmlags, ou cães-toupeira, uma espécie de cães de guarda muito comuns... a mil milhas de distância a noroeste daquelas terras! "Hum, não é uma casa comum".

Contornando a casa por cima do muro, descobriu o melhor modo de entrar: a porta da frente. Na verdade, não exatamente a porta da frente, mas um pouco acima dela havia um gárgula de marfim que servia de base para uma varanda e, um pouco abaixo dela, três degraus de mármore distanciavam a casa daquele chão sensível a quaisquer formas de vibrações. À distância que se encontrava, seria impossível saltar diretamente para os degraus. Teria de pular ao menos uma vez sobre a terra para depois saltar de novo sobre a soleira da porta.

Tirou uma flecha da aljava, amarrou uma corda com um guizo sobre essa flecha e esperou, observando a copa das árvores mais próximas. Aguçou audição e olhar até identificar um morcego, e mirou um pouco atrás do que via. O zunido seco da flecha encontrou o peito de uma coruja, predador natural do morcego. Aquele tiro cego lhe rendeu um sorriso que disparou seus batimentos e mais uma vez se repreendeu por se obrigar a perder tempo, controlando a descida dos seus batimentos enquanto saltava sobre o chão de terra batida e puxava atrás de si a coruja com o guizo. Ao pisar sobre o mármore, depois do segundo salto, recolheu a corda atada à flecha, sem a presa. "Os malditos bichos são rápidos!".

Saltou, fincando as mãos na mandíbula do gárgula e, em poucos segundos, estava do lado de dentro do segundo andar do palacete. Ao dar seus primeiros passos se afastando da varanda e esperando a vista se acostumar à pouca luz que vinha de fora, simultaneamente sentiu um frio nas costas e ouviu passos muito leves e despreocupados. Passos de mulher. Como suspeitava, a tapeçaria que recobria as paredes  sistema de aquecimento para aqueles dias frios e secos escondia um nicho, com uma estátua. Ieresmieth prendeu a respiração e dividiu o nicho com a estátua de olhar fixo. Poderia imaginar mil companhias piores para aquele momento. Ouviu os passos femininos se afastarem na mesma velocidade com que se aproximaram. Esperou ainda três minutos, depois de ter a certeza de que já estaria a salvo para sair e, agachado, meteu os olhos para fora do tecido. Nada além de um corredor sem aposentos. Percorreu o corredor a passos silentes e, com as mãos, sentia o vento que percorria, por trás das tapeçarias, os vários nichos. Até que não sentiu a brisa.

No vácuo entre os ventos, encontrou uma porta de ébano, rígida, com uma tranca simples. "Simples demais para quem tem karmlags no quintal!", observou, pela fresta da porta, num aposento, um pequeno altar em madrepérola e um anel de ouro branco com algumas gemas preciosas, sob a luz do luar. Olhou de novo a tranca. "Simples demais!". Olhou de novo o anel e a luz da lua. "Sagrada deusa, obrigado!", pensou. Pensou e saiu do corredor. Voltou à varanda percebendo que, embora não ouvisse mais os passos femininos, também não ouviu nenhuma porta se abrir ou fechar. Tentando desanuviar a mente, escalou o exterior do palacete até a claraboia, por onde o luar entrava para alumiar aquele anel. "Pequena demais!". Mas mesmo que fosse grande o suficiente, ele não colocaria seu corpo dentro daquele aposento. Desceu um pequeno gancho preso a um fio de seda, com o qual pescou o anel, sem problemas.

Voltando para a varanda, com um sorriso negligente, deixou-se cair agachado  de forma a não fazer ruído com seu impacto já pensando em como faria para sair. Mas foi surpreendido por outro barulho: uma inspiração, profunda e rápida! Um susto! Virou-se o mais rápido que pôde, sendo pego de surpresa pela coisa mais bela que já havia visto: a dona dos passos femininos. A mão direita de Ieresmieth imediatamente cresceu sobre aquela boca delicada, enquanto a esquerda passava por sua cintura. Seus olhos negros se envolveram com os olhos verde-esmeralda daquela menina e ele percebeu, na respiração dela, que ela não iria gritar. A mão que desceu da boca e a boca que encontrou a boca foram inevitáveis. Antes que pudesse se perder, ele saltou para trás e, em menos de dez segundos, já atravessava os muros do palacete.

Correndo para a clareira na floresta, chegou junto com o nascer do sol apenas para ouvir, por trás de um árvore, a voz de Salthimankar, áspera: "Você falhou, Ieri". Ieresmieth imediatamente apalpou os bolsos, e não encontrava o anel. Baixou a cabeça, envergonhado.

"Ieri, é uma pena, criança, mas não podemos aceitá-lo como irmão e também não podemos confiar em você como um civil. Você sabe o que precisa ser feito. Adeus." Ele teria que deixar a cidade e não voltar nos próximos dez anos. Ficou impassível, esfregando com as pontas dos dedos o tecido do bolso onde deveria estar o anel. Chegou a virar de costas, talvez para não encarar Salthimankar, talvez para ir embora. Foi quando cortou o silêncio daquela manhã com uma gargalhada estridente. Ele não viu, mas os olhos de Salthimankar se arregalaram por trás de seu ombro.

"Eu passei no teste, irmão", disse Ieresmieth sem olhar para trás.
"Então, onde está o anel... 'irmão'?", o tom áspero de Salthimankar beirava o ódio. "Ieri" sabia que não poderia chamá-lo assim caso não passasse no teste. Por que assinava sua sentença de morte tão estupidamente? Teria enlouquecido?

"Anel? Foi exatamente um 'anel' que você me pediu?", disse Ieresmieth, voltando-se para encarar Salthimankar. Riu, de lado, um riso incontido e disse: "Desculpe-me, é claro que sim... um anel... uma aliança, certo? Uma aliança entre mim e os ladrões, irmão! Uma aliança que seria firmada sobre o roubo do que houvesse de mais valioso dentro do palacete. Foi o que me pediram. Bem, só há uma forma de o anel não estar comigo: alguém, com a mão mais leve que a minha, tirou de mim. Até aí, falhei. Você tem razão, irmão. Mas também só havia um motivo para que eu conseguisse atravessar os muros do palacete a salvo dos malditos karmlags. Eu venci, irmão.

Salthimankar já pulava sobre ele, em fúria, com facas nas duas mãos. Não aguentava mais ouvir aquele fedelho o chamando de 'irmão', sem nada nas mãos. Foi quando Ieresmieth se esquivou e disse: "A coisa mais valiosa, Salthi! Eu roubei o coração da princesa dos ladrões... irmão!"

Conto e receita: Renato Kress

7 comentários:

Alexandre Sarmento disse...

Fantástico, Renato.
E Angabar se torna mais do que uma idéia de um único indivíduo
;)

Bruno disse...

Gostei carinha, ficou bem bom...
Ele foi aceito no final de contas, certo?
=D

Renato Kress ®Ҝ disse...

Certo! Virou o Robin Hood da parada... rs creio eu. (mas eu não sou o dono do conto, eu só escrevi ele... e tenho so direitos autorais, não os direitos de interpretação, esses são sempre livres).

Anônimo disse...

Como sempre muito inteligente esse meu amigo...beijo n moço lindo

Bruno disse...

Eu pensei que vc deixou em aberto de propósito, mas fiquei curioso em como vc imaginava o fim...
Saquei.

Carlos Mucury disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos Mucury disse...

Muito irado!
Parece que começa a carreira de um Thief foda...
Será que encontramos Ieresmieth mundo afora?

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?