terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Cappuccino perfeito


Homenagem a Mircea Eliade

- É porque você já tinha me dito que o cappuccino daquela cafeteria no Leblon era o melhor. Só por isso.
- Verdade, a mais pura verdade. O melhor, sim. Daquele dia, naquela hora. Sentaí.

Sentaram então tio e sobrinho numa mesinha estreita, onde não se poderia apoiar cotovelos, num ambiente amadeirado à meia luz. O cardápio era em A4 reciclado, folha em pé, dobrado ao meio, com um barbante retendo as folhas juntas. A capa, de papel canson, simples, escuro. Havia apenas a imagem de uma xícara negra fumegante no centro e a palavra "especiais" abaixo. Talvez o cardápio tivesse um cheiro. Ou o lugar inteiro.

Rafael, o sobrinho, olhos saltitantes por sobre os ombros do tio, vidrado na rua, na passagem das pessoas, especialmente mulheres. Suas costas se arqueavam para trás junto com seu queixo, a cada par de pernas que chamasse atenção. E eram vários, os pares. Seus dedos corriam a lateral da mesa, escorregavam e lhe caíam no colo, onde procuravam uma qualquer coceira que não se justificava. As poucas vezes que pousava o olhar sobre o tio ou sobre o cardápio acompanhavam um movimento labial de pressão ou insatisfação que logo alçava voo e pousava, aqui e ali, sobre a garçonete, duas meninas conversando, ou a porta do banheiro feminino.

Foi quando o tio desceu o cardápio e prendeu seu olhar no dele:
- Já escolheu?
- O quê?
- O que vai querer. É preciso escolher um, e somente um. Pelo menos um de cada vez. Café é muito bom, refrigerante ou suco de laranja também, mas misturar não vai te levar a um lugar muito agradável.
- Tá maluco?
- Me diga você.

Rafael se ajeitou na cadeira e olhou para o tio seriamente:
- Cara, foi você quem me trouxe aqui para tomar um café. Então vamos tomar um café!
Das mãos do tio escorregou o cardápio por alguns centímetros na mesa em direção ao rapaz.
- Sim, mas qual? Você não acha importante escolher, definir? Ou tudo pode ser provado ao mesmo tempo?

O rapaz colocou a mão sobre o cardápio sem abri-lo. Fez mais uma vez o movimento de inquietude, pressionando os lábios e expirou, encolhendo os ombros:
- Escolhe você.
- Por quê?
- Você conhece melhor do que eu. Você é que entende disso.
- Eu já escolhi. O lugar. Para que o café seja realmente bom, é necessário que ele seja moído na hora - disse o tio, apontando para o moedor de café atrás do balcão. Que os grãos sejam de boa qualidade - mostrou, abrindo o cardápio e apontando para a primeira frase da primeira página:  "Todos os nossos cafés são feitos com grãos 100% Arábica". Dentre os bons cafés as diferenças essenciais estão no aroma e no tipo de bebida. O aroma pode ser "suave" ou "intenso", o tipo de bebida pode ser "dura" ou "mole", de resto a torração deve sempre ser média, assim como a moagem. O sabor e o corpo devem ser respectivamente "intenso" e "encorpado", sempre. Não tem nenhum grande segredo: tomar um bom café depende mais da escolha da cafeteria do que necessariamente da escolha do café em si. Como a maior parte das questões na nossa vida, a escolha do campo de batalha influencia diretamente no desempenho da luta.

Seus dedos passaram pelo cardápio com um gosto peculiar, embora o sinal de desaprovação ainda estivesse presente na lateral esquerda de seus lábios.
- Qual aquele simples que vem com espuma?
- Expresso. A "espuma" se chama "crema".
- Ela faz alguma diferença?
- Não sei. Me diga você: por que faz questão da "espuma" no café?

Ainda dedilhando o cardápio, sem tirar os olhos das opções: - Não sei. Me parece mais cremoso, sei lá.
- Talvez por isso o nome não seja "espuma" e sim "crema", não acha?
- É. Mas isso faz mesmo diferença? Ou é só na cara do café mesmo?
- Se não fizesse diferença, provavelmente você não se lembraria desse detalhe, não acha?
- Talvez. Mas eu falo no sabor mesmo.
- Faz, sim. Ela preserva o aroma e conserva a temperatura. E tem outros detalhes.

Os olhos de Rafael se elevaram do cardápio:
- Quais?
- A cor deve ser o mais próximo possível da avelã, marrom-escuro e com reflexos avermelhados.
- Por que...
- Porque isso garante que a moagem foi boa, o tempo de extração foi correto e o café foi bem tirado.
- Nossa, é muito detalhe. Não acha isso chato?
- Coloca um expresso perfeito na boca, e me diz você.

Pediram. Um expresso e um cappuccino.
O cappuccino foi tomado em apenas três goles consecutivos. Um mais longo e dois mais rápidos. A xícara saiu do pires cheia e só tocou a mesa quando estava vazia. Os olhos do tio estavam fechados e um leve sorriso se esgueirou pela sua boca.

Rafael se contorcia na mesa, esperando o expresso "esfriar um pouco mais". Olhando para o tio, não se conteve:
- Tudo isso, pra isso? - disse para o cardápio e para a xícara vazia à frente do tio.

O tio pareceu ficar levemente irritado com a pergunta, mas em menos de um segundo se recompôs, pôs a xícara de lado e olhou fundo nos olhos do rapaz:
- O cappuccino perfeito não tem a ver com a presença ou ausência da canela, o quanto se coloque (ou se disfarce) de bicarbonato pra criar uma espuma fictícia, quando o grão não foi moído na hora, como os cappuccinos caseiros, das fórmulas prontas. O cappuccino perfeito não tem a ver com a cremosidade do leite ou com a presença ou ausência de chantily (se ele foi feito à mão ou se é um tubinho industrializado para sacudir e limpar o birro depois). Independe se colocamos achocolatado em pó, cacau puro ou chocolate meio amargo. O cappuccino perfeito tem a ver com o momento perfeito. Ele é o clímax de um processo, o clímax de um amadurecimento de fatores que convergem para uma única xícara, num único instante, entre as nossas mãos. O cappuccino perfeito é o momento perfeito. É a transubstanciação do maior aprendizado sobre o "momentum", o que Maquiavel chamava de "occasione", o que chamamos de "oportunidade". Para que o cappuccino seja perfeito, não é necessário seguir passo a passo essa ou aquela receita, original ou inovadora. Sabe por quê? Porque o cappuccino é como a vida: é orgânico, perecível, vital. Se observamos friamente, é impossível tomarmos um cappuccino perfeito idêntico duas vezes ao longo da vida, mesmo usando a mesma quantidade dos mesmos ingredientes. Como é impossível reviver um momento perfeito, a não ser como projeção, na memória. Se tomarmos enquanto ainda está fervendo, vai ferir nossa língua, estragar nosso paladar, nos irritar. Se deixarmos que ele esfrie demais, vai perder a consistência, a essência, até que o gosto se degrade e passe a ser repugnantemente doce ou insosso. Um cappuccino, como qualquer café, é um momento perfeito: não pode ser "requentado". Ele é o que é enquanto é, e só - como qualquer experiência em nossa vida. O cappuccino perfeito é um ritual. Participar do ritual é comungar das energias manifestadas na primeira vez em que esse processo - seja ele físico, químico, emocional, espiritual - aconteceu, quando a sua criação aconteceu. Você me disse, uma vez, que o café era como uma religião para mim, lembra? Quando um fiel de uma religião participa de um rito, ele revive simbolicamente a experiência sagrada originária daquele momento. Quando se converge toda a atenção para o momento em que se está vivendo, quando todos os seus pensamentos, sentimentos, ações e percepções convergem para um único foco, se ritualiza o que se faz. Quando se ritualiza, não se está nem revendo nem comemorando, mas vivendo como da primeira vez. Tomar o café deve ser um rito, sim, como viver deve ser um rito. O ritual transforma o momento em Verbo, ou seja, faz acontecer. O verbo é ação e o rito transforma o que é relatado em realidade presente no aqui-agora, em substância material e psíquica que passa a compor a personalidade, como um símbolo toma conta da sua mente num sonho. Isso estrutura quem você é e como você é capaz de viver e compreender a vida. O cappuccino perfeito é como um mergulho nas energias primordiais da criação, numa total indiferenciação da qual você é obrigado a voltar - porque ele acaba - mas da qual você nunca voltará o mesmo. O cappuccino perfeito é um marco, ele define tudo o que veio antes e tudo o que virá depois dele, é como uma descida ao inferno ou um voo aos céus. Por sua própria natureza finita, ele implica um renascer, um confronto com a morte do que veio antes e com o nascimento do que virá a seguir. É um tempo de suspensão. Em que compreendemos que, para nascermos de novo, precisamos morrer para certas realidades. A cafeína provoca alterações no seu sistema nervoso, age sobre o metabolismo, provoca excitação. Ela efetivamente te leva para um novo estado de "consciência", de maior "alerta" em relação ao mundo e à sua realidade presente. Eleva tua energia, anuncia uma forma de viver renovada, condizente com o novo padrão de consciência aflorado. Aquele que faz essa viagem nunca retorna, pois o que volta é sempre outro. Mas para conhecer esse outro é necessário compreender a essência do cappuccino perfeito. E ela não está no café, nem no cappuccino.

Os olhos de Rafael estavam vidrados na xícara, entre suas mãos:
- Quer dizer que, se estamos atentos ao momento, todos os cappuccinos serão perfeitos?
- Não. Quer dizer que, se não estivermos atentos ao momento, nenhum cappuccino, ou momento, jamais será.

A distância entre os lábios de Rafael não era pouca, sobrancelhas arqueadas enrugando a testa e olhos fixos sobre seu expresso. Tocou a lateral da xícara com o indicador e o médio, verificou a temperatura, passou a xícara para o lado, olhou pela primeira vez a garçonete acima dos ombros e disse:
- Outro expresso, por favor!

Receita e conto: Renato Kress

18 comentários:

Maria Luísa disse...

Maravilha...deu até vontade de saborear um...Tin Tin! Bjs no moço lindo...

Adriana disse...

Adorei!!! Gostei da comparação que vc fez do cappuccino com a vida, realmente cada momento é único, por mais parecido que possa ser não será igual. Tá de parabéns moço lindo, mais uma vez. Bjos

Anônimo disse...

Nossa!!! Você reuniu os melhores cafés do mundo em uma só página!! Como pode?? Eu quero todos!! muah!

bjs, Flavinha (sem conta aqui...)

Unknown disse...

A cada conto que leio me surpreendo. Adorei a comparação. É a mais pura verdade. O que mais me encanta é a forma como você escreve, prende
a atenção. Sempre me sinto dentro da história. Muito bom! Você vai longe rs..
Bjss Anjo lindo

Lívia disse...

Rê,
Tive uma grata surpresa ao ler esse conto!
Sinceramente, esperava um texto que tratasse, tipicamente, do café, seus aromas,temperaturas e sensações por ele provocadas... Entretanto, no fim das contas, li um texto que trata de senso de oportunidade, algo que, teoricamente, deveria ser inerente ao ser humano, uma espécie de motorzinho de propulsão "original de fábrica"! Ocorre que, na prática, a maioria das pessoas esquece do tal "motorzinho" e precisa ser lembrada da existência deste com frequencia! Seu conto nos relembra, de forma original e leve,o quanto o tal do "senso de oportunidade" tem de estar sempre aguçado!
Continue sempre escrevendo textos bem elaborados como este, que nos deem prazer em ler!
Grande beijo,
Lívia

Renato Kress ®Ҝ disse...

Obrigado Malu pelo carinho. Entre no Clima e vá saborear um belo cappuccino.

Adriana, a compreensão que eu tenho de como deveria ser tomar um cappuccino perfeito, é justamente essa: degustar um momento perfeito.

Obrigado pelo carinho Flavinha, vamos marcar um café para trocar figurinhas agora que somos duplamente colegas: de colégio e de faculdade.

Lígia, obrigado pelos elogios! fico muito satisfeito que o café com conto tenha gerado essa atmosfera peculiar. É a atmosfera que pretendo levar, agora, para o livro.

Lívia, você como sempre me supreendendo positivamente. Adorei sua compreensão do conto, perfeita! Minha amiga e coachee inteligente, culta e sempre articulada.

Obrigado!

Ju Kuhne disse...

Gostei! Fechou com chave de ouro! Um blog de cafés e contos, bem interessante o último agregar os 2! E como sempre, mto bem escrito! ;)

Boa sorte com o livro!!!
Bjos

Iara Rössmann disse...

É incrível mesmo como certos momentos, às vezes tão simples ou até mesmo "toscos", são capazes de deixar marcas e nos fazer refletir muitas vezes sob novos olhares, gerando novos sabores.
Somos capazes de passar uma vida inteira em busca do capuccino perfeito e, muitas vezes, quem sabe, o degustarmos sem nos darmos conta do quanto eram perfeitos, ou quase isso. E quem disse que a perfeição se encontra em si mesma?
Penso que o ser humano segue uma busca incessante e incansável por algo que nunca é o suficiente - novos aromas -, e esta (busca) o furta inúmeras e incríveis oportunidades.

Um beijo,

Renato Kress ®Ҝ disse...

Obrigado pelo carinho Ju! Te espero no lançamento!

Poxa Iara, que texto lindo! Fiquei boquiaberto com ele aqui! Lindas palavras, linda percepção da vida. Eu tô fechando esse blog, mas você poderia abrir um teu também, não acha? Beijos de volta!

Kamila Garbulha disse...

E pra fechar com chave de diamante, esse conto!
Pressuponho que seja uma jogada de market... deixando nos leitores um gostinho de quero mais!
Brincadeiras a parte; adorei a comparacao com a vida, a descricao tao sensivel ( que vc sabe que amei) que fez, o desfecho... o todo!
Parabens!
Beijos!

jesueude.blogspot.com disse...

Um que delícia....

jesueude.blogspot.com disse...

Um que delícia....

jesueude.blogspot.com disse...

Hoje eu quero te dizer que "Amizade"
é o sentimento humano que mais se
aproxima de DEUS...
Porque ela se faz sem vínculos sangüíneos...
Simplesmente existe de uma forma natural...
Não há neste mundo quem se sinta só,
se tiver um Amigo de Verdade!
Que Deus abençôe e
ilumine sempre sua vida!

ânja disse...

perfeito o café e o momento... derrubei alguns livros teus...ops!

ânja disse...

perfeito, o café e o momento... ops! derrubei alguns livros teus em tuas próprias estantes...rsrsrsrs

Patricia Fox disse...

belo texto... e eu ficou melhor ainda, pq eu li "no momento certo", rs
;)

Rodrigo B. Cascalles disse...

Espetacular!

Rodrigo B. Cascalles disse...

Espetacular!

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?