sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Ars Amatoria




Os amigos em comum sempre falavam de um para o outro, mas Pedro estava namorando nas últimas férias e Bárbara, no carnaval, tinha resolvido fazer um mochilão pela América do Sul.

Todos diziam que precisavam se conhecer, os dois grandes “pegadores” da turma nunca tinham se visto pessoalmente, mas a fama os precedia e já haviam se adicionado no Orkut, trocado MSN e tudo o mais. Ocorre que Pedro conhecia a fama de Bárbara e ela à dele, de modo que se estabeleceu ali um desafio implícito. Os papos virtuais eram propositalmente vagos e ela sempre lançava um ar de “desafio” durante e no final das conversas. Pedro parecia um pouco mais distante, desligado diriam alguns.

Era março e nenhum dos dois tinha programado nada para uma quinta-feira baldia que, como todas as quintas-feiras, tem aquela noite recheada de um ar malicioso de despretensão calculada. Zé e Cláudia, o “casal grude” da turma, haviam ligado, respectivamente, para Pedro e Bárbara, chamando para irem ao cinema. Nenhum dos dois sabia que o outro iria. Era uma quinta-feira, despretenciosa.

Calça jeans e camisa cinza, tênis qualquer, saiu Pedro do curso noturno de francês e pegou o metrô para Botafogo. Revista de lado, vestido verde musgo e sandália grega preta, desceu Bárbara rápido até a garagem.

Zé esperava Pedro com ar um tanto cômico. Cláudia cutucava visivelmente o namorado eterno por baixo do braço.

- Que que cês tão aprontando, hein?
- Ih, cara, relaxa. A Cláudia hoje tá boba demais. Comprei teu ingresso porque eram cadeiras marcadas, senão já viu. Depois cê me paga.
- Tá, mas que vocês tão estranhos, tão. Que horas é o filme? – Disse pegando o bilhete e confirmando a resposta que esperava ouvir.
- Às dez e meia.
- Tem tempo. Bora na livraria?

Dentro da livraria Cláudia, uma moreninha de um metro e sessenta que vivia com os cabelos lisos e negros soltos não parava de passar a mão da testa à nuca, soltar os cabelos e rir. Pedro não se conteve:

- Na boa. Sério. Pára. Zé, eu sei que você é o maior cínico e não ia dar com a língua nos dentes nem a pau, mas a Claudinha tá denunciando legal. Qual é a parada?

Zé pensava em responder qualquer coisa quando virou para Pedro e, através da vitrine da livraria, viu Bárbara entrar no cinema, e ela estava linda. Fez qualquer menção que Pedro olhasse para trás e desviou os olhos para uma prateleira à frente, esticando a mão para pegar qualquer livro que nem havia visto.

Pedro olhou curioso para trás e viu Bárbara. Reconheceu de imediato. Estremeceu, porque através do vidro não só via Bárbara como via como estava vestido, ao mesmo tempo em que eles ficavam quase como que um casal, lado a lado, pelo reflexo causado pela luz interna da livraria. Talvez ela visse a mesma imagem do lado de fora, o fato é que Bárbara sorriu.

Ela entrou dominando o ambiente, era linda. Olhos verdes (ou azuis?) cabelo castanho claro preso meio alto como as bailarinas e umas sobrancelhas desenhadas, dando uma moldura entre o angelical e o luciférico. Pedro respirou fundo e enquanto pensava se falava qualquer coisa para Zé, se arrumava o cabelo, se andava em direção a ela, se a camisa estava amarrotada, a mulher do vestido verde musgo já estava parada de frente para ele, sorrindo.

- Pedro?
- Bárbara!
Ela riu. E que sorriso!
- Que divertido!
- Que armação dos dois ali atrás, isso sim!
- Com certeza!

Riram o tanto que a surpresa e o desejo de não parecerem ridículos um ao outro lhes permitiu. Bárbara cumprimentou o casal e conversaram os quatro por alguns minutos. Até que ela virou-se para Pedro com olhar malicioso e disse:

- Teu irmão me disse que você nunca deixou de conseguir a mulher que quis.
- Exagero dele.
- Bem, o Zé e a Claudinha confirmaram. A Aninha, o Paulo, a Carla, a Natasha... aliás – disse aumentando o tom da voz - me disseram até que você e a Natasha...
- Quer sentar lá fora? – Disse Pedro na clara noção de que deveria não só comandar o papo como afastar os dois amigos que depois fariam milhares de brincadeirinhas e repetiriam palavra por palavra o papo dos dois “sedutores” por meses.
- Claro, tô com sede. Você bebe o quê?

Andaram até uma mesa e Pedro deixou que Bárbara andasse ao seu lado, mas sempre um passo à frente, só passando à sua frente quando chegaram às cadeiras, onde fez questão de puxar a cadeira para ela.

- Obrigado. Muito cavalheiro você.
- Obrigado.
Pedro fez o possível para que ela não notasse que ele havia respirado fundo antes de sentar e resolveu soltar o ar lentamente depois de sentado. Sentou-se como se dominasse o ambiente. Parecera ter rompido completamente a atmosfera de surpresa e o mal-estar pela diferença que julgava não só entre as roupas, mas entre a beleza de ambos.
- Agora confesso que fico na dúvida. Não sei se agradeço aos dois ali por terem trazido você – confesso que os papinhos de todos já estavam me deixando curioso – ou se agradeço a você o fato de não ter se tornado uma miragem, daquelas que nunca poderão nos desencantar porque sempre serão miragens.
- Nossa, você fala bonito. – Disse rindo e arqueando as costas para trás como para desafiar ou simplesmente para olhar melhor os olhos castanho claros e os cabelos negros, lisos e meio jogados que emolduravam aquele rosto estranhamente inocente, dos lábios lisos e levemente mais grossos do que parecia pelas fotos no Orkut dele.
- Tem uma coisa que eu quero te perguntar.
- Claro!
- Não sei se devo agradecer aos dois por terem trazido você até aqui e acabarmos com o disse-me-disse do pessoal ou... se você deve agradecer a eles, e talvez a mim, por terem me trazido aqui para confirmar os elogios que você vive ganhando. Afinal, é o teu ego que cresce no processo. E agora? Agradeço eu ou você? Afinal de contas, se eu sou considerado um “sedutor” e se eu vou elogiar tua beleza, quem sabe até o teu vestido, porque ele realmente te cai muito bem, teu jeito de andar, tua voz... esses elogios podem ser úteis a você. É inevitável que eu te elogie para os outros. Não só porque você realmente é linda, mas principalmente porque, se eu não o fizer, corro o óbvio risco de parecer falsamente arrogante, infantil, talvez até invejoso. Sou obrigado a te fazer elogios públicos até para manter a minha imagem de cara maduro. E agora? Quem agradece a quem?

Bárbara franziu a testa. Parecia não ter alcançado de primeira as palavras de Pedro. E como o infeliz falava rápido, de improviso, e bem!
- Você me pegou. Obrigado por ter vindo. Obrigado antes da hora, pelos elogios que vai fazer sobre mim.
Ela ria e ficava desconcertada, até que pareceu jogar um anzol para o garçom que, ao primeiro relance daqueles olhos verdes (ou azuis?) apareceu na mesa e anotou um chá gelado para ela, um refrigerante para ele.

- Além dos elogios que você já ganhou, quero saber qual era o teu interesse em me conhecer. Fazer um duelo de sedução? Brincar daqueles jogos “te quero-te chuto” que os adolescentes fazem?
- Claro que não. Acho que a gente ficaria anos nisso e, por causa de nossos egos, como você mesmo disse, não íamos nunca nos render um ao outro.
- É, talvez. Interessante, você está se saindo mais inteligente do que eu esperava.
O garçom chegou com os pedidos de ambos. Serviu mais lentamente o de Bárbara que o de Pedro.
- Obrigado.
Brindaram.

- Meu interesse em te conhecer está no que teu irmão falou de você. Que nunca deixou de estar com a mulher que quis.
- Já te falei que é exagero de irmão mais novo. Vocês estudaram juntos na faculdade, sabe que o Thiago é meio exagerado por natureza.
- É, eu diria “empolgado”.
- Pois é. Então.
- O fato é que outras pessoas confirmaram e você também não nega.
- Acho que não faz sentido confirmar ou desmentir. Talvez seja mesmo verdade.
- É isso que eu quero! Aprender com você como faz isso. Não fica achando que por eu ser bonita todo mundo que eu quero cai aos meus pés.
- Eu não acho. Na verdade não faz sentido você achar que “todo mundo” que eu queira – porque que geralmente eu só quero uma pessoa de cada vez, riu – caia aos meus pés. A gente vai conquistando.
- Pois é. Você é um cara charmoso, alto, com um rosto bonito, mas não faz o estilo de todas as pessoas.
- Até porque isso é impossível, não acha? Pensa assim: existe uma arte para isso. Um artifício, uma artimanha, um truque, como você quiser. Não digo que seja uma teoria, porque é prático demais, não digo que seja uma prática, porque exige alguma reflexão e não seguir um modelo.
- Então me conta, como é que eu faço?
- Bem, primeiro você tem que rastrear sua “presa”. Não ri, é sério. Você que quer que eu transforme isso em teoria, tô tentando colocar em tópicos aqui. Acho que nunca fiz isso antes. O fato é que o melhor é que seja outra pessoa a entrar em contato com a “presa” antes de você. Que faça uns comerciais, como o pessoal fez entre a gente.
- Foi você que armou isso?
- Não. Eu teria feito diferente. Você vai ver. Enfim, depois disso o que você precisa é deixar-se ser quem é, afinal é da tua natureza o andar sedutor, o olhar enfeitiçado, a fluidez das palavras, tudo o que você normalmente faz. E fez hoje.
- Sério que não faço nada disso de propósito. Mas entendo que os caras vejam assim.
- Então, de qualquer forma você entende que não é pela força que se consegue ou mantém qualquer coração: benevolência e prazer são o que retém nossas “presas”. Procura não pedir mais do que o cara possa te dar, paga sempre na mesma moeda; o que uns chamam vingança nós podemos chamar de reciprocidade; assim os caras vão te querer mais, acho eu. Na hora de agradar, concede só o que eles querem ardentemente, nunca fora desse tempo. Às vezes é uma questão de “timming” mesmo. Percebe uma coisa: gosta de sushi?
- Adoro!
- Gosta de churrasco?
- Também!
- Se uma amiga sua te levar para um rodízio de sushi e passarem a tarde e a noite toda comendo e conversando e, às dez horas da noite, eu te ligasse chamando para um rodízio de churrasco, como você reagiria?
- Acho que eu iria... mas não ia querer comer. Se tivesse comido a tarde e noite toda, acho que nem iria. Marcaria com você outro dia, talvez.
- Servido a quem não tem apetite, qualquer coisa, mesmo um rodízio, que você disse que adora, não desperta nada. Talvez cansaço, talvez até nojo. Entende? Quando você está morrendo de fome, depois de uma noitada por exemplo, até o podrão da esquina, aquele cachorro quente que você vai levar uma semana pra digerir, é delicioso.
- Falar é fácil. Como é que eu faço pra deixar o cara com essa “fome” toda?
- Não oferecendo mais nada quando eles estiverem saciados. Nunca chamando uma segunda vez antes que eles terminem a “digestão” e a necessidade – porque é inevitável – tenha aparecido de novo. Depois, dá uma indiretas e some, deixa claro que é você quem comanda teus desejos, mas não se faça de “dona” mais que desentendida ou fugidia. De vez em quando dá uma evitada para a vontade deles chegar ao extremo.
- Legal, então porque você não me ajuda a tentar essa tua “técnica” pra chegar num cara do meu mestrado?
- Claro! Com todo o prazer, se eu tiver tempo.
- Está muito ocupado ultimamente?
- Se precisar de mim, me dá um toque. Toma meu telefone.
Puxou o guardanapo, tirou uma caneta do bolso e anotou. Entregou na mão dela, com os olhos fixos nos dela.
Bárbara empolgada, não resistiu:
- Por que a gente não sai amanhã? É sexta, tenho mais tempo livre.
- Pois é, não vai ser fácil assim de uma hora pra outra. Marquei de sair com uma amiga depois do curso, vamos na Lapa. Sábado talvez a gente saia de novo, não sei ainda. Mas domingo marquei de fazer uma trilha na Pedra bonita bem pela manhã e depois tenho que estudar porque tenho prova segunda logo de manhã.

Antes que Bárbara pudesse dizer qualquer coisa, Pedro se levantou com um polido e levemente distante “com licença”, pegou o celular no bolso e se afastou da mesa.

Não conseguiu ouvir nenhuma das palavras que Pedro trocou no telefone, mas sua postura dizia que tinha se esquecido de alguma coisa. Voltou correndo com o telefone ainda na orelha e, sem sentar na mesa, tapou o telefone com uma pressa estranha a um cara que tinha sido tão cordial até então e disse:
- Linda, tenho que ir, depois a gente se fala!
- Eu te ligo!
- Beijo!


Pedro passa rapidamente pelo corredor do cinema e despede-se com um sinal para Zé. Começa a rir no telefone depois de sair.
- Te falei, Thiago! Ela vai me ligar! Tá me devendo cinquentinha cara! Hahahahaha

Conto e Receita: ®Ҝ

6 comentários:

Anônimo disse...

Esse foi o melhor de todos... Perfeito!
Um beijo.
Lua

Unknown disse...

Devia estar muito inspirado pra escrever isso!
Hahahahaa
No final dá uma raiva ...hsuahsaus
Mas ri muito !
Que mente heim Renato!hsuahsuas
Beijos!

Unknown disse...

Quero tirar o chapéu pra vc por conhecer tão bem o universo feminino e por sua grande imaginação e dinamismo e isso aos 26 aninhos. Mas como existe um Koam que diz " Quem é bom já nasce feito" eu não me surpreendo! Renato, vc é do mundo!
Agora com relação ao personagem: é um estrategista, uma raposa ... uma mente analítica, intelectual e sagaz e essas características ficam mais acentuadas quando se tem no céu astral uma quadratura que restringe o sexo oposto. Aí, é uma festa!
Um beijo carinhoso. Celia Marli

Anônimo disse...

Gostei!
Esse Pedro aí é bem garanhãozinho hein, me lembrou alguém!

Bjus

ânja disse...

Sinceridade?! Não gostei desse... mas gosto é gosto..

Anônimo disse...

Tantas coisas conhecidas nessa história...

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?