sábado, 10 de janeiro de 2009

O Caçador



Úrsula caminhava tensa pela sala de estar. Ao desligar o telefone uma inquietação qualquer lhe percorria os ombros até a ponta dos dedos. O que poderia querer Vânia - aquela senhora enigmática amiga de sua mãe há anos - lhe ligando às onze e quarenta da noite de um sábado para marcar um encontro com um homem desconhecido na sua casa para dali a alguns minutos? Por que quis confirmar logo de saída se Wagner estava viajando nesse final de semana?

Passeando pela sala viu seu reflexo num espelho estalando os dedos e percebeu que ficara o dia inteiro em casa arrumando papéis de Wagner, separando anotações e papeladas de notificações de condomínio, planejando ingredientes para um escondidinho de camarão no domingo caso ele voltasse a tempo pro jantar... seu cabelo secou preso, seu rosto não tinha qualquer maquiagem, correu ao banheiro antes que pudesse calcular a real dimensão emocional das linhas acinzentadas sob seus olhos.

Um banho rápido, um vestido prático sobre o corpo cansado, batom e um perfume leve. Decidiu deixar o cabelo secar solto dessa vez. Decidiu e, sem qualquer consciência, automaticamente arrumou o rabo-de-cavalo antes de atender à porta.

Vânia vinha como sempre, sorridente e esquiva. Escorregava o olhar dos olhos de Úrsula enquanto trazia ao seu lado um sexagenário de quase dois metros com um blazer grafite já fora de moda sobre uma camisa verde musgo.

- Oi Úrsula, esse é o Dr. Ramiro Ruyz, veio de Granada especialmente para ver o seu caso.
A mulher fitou a senhora com algo entre uma inquietação pela intromissão em sua vida e a curiosidade avassaladora diante daquela situação bizarra. Por alguns segundos pareceu ao Dr. e à senhora virem a batalha interna de Úrsula ser ganha, momentaneamente, pela curiosidade:
- Como assim "meu caso"? Acho que eu deveria saber de qualquer "caso", certo? Acho que estou bem de saúde e admito que só recebia a senhora por consideração à amizade que sempre teve com minha mãe, mas dado o adiantado da hora gostaria que vocês fossem um pouco mais claros, se possível.
Estranhou que o Dr. ficasse parado ao pé da porta como se uma parede invisível o impedisse de entrar. Talvez alguma inquietação em estar na casa de uma mulher casada na ausência do marido, algumas impressões ligeiras e simpatizantes passaram pela cabeça atabalhoada de Úrsula até que ela quase sem querer dissesse:

- Entre, por favor. Fique à vontade.


Vânia assentiu com a cabeça, afundou as costas no sofá da sala e em alguns segundos o dividia com o estranho doutor.
- Deixa essa polidez e distância pra depois, menina. Não temos muito tempo. Pompa e circunstância são luxos desnecessários. Gostaria que ouvisse com atenção ao Dr. Ramiro, sei que a situação pode lhe parecer estranha e... depois, se achar que deve, sairemos rápido pela mesma porta ali à direita e nunca mais te incomodarei com essas idéias. Pode ser?

Úrsula se recostou na poltrona expulsando o ar do peito em tom de consentimento.
- Querem água, chá, biscoitos?

A voz pedregosa e grave do Dr. Ramiro quase explodiu ocupando cada milímetro da sala:
- Creo que el tiempo para una taza de té es el tiempo necesario, gracias.
Úrsula se levantou e foi até a cozinha. Deixou a água aquecendo no bule, pegou uma tigela, abriu um pacote de biscoitos que só comprava mesmo para o caso de visitas e voltou ansiosa para a sala. Sentou com pressa e encarou com curiosidade aquele senhor alto de voz grave e modos que só lembrava de haver visto antes em seu avô.

- E, na opinião do Sr...

- Doutor, minha filha. Doutor. - Interrompe a “Tia” Vânia com as mãos esfregando os joelhos.

- Sim, “Dr” Ramirez, certo?

- No, Ramiro. – Disse o distinto senhor sem tirar os olhos da tigela de onde havia tirado já o segundo biscoito recheado. – Nossos idiomas são parecidos, mas como gostaria que se reportasse a mim no meu, caso eu estivesse no seu país, falarei com você no seu, uma vez que cá estou. Perdoe qualquer sotaque português, estudei em Coimbra. Vícios de linguagem são os piores.

- Sem problemas, o senhor é doutor em quê, exatamente?

Dr. Ramiro encarou pela primeira vez nossa protagonista, seus olhos inspiraram uma espécie de vivacidade que superava sua idade e aspecto geral: - Psicoquiroptologia prática.

- Como?

- Psicoquiroptologia. Psico vem de psiqué, termo grego para....

- Desculpe, essa parte eu compreendi, mas o outro termo...

- Quiroptologia?

- Isso. Quiroprático é uma espécie de massagista ou um especialista que cuida da coluna sem ser estritamente um médico, isso é o mais próximo que chego do termo que o Dr. disse.

- Se essa é sua preocupação, posso lhe assegurar que sou médico e formado. Mas minha área mesmo é essa cujo nome estranhastes. Quiróptero é o nome científico dos morcegos. Lembra-te dos pterodáctilos, cujas falanges dos dedos tinham membranas formando juntas que supunha-se que usavam como asas? Bem, os morcegos tem o mesmo fundamento em suas asas e “quiro” é o sufixo para “mãos”. Quiróptero seria “mãos com asas” ou algo do tipo. Enfim, vim aqui saber do seu marido.

Úrsula agarrou o encosto da cadeira com a mão direita e tentou disfarçar chamando atenção com movimentos aleatórios com a esquerda enquanto tomava fôlego. Por algum motivo aquilo que obviamente não fazia sentido perfurava seu estômago, incomodava demais. Decidiu manter aquela “tia” maluca e seu amigo “Dr.” até descobrir porque tudo aquilo a incomodava tanto e logo na boca do estômago.

- Desculpe, como?

Dr. Ramiro se encostou no sofá cruzando os dedos nas mãos sobre as pernas e fixando o olhar de maneira cordial embora levemente inquisidora para Úrsula. Passou a língua pelos lábios e depois de observar mais uma vez os biscoitos (algo dizia a Úrsula que ele observava através dos biscoitos, do prato, da mesinha de centro, talvez até do chão) disse:

- Gostaria de tomar a liberdade de fazer-lhe três perguntas depois das quais a senhora me dirá se há razão para eu estar aqui ou não. Caso não haja obviamente irei embora imediatamente.

- O senhor já conseguiu isso antes.

- Sim, mas quero primeiro ter o seu consentimento para perguntar e quero que saiba que são apenas três perguntas.

- Tudo bem. O senhor já tem minha atenção, minha curiosidade... até meus biscoitos e o chá que daqui a pouco vou pegar.

- Ótimo. Foi a senhora que convidou seu marido a vir morar em sua casa quando se conheceram?

- Sim, mas...

O olhar do Dr. Ramiro se fixou no pescoço e depois na boca de Úrsula. Ela sentiu um impulso imediato de parar de falar e respondeu ao olhar do espanhol com um desafio levantando as pálpebras inferiores.

- Certo – disse o Dr. com as mãos no biscoito e os olhos nos olhos de Úrsula – Certo. A senhora pensa em ter filhos?

A anfitriã cruzou os braços como se um calafrio percorresse seu corpo ao ouvir aquela pergunta. Levantou-se e foi pegar o bule que já assobiava a algum tempo na cozinha.

- Não estou entendendo onde suas perguntas querem chegar. – disse de costas para as visitas.

- Sra. Úrsula, por favor. São apenas três perguntas. Não vamos parar na segunda.

- Estou recebendo o senhor – e a voz veio chegando em passos densos sobre o assoalho de taco envernizado com o bule cheio de água fervente e umas xícaras quase dançantes sobre a bandeja de fórmica imitando madeira – por consideração à senhora do seu lado. Que tipo de pergunta é essa?

- O tipo de pergunta que me parece correta dada a irritação com que a senhora a recebeu. – Por alguns instantes um clima de apreensão rondou a sala e um adolescente irônico poderia ouvir os grilos na janela, mas não existiam adolescentes nessa cena, ou ironias.

- Qual a razão para essa pergunta? – Disse Úrsula sem deixar a bandeja ou o bule sobre a mesa de centro.

Dr. Ramiro levantou-se do sofá rapidamente como se desse um bote sobre a mão da anfitriã e com olhos melífluos e nublados, tomou a bandeja e o bule e de um único movimento os colocou na mesa, dizendo:

- Dessa forma queimará os dedos.

Tudo aquilo pareceu, à aterrorizada Úrsula - que só agora tomava consciência da altura e largura dos ombros daquele senhor – rápido, energético e limpo demais, como um movimento marcial treinado à exaustão e perfeição, algo totalmente surreal a um senhor daquela idade.

Ainda em pé, Dr. Ramiro permaneceu fitando a mão direita de Úrsula.

- Melhor colocar em água fria. Corrente.

Mais um constrangedor silêncio invadiu a sala e “tia” Vânia levantou em direção à cozinha para em seguida voltar com um pano de prato envolto em pedras de gelo.

- Você estava se queimando, minha filha. Não percebeu?

Úrsula desprendeu os olhos dos do Dr. Ramiro, que já estava servindo os três chás de maçã com pitadas de canela, e olhou sua mão direita. Vermelha.

- Vejo que minha presença talvez lhe cause repulsa ou desagrado, mas vim a fazer três perguntas e me vejo forçado a fazer a terceira antes de ir-me embora. Ah, fique tranqüila, não sou eu quem cuida da resolução dos casos. Sou responsável pelo que a senhora chamaria de “medicina diagnóstica”. Bem, a senhora tem 27 anos, é casada há 5 e conhece seu marido há 7, tenho certeza de que conhece a família dele, cuja mãe quase não fala, provavelmente tem uma expressão facial inócua, vacilando, a maior parte do tempo entre parecer desmaiar ou chorar, coisas que os que estão ao redor já não se espantam de que não aconteçam, como se uma força qualquer a mantivesse erguida, eterna, para servir. Seu sogro é um homem falastrão, bonachão, sedutor e bom ouvinte, como seu marido. A irmã de seu marido, como suponho que exista, é uma moça quieta, soturna e de aparência decadente, aparenta ter dez anos a mais que ele, quando na verdade é o oposto que se verifica na certidão de nascimento. Desde que convidou seu marido a entrar nessa casa, há sete anos, cada vez menos seus projetos e sonhos foram comentados à mesa, na cama, pela manhã, antes ou depois do trabalho. Pelas teias de aranha próximas ao teto da entrada de sua casa posso imaginar que seu interesse pelo comportamento dos insetos aumentou na mesma medida em que desaparecia seu asco por eles até o ponto em que hoje é capaz de olhar fixamente para uma barata, aranha ou ratazana por alguns minutos e até mesmo tentar descobrir como esses seres sobrevivem e se reproduzem. Está projetando a ausência de sentido atual da sua vida na possibilidade de que haja algum sentido ou mesmo algum sentido infantil de harmonia na vida entomórfica. Vejo poeira uniforme na frente dos livros na estante, sinal de que não há manuseio dos livros. Seus estudos pararam, qualquer produção secou, seus devaneios noturnos, planos de carreira, tudo foi desfalecendo semana após semana, mês a mês, ano a ano até chegarmos ao dia de hoje em que provavelmente seu olhar tenso e crispado sobre mim diga que sei mais do que aparento, mas principalmente que sei mais do que deveria saber e, acima de tudo, que eu não deveria ter comentado o fato de que está pensando em desistir até mesmo de ser mãe. Certo?

Dr. Ramiro deu um último gole no chá e colocou dois biscoitos no bolso do paletó ao se levantar e caminhar, lentamente, em direção à porta.

- Não há duvida. Seu marido é um grande quiróptero, um vampiro emocional, psíquico e físico. Acredito que esteja a poucas semanas, talvez alguns dias, de acabar com a sua vida. Não pense em assumir a posição de vítima; de tudo o que é dito sobre o folclore dessas criaturas, uma coisa é certa: Só entram quando convidados.

Deixou um cartão de visitas negro sobre a mesa ao lado da porta:

- Como disse antes, não sou eu quem cuida da resolução, eu faço apenas o diagnóstico. Sinta-se livre para decidir nos ligar.

“Tia” Vânia estava atônita. Com o afastamento do Dr. Ramiro em direção à porta foi-se aproximando aquela confusa sensação de que pouquíssimo sabia do tal “Dr.” além do fato de que se conheceram naquela tarde, num café literário, ou numa estufa de flores? Pelo menos tinha a certeza de que fora em Copacabana... ou seria Botafogo, talvez Jardim Botânico?

Em estado de choque, olhando através da xícara, através da bandeja, da mesa, do taco, do chão, penetrando o âmago escaldante da terra em busca de si mesma, Úrsula explodiu aquelas palavras embaçadas de lágrimas:

- Como? Como você pode saber isso?

Antes que a porta se fechasse sobre as duas figuras atônitas, as palavras nítidas e distantes:

- Ora, minha querida, os semelhantes se reconhecem...

Conto e Receita: ®Ҝ

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