terça-feira, 30 de março de 2010

Malik, Porta do Inferno



Não se sabia de pai. A mãe, Inácia, era uma negra carrancuda cuja mãe a forçou a andar antes da hora – o que lhe custou os joelhos arqueados e o andar torto que vagueava a vida. Inácia não era de falar. Exceto pela mão estendida nas subidas de escadas – suplício diário – pouco incomodava vizinhos. Foi surpresa geral que a barriga, depois de tempo, era de homem e não de gordura mesmo. Dizem que foi coisa do patrão, um muçulmano pardo de barba branca, barriga proeminente e dedinhos ágeis.

Malik – nome que o garoto recebeu do padrinho, seu Amin – sempre foi um moleque diferente. Herdou da mãe o silêncio. Toda a gente estranhava o olhar distante e sério daquele moleque grande. Com quatorze anos as gorduras foram se arrumando pra cima e com dezesseis já baixava cabeça pra entrar em casa. Isso bastou pra calar o ânimo da vizinhança, que nem Inácia era alta, nem seu Amin. Começaram a acreditar no que Inácia havia dito para Penha, amiga de costura nos domingos, quando soube do menino: Tinha sonhado com um anjo, seu filho tinha uma missão a cumprir.

Seu Amin conseguiu que Malik fosse jogar basquete. O professor sentiu pressionar a última vértebra do pescoço enquanto subia o queixo para falar com o rapaz. Aquela vértebra deu a Malik uma bolsa de estudos. Acontece que o talento não vem com a genética. Malik era lento, ficava ali, no garrafão, pesado, esperando um passe ou, na volta, ficava na própria cesta, tirando as bolas do adversário. Por um tempo funcionou. Logo foi neutralizado pelos adversários. Cansou a torcida, a vértebra do técnico e, com o tempo, seu Amin.

Malik começou a fazer entregas na comunidade para uma loja de roupas, para as costureiras associadas, para as lavadeiras. Não era simpático nem antipático. Por toda extensão abrupta do seu corpo mecânico e enferrujado, só se via vida se, com sorte, alguém alcançasse seus olhos negros a mais de dois metros de altura. Esses eram vivos, detalhistas, analíticos.

Um dia um conhecido – Rafael – levou Malik para uma academia de musculação dizendo que ele poderia malhar de graça se, à noite, limpasse e arrumasse o lugar. Malik consentiu com um aperto de mão e um quase-sorriso. Era academia de manhã, entrega de tarde, limpeza de noite.

No quinto mês Rafael apresentou “Careca” a um Malik grande, musculoso, assustador até. “Careca” era um cara simpático, de sorriso frouxo e sandália, tipo que a cada meia hora dá um tapa no seu ombro e levanta ainda mais a voz pedindo outra rodada. Foram três dias de conversa fiada na saída da academia, três dias e Malik já havia – com coisa de “sim”, “é”, “a-ham”, “vamô vê” – arranjado uma cadeira do lado de fora da boca mais movimentada por ali. E era uma cadeira rentável: trezentos por fim de semana e cinqüenta por noite avulsa. Agora não precisava limpar pra malhar na academia.

Na verdade muita coisa ficou de graça, o que aumentou o tempo livre. Nada antes tinha dado a estabilidade de sentar naquela cadeira de bar, do lado de fora de três casas geminadas de tijolo exposto, das sete da manhã às sete da noite. Era olhar em volta, três sinais básicos pra “passa”, “volta” e “espera”. O resto não era mais com ele.

No tempo livre Malik sumia. Havia arranjado uma moto de terceira mão e na semana passava o dia na rua. A mãe, desgostosa, falava cada vez menos, o padrinho, sabendo, procurava cada vez mais. Telefonemas e até carta foram parar das mãos de Inácia para a porta do quarto de Malik. Nenhuma resposta, nada. Para a mãe apenas uns maços com notas vermelhas e marrons apareciam dentro do criado-mudo, nada mais.

Com o tempo veio o respeito. Malik era o guardião da porta do inferno por ali. Não perguntavam mais onde ia ou o que fazia nos dias de semana, diziam que havia arranjado uma namoradinha pros lados de Jacarepaguá e isso acalmou os curiosos. Nem todos.

Num dia cinza Careca mandou Binha e o Derú seguirem Malik. Malik queimou o asfalto na Perimetral, desceu pro Centro, Glória, desapareceu. Dia seguinte as namoradinhas de Binha e Derú desapareceram para nunca mais. Passou a ficar desinteressante seguir Malik. Até porque ele sempre estava presente no serviço, ali, imóvel, impassível. Olhos negros que marcavam a cadência da vida no lugar: “espera”, “volta”, “passa”.

Um dia homens de preto, colete, fuzis e coturnos subiram as escadarias. Fecharam as saídas por baixo, comeram muito chumbo, o ar pesava e zunia. Era ano eleitoral, todo mundo sabia que não ia parar por ali. De dois em dois anos a coisa ficava mais tensa, que era preciso mostrar serviço. O pessoal sabia que tinha que fugir ou morrer, porque a TV tava lá: dois repórteres, um em cada das grandes saídas.

Depois de três dias, o sopé tava cercado. “Careca” e o chefe lado a lado agachados na saída das casas geminadas. Dava pra ver as manchas negras se movendo, subindo as ruelas. Entrecortando os silêncios ocos elas iam atirando e subindo.

Foi quando “Careca” entrou na casa, correu pro canto da parede e se enterrou no chão com a boca num cano retorcido que dava pra parede da casa. O som da porta se arrebentando com o pé de Malik inundou a casa, arrastando pelo pescoço o chefe que se esvaía em sangue e debatia. Assim que viu o cano, por onde Careca respirava, afundou o pé com toda força.

Por trás das costas de um Malik nublado e impassível entraram na casa três homens do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar. Dois dos pacotes com notas de cinqüenta e cem voaram para os braços do guardião da porta do inferno. No dia seguinte dona Inácia ganhava uma chácara em Mazomba, Itaguaí.

Conto e Receita: Renato Kress

Um comentário:

Mary disse...

Querido,
Sabe q gosto muito dos seus contos e da forma como cada texto se mostra com estilo, forma e tons diferenciados. Não se vê tanta diversidade, tantos "eus" em muitos escritores conhecidos e renomados. Parabéns - sou fã de carteirinha!!!
Beijos Virginianos

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?